Le Petit Pan de Mur Jaune - Vue de Delft - Marcel Proust
Assim como em 1921 Marcel Proust
tomou conhecimento dos artigos de Vaudoyer na imprensa sobre o quadro ‘La Vue de Delft” de Vermeer, na exposição holandesa no Museu Jeu de Paume
e se motivou intensamente sobre o quadro que considerava o mais belo do mundo,
assim também poderia ter tido conhecimento dos artigos de Théophile Thoré-Burger sobre Vermeer, antes de sua visita à Haia, em 1902, interessando-lhe conhecer a obra descoberta
para os franceses pelo crítico, pois
nada o impediria de ler esses artigos, já que era tão apaixonado por pintura e
tinha a imprensa ao seu dispor, residindo em Paris, onde foram publicados,
também.
Sobre a pintura da Holanda em
Paris, o que poderia ter, também, despertado em Proust o interesse pelos
pintores flamengos, consta que em 1895, Robert de Montesquiou havia
organizado uma coletânea de obras sob o
título « Néerlandises » . Assim, antes de partir em busca de
conhecimentos da arte holandesa, Proust poderia
ter tido conhecimento dessa coletânea. Mas é sobre sua viagem de 1902 à Holanda que Proust retrata, numa carta escrita em
1907, com segurança, suas recordações da pintura holandesa à princesa de Caramam-Chimay
(Hélène Bibesco-Bessaraba de Brancovan), aconselhando-a a fazer uma viagem semelhante para
conhecer a pintura holandesa e notadamente Vermeer.
Na verdade, em 1842, visitando o
museu de Haia, Mauritshuis ( Casa de Maurício), Théophile Thoré-Burger viu pela primeira vez o quadro
la Vue de Delft, pois nem conhecia o pintor Vermeer e só teve conhecimento dele
pelo catálogo do museu. Uma das versões da sua visita, mostra-o verdadeiramente extasiado, tomado de
violenta emoção diante do quadro que considerou perfeito. Dessa época em diante
passou a divulgar a obra de Vermeer, descobrindo, inclusive, vários quadros do
pintor que apareciam com o nome de
outros pintores. Foi um trabalho árduo e apaixonante, do qual logrou pleno êxito.
O crítico de arte Jean Louis
Vaudoyer, amigo íntimo de Marcel Proust,
em razão da exposição de 1921, avivou o conhecimento dos franceses sobre
o pintor, interpretando-o como “misterioso”, em 3 artigos. Não era o caso de Marcel, que já o conhecia
de Haia, de 1902. Mas, mesmo assim,
Marcel leu os artigos que lhe despertaram o desejo de rever o quadro do
qual guardava uma lembrança bem viva.
Com a saúde debilitada, Marcel resolveu, mesmo assim, ir à exposição no Jeu de
Paume em companhia do crítico amigo Vaudoyer.
Após conseguir vencer a
escadaria, passou mal, ficou tonto, tropeçou, quase caiu, alegando, no fim, uma indisposição
alimentar e, finalmente, viu-se diante do quadro tão amado La Vue de Delft.
Talvez nem acreditasse estar diante da obra prima, do quadro mais belo do
mundo, como já se referira, era como se
recebesse um presente da Holanda.
O que, verdadeiramente, se passou diante do quadro é um mistério que
ainda não foi resolvido, apesar de tantas pesquisas e referências literárias a respeito. Na verdade,
Marcel estava mal, quem sabe com a visão imperfeita, devido ao mal estar sofrido e não teve a mesma amplitude diante da pintura como em Haia, em
1902, quando afirmou “Depuis que j’ai vu au musée de la Haye la vue de Delft,
j’ai su que j’avais vu “le plus beau tableau
du monde.” Diante do quadro procura trazer a imagem captada do passado
que o deslumbrara, e que sua mente guardou já, agora, com a nova visão crítico-poética
sobre os “mistérios’ de Vermeer de Vaudoyer.
Teria mudado alguma coisa ? A
disposição do quadro ou a visão de Marcel? Cabe uma pergunta: será que o
comando cerebral, realmente, já teria arquivado a visão do “petit pan de mur jaune”? A sensação que acompanhou sua
descoberta em 1902 pode ter enriquecido a visão que foi arquivada na mente do
jeito que a viu, sem que nada ficasse ou fosse esquecido, mantendo-se intacto
por esses anos todos. O que pode parecer,
para muitas pessoas, esse pequeno
detalhe uma insignificância, para Marcel
era uma simbologia, um signo poderoso, gritante e vivo para retratar o
verdadeiro sentido da obra sob os efeitos da luz e da cor numa paisagem urbana
emoldurada ainda pelos raios do sol.
Vue de Delft - bacrie.com
As nossas observações carecem de maiores fundamentos, de fatos mais precisos porque não lemos os artigos escritos por Théophile Thoré-Burger e Vaudoyer, portanto não os conhecemos na íntegra. Caímos, então, no terreno da especulação. Se o primeiro, Thoré, descobre o pintor para o mundo da arte, julgando-o fantástico e misterioso, o segundo, que tomou conhecimento dessa descoberta, como toda crítica francesa, envolve-o numa característica de maior mistério ao trazer nova visão à sua pintura.
Vue de Delft - bacrie.com
As nossas observações carecem de maiores fundamentos, de fatos mais precisos porque não lemos os artigos escritos por Théophile Thoré-Burger e Vaudoyer, portanto não os conhecemos na íntegra. Caímos, então, no terreno da especulação. Se o primeiro, Thoré, descobre o pintor para o mundo da arte, julgando-o fantástico e misterioso, o segundo, que tomou conhecimento dessa descoberta, como toda crítica francesa, envolve-o numa característica de maior mistério ao trazer nova visão à sua pintura.
A visão momentânea, que foi,
então, conservada nos escaninhos do cérebro – memória esquecida – por anos e
anos a fio, quando ressurge, um dia,
será a mesma da visão do passado, original ? A sensação do retorno da memória poderá
se enriquecer com a repetição ou se
empobrecer diante de fatores negativos que a envolvam? Aquilo que, realmente,
marcou profundamente, acreditamos que não, como foi o célebre episódio da
Madeleine, que deu início a uma série de recordações que viriam povoar a mente
do relator da Recherche na escolha de sua vocação literária.
Chegamos à conclusão de que
Marcel Proust, em 1902, não tinha conhecimento do quadro Vue de Delft de
Vermeer. Poderia saber da existência do pintor, mas não lhe conhecia a famosa
pintura. Ao que tudo indica, ele viu, realmente , o quadro pela primeira vez
em 1902, em Haia. Não teria, pois, lido os artigos de Thoré, ressuscitando Vermeer. Conhecia, desse
modo, a pintura holandesa pela consulta
do livro de Fromentin, “Les Maîtres d’autrefois”. E nesse livro a referência a
Vermeer é muito pequena, não passando de três linhas. Quando visitou
a Holanda em 1898 tinha o interesse voltado para Rembrant,
Frans Hals, Pieter de Hooch. Só
em 1902, em Haia, Marcel Proust faz sua grande descoberta ao se ver diante da Vue de Delft, que o deixa fascinado a
ponto de passar a considerar Vermeer seu
pintor predileto. Em seu romance diz que
todas as pessoas cultas deviam conhecer Vermeer . Não mais afastou seu
pensamento da pintura de Vermeer, fazendo-o penetrar em toda Recherche. Da
visão de 1902 para a visão de 1921, o que mudou, verdadeiramente? Da primeira
visão, conserva-se a afirmação extasiada de que vira o quadro mais belo do
mundo. O que surge de diferente após sua
visita ao Jeu de Paumne ? Como teria
surgido o petit pan de mur jaune? Os artigos de Vaudoyer que levaram Marcel à exposição ?
Marcel Proust, que não escreveu nada sobre sua visita em 1921 ao
museu Jeu de Paume, em companhia de seu
amigo Vaudoyer, caminhava, no dia da exposição, com o busto curvado, trajando roupa escura e sóbria, um chapéu alto
e uma bengala, mas não querendo demonstrar
que sua doença o aniquilava, depois de uma noite difícil, tentando abrir os
olhos sob um sol ofuscante. Na verdade
ele se utilizou do que motivou sua ida à exposição
-- os artigos consagrados ao misterioso
Vermeer -- e o que verdadeiramente sentiu diante do quadro para redigir a cena
da morte do escritor Bergotte. Sua curiosidade, segundo George D. Painter, foi despertada pelos artigos de Vaudoyer,
publicados em L’Opinion, com certeza,
pelos “oitões (paredes laterais) que
lembravam preciosos objetos chineses”, os elogios de Melle.
Misme referindo-se aos “matizes dos telhados azulados ou vermelhos, os
muros-cor-de-rosa, a triste água verde e
a margem amarela do rio”. Conseguiu,
então, perceber a “ pequena mancha de
amarelo na parede” facilmente. Daí, no entendimento de Painter, Marcel Proust viu, na parte inferior direita do quadro,
logo à esquerda da primeira torre da comporta mergulhada em sombra, um fragmento de telhado colhido pelo sol
daquela eterna tarde de verão com a meia-água de sua distante janela de sótão.
Sob ela surgiu a “pequena mancha de
amarelo do muro”.
Detalhe Vue de Delft - art-deco.france.pagesperso-orange.fr
Entendemos que Luc Fraisse, ao analisar e comparar os trechos mais importantes dos artigos de Vaudoyer sobre Vermeer e os do episódio da morte de Bergotte, concluiu com muita precisão o seguinte:
Detalhe Vue de Delft - art-deco.france.pagesperso-orange.fr
Entendemos que Luc Fraisse, ao analisar e comparar os trechos mais importantes dos artigos de Vaudoyer sobre Vermeer e os do episódio da morte de Bergotte, concluiu com muita precisão o seguinte:
“De certo modo, todos os elementos que entrariam na composição do
célebre “petit pan de mur jaune” foram finamente focalizados por
Jean-Louis-Vaudoyer. Todavia, essa mistura íntima, essa vasta interpretação, essa imensa força,
enfim , conferida ao petit pan do quadro que se revela o fragmento de Vermeer,
o fragmento ao qual todo artista deve consagrar sua vida, considerando-o a
obra-prima acabada de sua arte – todo esse conjunto posterior foi de Proust,
unicamente de Proust, seu inventor.”
Outro crítico pesquisador, Charles Seymour Jr., formulou a hipótese de
Vermeer ter-se utilizado de uma câmara
escura para depois conseguir os efeitos de luz sobre a pintura.
Acreditava que a visão de Vermeer não teria nascido da visão direta da realidade,
mas de uma imagem refratada por intermédio de uma lente. Essa apreciação
crítica não interfere no interesse de Marcel Proust pela luminosidade do
quadro..
Segundo Kazuyoshi Yoshikawa
Proust teria também se inspirado nessa
passagem de Vaudoyer: “ces maisons de
briques, peintes dans une matière si precieuse, si massive, si pleine,
que, si vous en isolez une petite surface em oubliant le
sujet, vous croyez avoir sous les yeux aussi bien de la céramique que de la peinture.”. Nessa
crítica aparece a expressão “une petite surface”. Para ele, então, a expressão “petit pan de mur jaune” não se
encontra nos artigos do crítico, sendo, portanto, uma invenção de Proust. Assim
também pensam Jean Milly e, como já se analisou, Luc Fraisse. Desse modo, para
alguns, quando o quadro é visto em
cosonância com o texto de Proust, pode-se localizar a presença particular desse
muro, que é impregnado de um sol amarelo ao lado da Porta de Rotterdam. Muitos
não o reconhecem lá o “petit pan de mur jaune” , dizendo que o que aparece é um
teto e não um muro. Reconhecem à extrema
direita do quadro o muro sobre o qual transborda o alpendre do telhado da casa vizinha.
Proust
coloca o escritor Bergotte, personagem fictício de “A Prisioneira”, diante
do quadro de Vermeer. Bergotte compreende que não conseguiu atingir a seu
verdadeiro ideal artístico. E isso porque, para Proust, o petit pan de mur jaune – o símbolo da
perfeição -- representa a realização máxima da arte que ele, também, desejou
atingir em sua vida literária como
Vermeer conseguiu em sua pintura . O que poderia representar aquele muro ? Bergotte viu um muro nu, e esse muro nu
poderia ensejar muita coisa. Em segundos se transformou, teve a nítida impressão de estar diante de um
verdadeiro muro e não de um muro que o artista pintou o mais fielmente possível
vendo um muro verdadeiro. O muro do
quadro, então, salta como a mais viva
realidade, em sua vivência mágica.. É a perfeição máxima em pintura, pois ela
funciona como verdade absoluta e não como uma excelente cópia da paisagem. Bergotte vê pela primeira vez as
cores salientes do quadro: o rosa, o azul e o amarelo dourado, simbolizando o
desejo, a veneração e a arte. Ele, então, compreende que deveria ter mais cores
nos seus textos literários.
Detalhe Vue de Delft- tempoeroman.blogspot.com
O que Bergotte (isto é, Proust no Jeu de Paume, em 1921) viu -- petit pan de mur jaune -- no quadro de Vermeer existiu mesmo? A verdade é que aquele petit pan já fazia parte do souvenir de Proust quando ele se refere a Combray e evoca um clarão luminoso (De cote de chez Swann – Combray – 1ª. Parte).
Detalhe Vue de Delft- tempoeroman.blogspot.com
O que Bergotte (isto é, Proust no Jeu de Paume, em 1921) viu -- petit pan de mur jaune -- no quadro de Vermeer existiu mesmo? A verdade é que aquele petit pan já fazia parte do souvenir de Proust quando ele se refere a Combray e evoca um clarão luminoso (De cote de chez Swann – Combray – 1ª. Parte).
“Desse modo, por bastante tempo, quando acordava de noite e me
vinha a recordação de Combray, nunca
consegui rever mais que aquela espécie de traço ou lanço luminoso (pan lumineux), que era recortado no meio
de trevas indiferenciadas, semelhante aos que o acender de um fogo de artifício
ou certa projeção elétrica iluminam e seccionam em um prédio cujas outras
partes permanecem escuras e mergulhadas
dentro da noite: na base, muito larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o
trilho da alameda escura por onde
surgiria o Sr. Swann, inconsciente
autor das minhas tristezas, o vestíbulo
por onde me levaria para o primeiro degrau da escada, tão difícil de
subir, que, por si só, constituía o
tronco bastante estreito daquela pirâmide irregular;”
Sobre o assunto, Luc Fraisse esclarece que este pequeno pan “introduzido
muito tarde, em 1921, no romance , era como se estivesse sendo aguardado desde cedo, sempre, pela
obra.” Deste modo o pan vermeeriano
corresponde ao clarão luminoso ou iluminado do quarto de dormir onde o menino,
no começo da Recherche, aguardava
ansioso o beijo de sua mãe, após a saída de Swann. Ainda em Combray, em noites, antes do jantar, via o seu mundo pelo foco de uma lanterna
mágica, “que substituía a opacidade dos muros pelas impalpáveis irisações de
sobrenaturais aparições multicoloridas” Sabe-se que a irisação se dá com
a produção de cores do
arco-íris por refração da luz. O
fenômeno da cor tem grande importância na
Recherche. Ele via as cenas coloridas em que Golo, de vermelho,
ameaçava Geneviéve de Brabant, de azul, no interior de uma floresta verde, nas
proximidades do castelo em amarelo. Uma sinfonia de cores perpassava diante de
seus olhos ávidos pelo desenrolar da história, enquanto seu jantar era
preparado.
Germaine Brée relata que a vista de Delft já estava presente na descrição de Proust da igreja de Combray, em No caminho de Swann:
Germaine Brée relata que a vista de Delft já estava presente na descrição de Proust da igreja de Combray, em No caminho de Swann:
“A luz intrusa é sinal, em Combray, de felicidade, ambiência diversa daquela onde se desenrola a
vida, e ela envolve e penetra a
narrativa inteira, uma técnica que Proust entreviu na Vista de Delft, uma
iluminação cujo equivalente estilístico e estrutural propriamente literário ele
procurou intensamente.”
Quando Proust resolveu abandonar
a vida mundana e amorosa, sentiu que
havia perdido um precioso tempo com futilidades e romances que nada lhe
acrescentaram em sua vida emotiva e cultural,
e que, para tentar recuperar esse tempo, era necessário abraçar sua vocação e escrever,
finalmente, seu livro. Sentia que a “obra
de arte era o único meio de reencontrar o tempo perdido”. Apegou-se à
nova visão de vida como um naufrago em mar revolto agarra-se a uma tábua e
tenta chegar à margem segura e verdadeira:
“Compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, a minha vida passada; que tudo me viera nos
divertimentos frívolos, na indolência,
na ternura, na dor, eu acumulara como a
semente os alimentos de que se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe o destino
nem a sobrevivência. Como a semente, eu
poderia morrer quando a planta para qual eu vivera sem o saber, sem nunca
imaginar que minha vida devesse entrar
em contato com os livros que sonhara escrever e cujo assunto, quando outrora me
sentava à mesa de trabalho, buscava em vão.”
Detalhe Vue de Delft - ww2.ac-poitiers.fr
Detalhe Vue de Delft - ww2.ac-poitiers.fr
Um trecho do episódio que retrata a morte de Bergotte no museu Jeu de Paume: "Bergotte morreu
nas seguintes circunstâncias. Por causa de uma crise leve de uremia lhe haviam prescrito repouso. Lendo que um crítico havia encontrado na Vista
de Delft, de Ver Meer (emprestado pelo Museu de Haia para uma
exposição holandesa), quadro que ele adorava e acreditava conhecer muito bem,
uma pequena parte de muro amarelo (da
qual não se lembrava) tão bem pintada que, visto sozinha, era como uma
preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma,
Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros
degraus que teve de subir foi tomado por tonturas. Passou diante de vários
quadros e teve a impressão de secura e inutilidade de uma arte tão artificial,
e que não valia as correntes de ar e o sol de um palácio de Veneza, ou de uma
simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Ver Meer que ele recordava
mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo
do crítico, notou pela primeira vez os diminutos personagens de azul, que a areia
era rosa, e por fim a preciosa matéria da pequenina parte de muro amarelo. Suas
tonteiras aumentaram; fixou o olhar, como uma criança na borboleta amarela que
quer pegar, na preciosa parte de muro. “Assim é que eu deveria ter escrito",
dizia ele. Meus últimos livros são secos demais, seria preciso passar várias
camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse petit pan de
mur jaune.” Enquanto olhava, a gravidade das suas tonteiras não lhe escapava. Numa
balança celestial lhe aparecia, pesando num dos pratos, a sua própria vida,
enquanto o outro continha a pequena parte de muro tão bem pintada de amarelo.
Sentia que imprudentemente havia arriscado a primeira pela segunda. “Mas eu não
gostaria, disse para si mesmo, de vir a ser para os jornais da tarde a nota sensacional dessa exposição.” Ele se repetia: “Pequena parte de muro amarelo com um
alpendre, pequena parte de muro amarelo.” Nisso deixou-se cair sobre um canapé
circular; também bruscamente parou de pensar que a sua vida estava em jogo e, recobrando o otimismo, disse consigo: “É uma simples indigestão que me deram umas batatas mal cozidas, não é nada.” Uma nova crise o abateu, ele rolou do canapé
para o chão, quando todos os visitantes e guardas acorreram. . Estava morto. Morto
para sempre? Quem o poderá dizer ? (...) Enterraram-no, mas em toda a noite
fúnebre , nas vitrines iluminadas, os seus livros, dispostos de três
a três, velavam como anjos de asas abertas e pareciam, para aquele que não
vivia mais, o símbolo da sua ressurreição.”
Detalhe Vue de Delft - paperblog.fr
"Il
mourut dans les circonstances suivantes : Une crise d'urémie assez légère était
cause qu'on lui avait prescrit le repos. Mais un critique ayant écrit que dans
la Vue de Delft de Ver Meer (prêté par le musée de La Haye pour une exposition
hollandaise), tableau qu'il adorait et croyait connaître très bien, un petit
pan de mur jaune (qu'il ne se rappelait pas) était si bien peint, qu'il était,
si on le regardait seul, comme une précieuse œuvre d'art chinoise, d'une beauté
qui se suffirait à elle-même, Bergotte mangea quelques pommes de terre, sortit
et entra à l'exposition. Dès les premières marches qu'il eut à gravir, il fut
pris d'étourdissements. Il passa devant plusieurs tableaux et eut l'impression
de la sécheresse et de l'inutilité d'un art si factice, et qui ne valait pas
les courants d'air et de soleil d'un palazzo de Venise, ou d'une simple maison
au bord de la mer. Enfin il fut devant le Ver Meer, qu'il se rappelait plus
éclatant, plus différent de tout ce qu'il connaissait, mais où, grâce à l'article
du critique, il remarqua pour la première fois des petits personnages en bleu,
que le sable était rose, et enfin la précieuse matière du tout petit pan de mur
jaune. Ses étourdissements augmentaient ; il attachait son regard, comme un
enfant à un papillon jaune qu'il veut saisir, au précieux petit pan de mur. «
C'est ainsi que j'aurais dû écrire, disait-il. Mes derniers livres sont trop
secs, il aurait fallu passer plusieurs couches de couleur, rendre ma phrase en
elle-même précieuse, comme ce « petit pan de mur jaune. » Cependant la
gravité de ses étourdissements ne lui échappait pas. Dans une céleste balance
lui apparaissait, chargeant l'un des plateaux, sa propre vie, tandis que
l'autre contenait le petit pan de mur si bien peint en jaune. Il sentait qu'il
avait imprudemment donné le premier pour le second. « Je ne voudrais pourtant
pas, se disait-il, être pour les journaux du soir le fait divers de cette
exposition. »
Il
se répétait : « Petit pan de mur jaune avec un auvent, petit pan de mur jaune.
» Cependant il s'abattit sur un canapé circulaire ; aussi brusquement il cessa
de penser que sa vie était en jeu et, revenant à l'optimisme, se dit : « C'est
une simple indigestion que m'ont donnée ces pommes de terre pas assez cuites,
ce n'est rien. » Un nouveau coup l'abattit, il roula du canapé par terre, où
accoururent tous les visiteurs et gardiens. Il était mort. Mort à jamais ? Qui
peut le dire ? (...) On l'enterra, mais
toute la nuit funèbre, aux vitrines éclairées, ses livres, disposés trois par
trois, veillaient comme des anges aux ailes éployées et semblaient, pour celui
qui n'était plus, le symbole de sa résurrection. »
Assim,
estamos diante de duas obras-primas da
cultura universal, o romance A Prisioneira , de Marcel Proust e o quadro Vue de
Delft, de Vermeer. Marcel Proust e Vermeer, dois gigantes.
Museu JEU De PAUME - webluxo.com.br
Voltemos a 1921, à exposição de Vermeer no Museu Jeu de Paume. Um homem, elegantemente trajado, está diante do quadro Vue de Delft e o admira como se o tivesse visto pela primeira vez, embora o tenha visto, em Haia, em 1902. 19 anos se passaram. Alertado pelo amigo crítico, ele procura identificar o que sua visão não reteve durante esses anos. Ao longe, seu olhar se fixa num determinado ponto, uma pequena parte do muro amarelo que lhe chama a atenção. Aquele pedaço de muro, uma pequena parte emoldurada pelos raios do sol o arrasta para os subterrâneos do seu inconsciente para tentar estancar a emoção e a felicidade que transbordam borbulhantes em seu interior, ameaçando sufocá-lo. E é diante dessa sensação desconhecida que deve ter ocorrido a súbita transformação no impacto de um relâmpago, quando passado e presente se fundiram numa verdadeira explosão emocional na descoberta, pela memória, de Combray, que surge em pleno museu, com quase 50 anos de atraso. E ele se vê, finalmente, já liberto da sufocação emocional, com sua lanterna mágica, diante da Vue de Delft, admirando as aparições multicoloridas do rosa do desejo para o azul da veneração, quando então é sublimado no amarelo da arte o « petit pan de mur jaune », que estava dentro dele mesmo por todos esses anos e que, graças ao artigo do crítico, ressurgia naquele pontinho amarelo, simbolo da arte suprema e perfeita, ao mesclar o presente e o passado numa sensação revivida que transformou Marcel Proust ( ou Bergotte) num ser ëxtratemporal, num tempo puro, alheio a tudo que não fosse aquele foco jaune, como o episódio da madeleine, quando o narrador, enebriado pelo que acontecia, perguntava a si mesmo : « Será que vai chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a atraçào de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do fundo de mim ? (...) E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram , se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências,e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá. »
Museu JEU De PAUME - webluxo.com.br
Voltemos a 1921, à exposição de Vermeer no Museu Jeu de Paume. Um homem, elegantemente trajado, está diante do quadro Vue de Delft e o admira como se o tivesse visto pela primeira vez, embora o tenha visto, em Haia, em 1902. 19 anos se passaram. Alertado pelo amigo crítico, ele procura identificar o que sua visão não reteve durante esses anos. Ao longe, seu olhar se fixa num determinado ponto, uma pequena parte do muro amarelo que lhe chama a atenção. Aquele pedaço de muro, uma pequena parte emoldurada pelos raios do sol o arrasta para os subterrâneos do seu inconsciente para tentar estancar a emoção e a felicidade que transbordam borbulhantes em seu interior, ameaçando sufocá-lo. E é diante dessa sensação desconhecida que deve ter ocorrido a súbita transformação no impacto de um relâmpago, quando passado e presente se fundiram numa verdadeira explosão emocional na descoberta, pela memória, de Combray, que surge em pleno museu, com quase 50 anos de atraso. E ele se vê, finalmente, já liberto da sufocação emocional, com sua lanterna mágica, diante da Vue de Delft, admirando as aparições multicoloridas do rosa do desejo para o azul da veneração, quando então é sublimado no amarelo da arte o « petit pan de mur jaune », que estava dentro dele mesmo por todos esses anos e que, graças ao artigo do crítico, ressurgia naquele pontinho amarelo, simbolo da arte suprema e perfeita, ao mesclar o presente e o passado numa sensação revivida que transformou Marcel Proust ( ou Bergotte) num ser ëxtratemporal, num tempo puro, alheio a tudo que não fosse aquele foco jaune, como o episódio da madeleine, quando o narrador, enebriado pelo que acontecia, perguntava a si mesmo : « Será que vai chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a atraçào de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do fundo de mim ? (...) E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram , se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências,e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá. »
O « petit pan de mur jaune » é um importante signo da arte
porque a essência da obra de arte
se incorporou na cor amarela da Vue de Delft
de Vermeer, espiritualizando-a e tornando-a
imaterial, características dos signos
artísticos. Também pode-se dizer que a
sensação que Proust sentiu diante do quadro fê-lo buscar, no petit pan de mur jaune, a Combray do seu passado pela reminiscência e descoberta.
Detalhe Vue de Delft - essentialvermeer.com
Detalhe Vue de Delft - essentialvermeer.com
Sobre o que Marcel Proust viu em
1902, em Haia, diante da Vue de Delft apenas ficou documentada sua expressão
extasiada de ter visto o quadro mais belo do mundo. Nenhuma referência de sua
parte sobre o petit pan de mur jaune. A sua memória involuntária não foi aguçada por
nenhuma reminiscência. Nada lhe chegou. Só ficou mesmo o registro da beleza do
quadro visto. E sobre onde fica este
ponto, este pano, este fragmento,esta parte do muro amarelo, que Prostou
reviu em 1921, não há unanimidade, não
há um consenso absoluto. Em que local do quadro, dentre os que exibem tons de
amarelo, Proust se fixou e se
deslumbrou ? Só ele poderia
responder diante da profunda emoção que o dominou. Só ele, o resto são
especulações ou outras emoções vividas pelos decifradores de Proust.
Quantas pessoas não se emocionarão ainda diante da simbologia das cores de
Vermeer ? Há inclusive várias teorias sobre os três pontos
que emitem a cor amarela do
quadro, cujos autores tentam advinhar
o interesse de Marcel Proust.
Mas, para saber onde localizar o exato ponto de fixação de Marcel Proust seria necessário adivinhar em que ponto, em
que muro de Combray, ou se apenas por uma cor vibrante
« jaune » ele avistou um pan
lumineux que o cobriu de emoção, permitindo que essa emoção esquecida por
tantos anos, ressurgisse, evandindo-se do seu mais recondito interior,
para engrandecer a descoberta da beleza
na verdadeira criação literária, com a consequente homenagem
à arte, simbolizada na morte fulminante de Bergote diante do
« petit pan de mur jaune » da
Vue de Delft.