OS TRABALHADORES DO MAR
- Victor Hugo. Tradução de Machado de Assis.
Victor Hugo, em seu romance
“Os trabalhadores do mar”, diz que
quando uma rocha é próxima da costa ela pode ser visitada pelos homens, sem
problemas, com facilidade. Porém quando essa rocha fica em alto mar, não há como visitá-la. E isso é compreensível porque não há nada que
interesse ao homem para ser visto. Não há árvores, nem animais, nem fontes. É
uma nudeza numa solidão. É uma rocha,
simplesmente uma rocha, com declives fora da água e pontas debaixo da
água. Só há o mar. O mar tem ali o seu
domínio absoluto, sem nenhuma conotação
terrestre.
Assim a define “ Nessa
montanha, que lhe pertence o mar faz para si antros, santuários,
palácios; tem uma vegetação hedionda e esplêndida; compõe-se de ervas flutuantes que mordem e monstros que
se enraízam ; mete na sombra da água
essa horrível magnificência. O mar desenvolve ali a gosto seu lado misterioso e inacessível ao homem. Depõe ali
as secreções vivas e horríveis. Acha-se
ali todo o ignorado do mar.”
Para o autor, os elementos
que compõem o rochedo, formam verdadeiras construções, vendo um verdadeiro
estilo arquitetônico nessa formação oceânica, que se lhe apresentam com “o
embaraçado do pólipo, a sublimidade da
catedral, a extravagância do pagode, a
amplidão da montanha, a delicadeza da
jóia, o horror do sepulcro. Tem alvéolos como uma colméia, latíbulos como pátio
de bichos, túneis como um combro de
toupeiras, cárceres como uma bastilha,
emboscadas como um campo. Têm portas , mas tapadas, colunas, mas truncadas, torres, mas
inclinadas, pontes, mas despedaçadas.”
Continua : “ A figura
arquitetural transforma, desconcerta-se , afirma e nega a estática, quebra-se, detém-se,
começa em arquivolta, acaba em arquitrave;
seixo sobre seixo. Terríveis
abóbodas pendentes ameaçam cair, mas não caem. Ninguém sabe como se
seguram esses edifícios vertiginosos. Declives, lacunas, suspensões insensatas; desconhece-se a lei desse babelismo.”
O autor considera o
rochedo Douvres como uma verdadeira obra
prima da arquitetura oceânica. Sua construção
e aperfeiçoamento obedeceu aos ímpetos do mar, tornando-o hediondo,
pérfido, obsscuro, cheio de cavas. Tinha um sistema de veias
que eram fendas submarinas, ramificando-se em profundezas insondáveis. Muitos orifícios desse rasgão inextrincável
ficavam a seco nas vazantes.
Acentua : “Há quarenta anos,
duas rochas de forma extraordinária
assinalavam de longe o rochedo Douvres. Eram duas pontas verticais agudas e
recurvadas, tocando-se quase no cume. Parecia
ver-se irrompendo do mar dois dentes de um elefante engolido. Mas eram
dentes de tamanhos de que só
poderiam pertencer a elefantes de
tamanhos de uma montanha. Essas duas
torres naturais da obscura cidade dos monstros não deixavam entre si mais que uma passagem estreita onde a vaga
se atirava. Essa passagem , tortuosa e
de alguns côvados de comprimento, parecia um pedaço de rua entre duas paredes.
A essas duas rochas gêmeas
chamava-se as duas Douvres.
Havia a grande Douvre e a pequena Douvre; uma tinha 60 pés de altura e outra tinha 40.
O vaivém das ondas fez na
base dessas torres um aspecto da
serra, e o violento equinócio de 26 de outubro de 1859 derrubou uma delas. A
que ficou, a pequena, está mutilada e gasta.
Um dos mais estranhos rochedos do grupo Douvres chama-se o Homem. Esse ainda existe. No século passado alguns pescadores, perdidos naqueles rochedos,
acharam um cadáver . Ao pé do cadáver
havia uma porção de conchas vazias.
Tinha naufragado ali um homem, refugiou-se
naqueles rochedos, alimentou-se algum tempo de conchas, até que morreu. Veio
daí chamar-se Homem ao rochedo. São singulares as solidões da água. É o túmulo e o silêncio. O que aí se faz já nada tem com o gênero humano. É a utilidade desconhecida. Tal é o
isolamento do rochedo Douvres. Em derredor, a perder de vista, o imenso
tormento das vagas.”
O romance “Os Trabalhadores do Mar” narra a vida de um
marinheiro, Gilliatt, que, apaixonado
pela jovem Déruchette, trava, em um local considerado extremamente perigoso por
navegadores de todo o mundo (o rochedo Douvres), verdadeira luta contra as
poderosas forças da natureza, ao tentar impedir que a máquina essencial de uma
embarcação a vapor se perca no fundo do
mar.
O escritor dedica seu
livro “ ao rochedo de hospitalidade e de liberdade, a este canto da velha terra
normanda onde vive o nobre e pequeno povo do mar, à ilha de Guernesey (ou
Guernsey), severa e branda, meu atual asilo, meu provável túmulo.”.
O polvo (aquarela de
Victor Hugo) (1866)
O editor, à guisa de apresentação, escreve na
primeira página:
“A religião, a
sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três lutas são ao
mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o templo; precisa
criar, daí a cidade; precisa viver, daí a charrua e o navio. Mas há três
guerras nessas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da vida. O
homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma superstição, sob a forma
preconceito e sob a forma elemento. Tríplice 'ananke' pesa sobre nós, o 'ananke'
dos dogmas, o 'ananke' das leis, o 'ananke' das coisas. Na Notre-Dame de Paris,
o autor denunciou o primeiro; em 'Os Miseráveis', mostrou o segundo; neste
livro indica o terceiro. A essas três fatalidades que envolvem o homem,
junta-se a fatalidade interior, o 'ananke' supremo, o coração humano. (Obs.:
'ananke': palavra grega para fatalidade).” (Wikipedia).
É belíssima a
descrição de um edifício debaixo do mar:
“A grota, donde ele
saíra, ia ter a mesma saliência estreita e viscosa, espécie de vulcão na muralha
a pique. Gilliat encostou-se à
muralha e olhou.
Estava numa grande
cava. Tinha acima de si alguma coisa
semelhante ao interior de um crânio
dissecado. E parecia dissecado ao
fresco. As nervuras gotejantes das estrias do rochedo imitavam na abóbada as fibras e as suturas dentadas de uma caixa óssea. Por teto, a
pedra; por assoalho, o mar, as on das
apertadas entre as quatro paredes da grota pareciam vastos ladrilhos flutuantes.
A grota estava fechada por todos os lados.
Nenhuma trapeira, nenhum respiradouro, nenhuma fenda na parede, nenhuma
racha na abóboda. A luz vinha de baixo, através da água. Era um resplendor tenebroso.” (...)
“Gilliat via diante dele, debaixo da
vaga, uma espécie de arcada afogada.
Essa arcada, ogiva natural,
trabalhada pela onda, era brilhante entre as duas colunas profundas e negras. Era
por aquele pórtico submergido que entrava na caverna a claridade do alto mar. Luz estranha que vinha
por um buraco na água.
Essa claridade
esvazia-se debaixo da água como um largo
leque e repercutia no rochedo. Os raios
retilíneos, cortados em longas fitas retas, sobree a opacidade do fundo, clareando ou
escurecendo de uma anfratuosidade a outra, imitavam interposições de lâminas de vidro. Havia luz,
mas luz desconhecida. Já não era a nossa luz. Podia-se crer que se estava em
outro planeta. A luz era um enigma; dissera-se o verde clarão da pupila de uma
esfinge. A cava figurava o interior de
uma cabeça enorme; a esplêndida abóboda era o crânio, e a arcada era a boca;
não havia buraco dos olhos. A boca engolindo e vomitando o fluxo e o refluxo,
aberta em pleno meio-dia exterior, bebia
a luz e vomitava o amargor.
A abóboda, com seus
lóbulos quase cerebrais e as suas ramificações semelhantes a nervos, tinha um
fraco reflexo de crisópraso. O chamalote
da onda, reverberado no teto, decompunha-se e recompunha-se constantemente,
alargando e estreitando as suas rodas de ouro com um movimento de dança
misteriosa. Saía dali uma impressão
espectral; o espírito podia perguntar que presa ou que espera era aquela que
fazia tão alegremente aquele magnífico filete de fogo vivo. Nos relevos da abóboda e e nas asperidades da
rocha pendiam longas e finas vegetações banhando provavelmente as raízes
através do granito em alguma toalha de água superior, e desbagando, nas pontas,
uma gota de água, uma pérola. Essas
pérolas caiam no golfão com um pequeno rumor, Todo esse conjunto era
inexprimível. Não se podia imaginar nada mais lindo nem mais lúgubre.
Era o palácio da
Morte, alegre.”