A Pérola
Elsa Caravana Guelman
Marcelo
acordou mais cedo do que esperava naquela manhã ensolarada de terça-feira.
Assim que conseguisse tomar o café, iria
esticar o mais que pudesse o dia que se iniciava na praia e no embalo das ondas. Começou a cantarolar
baixinho, quando um forte barulho o fez, num
instante, saltar da cama. Tocavam a campainha do portão estridentemente,
havia gritos e um alvoroço geral. Chegou à janela e viu lá embaixo algumas
pessoas. Reconheceu, entre os outros, o maître do restaurante Pérola, Edgard,
que, ao vê-lo, gesticulando nervosamente exclamou:
- Patrão, estamos a sua espera
no restaurante para decidir como será o dia, se os cardápios continuam os
mesmos ou se vai haver alguma modificação. Foi tudo tão de repente!
Marcelo não entendeu nada. Pediu
que esperasse um pouco, enquanto se arrumava para descer, quando, então,
conversariam. Conhecia Edgard há muito tempo e, na maioria dos dias, o via no restaurante quando lá almoçava. Por que teria vindo à sua casa tão
cedo? O que quereria? Por que o chamava de patrão? Não tinha nenhuma ligação
com a dona do restaurante, Giovana, uma italiana simpática e alegre, a quem endereçava
somente um simples bom dia ou boa tarde, enquanto a maioria dos clientes tinha
muito mais intimidade com ela, era alvo de muitos galanteios e gentilezas, mas
não da parte dele. Talvez, até, por timidez.
No portão encontrou Edgard,
acompanhado dos garçons e de um homem de estatura baixa e óculos escuros que,
mais tarde, ficou sabendo ser o contador do restaurante.
- Vamos, patrão, não temos muito
tempo. O melhor será, na minha opinião, manter o mesmo cardápio que vinha sendo
utilizado pela dona Giovana. Com o tempo,
a gente vai fazendo as
modificações. Desculpe se estou me adiantando, isso agora vai competir ao
senhor que é o novo proprietário do restaurante. Esperamos pelo senhor a noite
toda e, como não apareceu para nos dar as novas, viemos logo cedo à sua casa.
Marcelo cambaleou, tomado de supresa e susto.
Gaguejou:
- Do que é que vocês estão
falando? Estarei louco, por acaso? Que
história é essa de restaurante?
- Doutor Marcelo, não brinca com
a gente, já sabemos de tudo! Aqui está o contador, que já passou tudo para o
seu nome, está com o documento expedido
pela Junta Comercial, uma comunicação aos fornecedores da sua nova gestão.
- Não, isto é uma brincadeira de
péssimo gosto. Onde está dona Giovana?
- D. Giovana viajou para a
Toscana, terra de seus pais, logo após
ter-se entendido com o senhor, foi o que nos disse que faria. Estava eufórica,
pois fizera um excelente negócio. Tinha certeza da vitória do novo restaurante.
Vamos lá, a documentação está à sua disposição. Se algo saiu errado, não temos
nada com isso. Somos seus empregados, agora.
O senhor é o nosso patrão. E vou até confidenciar alguma coisa, entre os
empregados há quem ameace entrar na Justiça
para garantir seus direitos, se a mudança não corresponder às expectativas.
- Edgard, você me conhece há
anos. Eu sou um cliente assíduo. Tenho até a minha mesa, no canto da sala. Não
sou nenhum maluco, tenho os pés no chão. Não sou dono de restaurante nenhum, sou
veterinário. A última coisa que eu faria na minha vida seria montar um
restaurante, não entendo do negócio e nem me interesso por esse assunto.
Escolho diariamente o que comer e beber e pronto. É claro que gosto de uma
comida original, sofisticada, gostosa, mas isso não significa pendor para
dirigir um restaurante. Nunca mantive sequer uma conversação com dona Giovana
sobre o assunto. Ela sempre me viu como um cliente isolado, caladão, dentro do
meu mundo, embora eu admirasse a sua capacidade e a versatilidade de seus
pratos tão elogiados por todos. Isso não significa que eu tenha comprado seu
restaurante. Todo dinheiro que tenho está investido no banco e é só eu telefonar
para lá e ver que tudo continua na mesma situação.
- Pois foi do dinheiro que o
senhor lhe pagou que ela comprou euros
para viajar. Uma alta soma, à vista. Por que nos esconde isso, o que receia, Doutor Marcelo?
- Vou tirar logo essa dúvida sua.
Telefonarei ao banco e falarei com meu gerente.
- Sim, mas vamos também ao
restaurante para o senhor ver a papelada toda.
Foram. O restaurante ficava perto, bastava
caminhar poucas dezenas de metros. Marcelo tinha certeza de que poderia provar que
tudo não passava de um grande engano.
Entraram por uma porta lateral e foram diretamente ao escritório, de onde
imediatamente ligou para o banco, sem sequer querer examinar os documentos que
Edgard empunhou, mas empalideceu ao
verificar que, no dia anterior, havia sido feita uma retirada alta em sua conta,
após o valor ser baixado de seus investimentos. Era o exato valor da compra do
restaurante, como logo pôde ver, ao arrancar os documentos da mão de Edgard.
- Não sei o que dizer, estou desnorteado...
Algo de muito estranho está acontecendo e não tenho, eu lhes juro, nenhuma
explicação. Só de uma coisa eu tenho certeza, eu não comprei nenhum
restaurante, isto é uma loucura. Repito, seria a última coisa que eu faria na
vida.
Marcelo verificou, então, toda a
papelada que lhe foi apresentada, ouviu todas as explicações do contador,
comprobatórias de que, realmente, ele comprara o restaurante. Era o novo dono e
teria de encarar essa realidade, quisesse ou não. Ordenou, então, que fossem mantidos
os cardápios anteriores correspondentes aos dias da semana. Quanto ao
restaurante e seu funcionamento, nada mudaria. Não tinha cabeça para mexer em coisa
alguma, naquele momento, nem saberia como operar mudanças de uma hora para
outra. Tudo continuava a parecer-lhe absurdo, mas resolveu ir até o salão de refeições.
Era um salão amplo, já o
conhecia bem, das vezes em que nele almoçara ou jantara, tinha mesas menores e
outras maiores, bem dispostas e ordenadas, com toalhas brancas de linho que
tinham desenhos ondulados azuis, buscando dar a impressão de ondas do mar. Havia apenas um grande lustre no meio do teto,
que iluminava bem as mesas centrais mas era também responsável pela atmosfera
de penumbra nas mesas encostadas às paredes, nas quais havia pequenos apliques
de luz e em que se viam paisagens marítimas, com grutas onde ninfas repousavam sobre pedras. Outras
pinturas faziam lembrar as vinte mil léguas submarinas de Júlio Verne, havia
uma representação do capitão Nemo dirigindo o Nautilus em sua busca no fundo
dos mares. No final do salão, dando para a saída lateral do restaurante, havia
um grande aquário com uma infinidade de peixes e, no pátio interior, um tanque também
com peixes. Atrás do balcão de recepção, um quadro exibia uma concha
entreaberta e seu conteúdo fantástico,
uma pérola deslumbrante. Daí, o nome do
restaurante.
Como é que ele poderia ter-se tornado dono de tudo isso, de uma hora para
outra? Nunca acontecera nada, ele tinha certeza. Sentia-se vítima de uma
alucinação, não participara de coisa alguma, nunca fora sequer consultado. Por
que ? Tantos e tantos clientes diários, pessoas significativas, que poderiam
trazer idéias renovadoras, criando brilhantes situações para o crescimento do restaurante.
E, no entanto, ele!
Buscou a mesa em que costumava sentar-se no canto do salão, estava posta;
tentou acalmar-se, não sabia ainda como conseguiria viver aquela vida que se transtornara subitamente. Não poderia
ser real e, no entanto, a documentação
apresentada comprovava que ele era realmente o dono do Pérola. Por mais que
remexesse no mais recôndito de seus
pensamentos, ele não conseguia achar uma pista, nada. Sentou-se como fazia
sempre, quase que dia após dia, desde e inauguração do Pérola. Esperaria o
almoço, comeria o de sempre.
Quando a porta foi aberta, os clientes entraram e todos o cumprimentaram,
como se já soubessem que ele era o novo dono. Sorriu para todos. Seu sorriso se
iluminou ainda mais quando ela chegou.
Era Gabriela, de olhos profundos,
cabelos longos, esbelta, elegantemente vestida, um terno de jeans, uma blusa
bege. Sentou-se e seus olhos encontraram os dele. Ela sorriu-lhe,
discretamente.
Marcelo não conseguia deixar de olhar para ela. O garçom veio atendê-la e
ela fez o pedido. Nunca se haviam falado, apenas sorriam sempre, um para o
outro, quando se encontravam, ela também não costumava conversar com nenhum dos
outros clientes. Vinha almoçar, sempre à
mesma hora, e, ao terminar, se levantava e saía. Será que ela já sabe da novidade? – ele imaginou.
Não lhe cabia dizer nada, foi o que pensou, esperaria que ela soubesse. Naquele
dia, ela parecia estar com um pouco de pressa, porque desistiu da sobremesa,
que demorava, e, levantando-se da mesa, antes de ir embora, inexplicavelmente
olhou para Marcelo e o cumprimentou, sorrindo de novo, agora de forma ainda
mais intensa, acenando para ele, como se lhe desse parabéns.
Sentiu vontade de acompanhá-la, seria emocionante levá-la ao trabalho
(tinha certeza de que trabalhava, mas onde, em quê?), contar as horas que por lá
demorasse, esperá-la sair e, novamente, a conduzir até onde quisesse ir e ficar.
No entanto, conteve-se, ficou preso no òesela deixava o recinto e ganhava a
rua.
Foi a intensidade maior do sorriso dela, naquele dia, e esse aceno, que
nunca dantes fizera, que o convenceu a aceitar essa nova e inexplicável vida
que para ele se abria, como dono, agora, do Pérola. Daí em diante, passou a Interessar-se
pelos problemas e pelas necessidades do restaurante, comprou livros de
culinária, modificou receitas, acrescentou novos pratos ao menu. Em pouco
tempo, tornou-se um expert na matéria. Passou
a andar de mesa em mesa, ouvindo
opiniões e sugestões dos clientes (nas horas em que Gabriela não estava), recebendo
elogios e, em pouco tempo, tornou-se um outro homem, enquanto o sorriso de
Gabriela, quando ela vinha, aumentava de intensidade a cada dia que se passava.
Era um sorriso que o arrastava e o imobilizava, ao mesmo tempo. Precisava
decidir, e rápido, o que fazer em relação a ela, mas a timidez excessiva o
tolhia.
Numa noite, quando o último cliente saiu e os empregados, todos, deixaram
seus postos, Marcelo resolveu ficar até mais tarde para, sozinho, curtir seu
restaurante. Apagou as luzes do lustre central e deixou acesas somente as das
paredes laterais, mais fracas, que iluminavam as pinturas. O salão, assim
alumiado, criou como que vida nova, cresceram as figuras dos quadros como se parecessem
querer sair das paredes em que estavam aprisionadas, libertar-se para descobrir
os segredos e participar ativamente do ambiente. De repente, uma nereida, saída de seu palácio
no fundo do mar, como que veio
imobilizar-se sobre uma pedra que a água lambia, tendo ao fundo uma gruta
marinha, como se aguardasse a chegada de seu tritão preferido, sacudindo a
vasta cabeleira, para um e outro lado, até, finalmente, atirar-se às águas.
Foi nesse momento que Marcelo se deu conta de todas essas mudanças e
transformações que atingiam sua pacata vida. Sentia dentro dele duas criaturas,
dois Marcelos, dois eus, formando as duas faces do seu ego. Enquanto um, o
Marcelo anterior ao restaurante, mantinha a serenidade, a placidez de sua personalidade
de sempre, o outro, o Marcelo posterior à nova realidade do restaurante,
personificava o novo aspecto, ativo, atuante. Ali estavam, num mesmo corpo, o Eu e o Outro, o inerte e o
criativo, como um Jano bifronte encarando o passado e, ao mesmo tempo, o futuro,
mas ambos importantes, significativos e
coesos em sua existência, não podendo dissociar-se, existir separadamente. Nessa
noite de transformações, dormiu veterinário e acordou dono de restaurante. O
tempo, que atingiu um dos eus e modelou o outro, como que parou por um instante, para que
Marcelo tivesse, nessas horas precisas e preciosas, o verdadeiro retrato,
agora, de sua vida.
Sentiu o perfume suave de Gabriela envolvendo-o e procurou-a pelo salão.
Não a encontrou, nem na nereida e nem nas outras ninfas dos murais das paredes.
Do perfume, imaginou o sorriso. Fechou os olhos profundamente e procurou reter esse
seu sorriso, que se prolongou até que se sentiu um pouco tonto e abriu os olhos
na esperança, agora concreta, de vê-la. Era o outro que a buscava, era o outro
que decidira o que fazer no dia seguinte, quando a visse na hora do almoço. Ele
iria firme e resolvido, sugado pelo seu sorriso e ela saberia, finalmente, que
era a mulher de sua vida, a sempre esperada.
Um enorme relógio cuco, com seus bonecos dançarinos, soou e o fez
retornar à realidade. Marcelo apagou as luzes que iluminavam as pinturas das
paredes. Já era bem tarde, sentia-se agora, realmente, um tanto cansado, um
tanto hipnotizado por aquelas figuras e
os efeitos da noite. Olhou o salão às escuras
e percebeu que a tranquilidade voltara ao recinto. Quando chegou em casa,
ficou em dúvida se fechara a porta do restaurante. Não pensou mais, deitou-se e
dormiu.
O sol entrou em cheio e se esparramou de repente por todo o quarto.
Marcelo abriu os olhos e tentou afastar os raios que o cobriam, pois esquecera
ou nem se lembrara de fechar a janela na noite passada, de tão esgotado
chegara. Num pulo, saiu da cama, tomou um banho rápido. Chegaria na hora
do almoço, já bastante atrasado, mas o que fazer? Estava em vias de tomar
decisões importantes, resultantes das reflexões noturnas no salão do
restaurante. Depois, ao que tudo indicava, a presença dele não estava sendo
sequer exigida. E isto era um bom sinal, excelente mesmo, sinal de que tudo
estava correndo às mil maravilhas, que
ele poderia ter dormido um pouco mais para compensar a noite feérica que
vivera. Só uma coisa o preocupava, só uma coisa lhe tirava o sossego: chegar
depois de Gabriela. Queria estar lá para recebê-la.
Quando chegou ao restaurante, pareceu-lhe achar, no
entanto, algo estranho. As mesas estavam, em sua maioria, ocupadas. Edgard
estava na porta e sorriu, à sua chegada, fazendo-lhe um sinal amistoso.
- Sua mesa já está pronta, Doutor Marcelo. O Boeuf Bourguignon está uma
delícia!
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, Doutor Marcelo, está tudo bem. Pode entrar, Dona Giovana já
chegou.
- Dona Giovana?! Mas ela não vendeu o restaurante e viajou para
a Toscana?
- Que é isso, Doutor Marcelo?! Olhe,
ela andou dizendo, sim, há muito tempo, que um dia pretendia vender o
restaurante e voltar para a Toscana. Mas está firme e segura no comando, acho
que nunca pensou nisso de verdade.
Ficamos fechados dois dias para reforma da cozinha. O senhor nem veio aqui, eu até o vi na praia, tomando
sol.
Marcelo estremeceu e, trêmulo, entrou no salão. Tudo aquilo parecia uma nova brincadeira, não
tinha a menor explicação. A situação se invertera. Dormira dono do restaurante
e acordara veterinário. Reparou que sua antiga mesa estava com a toalha branca de ondas
azuis, tendo por cima uma flor, a de sempre também. Não dava para entender.
Olhou para o balcão da recepção e lá estava, sorridente, Dona Giovana. Na certa vivia um novo pesadelo, talvez não tivesse
acordado, ainda. Eram os efeitos da noite, com certeza. Ouviu, então, a voz da dona
do restaurante:
- Dr. Marcelo, apresento-lhe um novo cliente, Dr. Alan, ele é, como o
senhor, também veterinário, é seu
colega.
O novo cliente levantou-se e veio cumprimentar Marcelo efusivamente, disse
algumas palavras, que ele nem ouviu direito, retornando, após, à sua mesa.
Marcelo se sentia tão esmagado como no dia em que assumira (assumira?) o restaurante. Sentou-se e esperou que lhe servissem o
almoço. Foi quando ela, Gabriela, entrou, vestindo um novo e elegante terninho,
com um lenço esvoaçante no pescoço. Sorriu
debilmente para Marcelo, como sempre fazia. Foi, também, apresentada ao novo cliente,
Dr. Alan, limitando-se a dizer “prazer”. Terminado o almoço, levantou-se e saiu
apressada.
Marcelo ficou no seu canto de mesa, tão sozinho e tão deprimido, imerso
em seus pensamentos, no que seriam as recordações da noite. Talvez tentasse, mais
tarde, por vezes e vezes, entender, sempre infrutiferamente, o que acontecera,
mas ele sentia que a tinha perdido, definitivamente, para as águas borbulhantes
e profundas daquele mar imaginário pintado nas paredes. Gabriela poderia continuar retornando ao restaurante,
esboçar, todo dia, para ele, seu débil sorriso de Gioconda, mas ele a havia
perdido, em definitivo, para aquelas águas noturnas que pareciam transbordar na
parede, as águas daquele profundo e onírico mar em que conseguira (ele também?)
mergulhar naquela estranha véspera. Ela era a pérola, deslumbrante e
fantástica, que ele entrevira, retornando à sua eterna concha.