quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O CAPACHO do mundo dos Guermantes.

O CAPACHO:

Elsa Caravana Guelman


Para o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis.  Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o naturalista  reconstitui populações animais a partir dos ossos, e florestas  a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se  uma nova idéia de artista.  O artista é aquele que viaja  nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo  sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E,  nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira  de uma sociedade, de um tempo,  de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.”
Para Novalis "O homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala, linguagens infinitas"..
Segundo  Rancière,  o novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado
 Mitologizar para Lacan significa incorporar numa mesma  história elementos que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia.
O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real  E é por essa apresentação mágica e viva que ele  é mitologizado no entender de Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício,  colorido e imortalizado pelo seu passado e lendas medievais.
Diante dele o herói se detém, como se muralhas gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória, quando, por um  toque mágico, o capacho não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura, de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente,  ao mundo imaginário dos Guermantes para então  ser transportado, em seguida, ao mundo da arte.
. Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante onde as pessoas, quando convidadas,  limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos Guermantes. Nada mais que isso.  Para Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que se  achava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação exóticas, o capacho gasto da margem.”

O capacho dos Guermantes, como mito,  representava a linha divisória intransponível entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul  no mapa mundi.
É através do mito que um objeto   insignificante ganha significação simbólica.. O Capacho torna-se, então,  falante, numa linguagem infinita,  e passa a  exibir  " as marcas de sua história e os signos de sua destinação." porque foi mitologizado, entregando, desse modo,  seu  segredo,  pela  incoporação do real e do imaginário..

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Marcel Proust - À Sombra das Raparigas em Flor - 22 de dezembro de 2013 às 17:42 O AQUÁRIO DO GRANDE HOTEL DE BALBEC Elsa Caravana Guelman Marcel Proust, segundo André Alain Morello, responsável pelas Notas constantes do livro À Sombra das Raparigas em Flor, num “bathyscaphe”, convida seus leitores para um mergulho profundo nas águas para explorar o mundo submarino, tal qual o capitão Nemo no Nautilus. O autor observa atentamente uma noite em que as fontes de luz iluminavam a grande sala de jantar do hotel. Comparou o que seus olhos captaram a um imenso aquário, vendo-se pela parede de vidro a população operária de Balbec, os pescadores e pequenos burgueses, que se comprimiam, invisíveis, para observar a vida luxuosa da aristocracia, tão maravilhosa para as pessoas mais humildes como eram os estranhos peixes e moluscos. Há, então, uma grande questão social exigindo resposta: será que a parede de vidro poderá proteger para sempre o festim daquelas feras extravagantes? Será que um dia as pessoas obscuras que observam tal espetáculo não virão capturá-las em seu aquário para devorá-las? Enquanto isso não acontece, quem sabe se no meio daquela multidão paralisada e surpresa haveria algum escritor, algum amante da ictiologia humana que, ao observar as mandíbulas de velhos monstros femininos se fecharem após engolirem o alimento, tentasse classificá-los pela raça, pelos caracteres inatos e adquiridos , graças aos quais uma velha dama sérvia, “cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho”, pois desde a infância vive nas águas doces do Faubourg Saint-Germain, come sua salada como uma La Rochefoucauld . Acontece que esse escritor, esse amante da ictiologia humana, interessado na parte da zoologia que cuida dos peixes, existe, sim, é Marcel Proust, que se sente distante do festim aristocrático do Grande Hotel de Balbec. E é, como crítico daquela sociedade sem escrúpulos, valores morais e artísticos, que ele penetra no bathyscaphe e , numa “descente”, vai às profundezas das águas para explorar os abissais da alma e do comportamento humano e estudá-los no ambiente dos peixes, comparando-os às extravagantes espécies marinhas. E como são ricas e simbólicas as suas reflexões, traduzidas em metáforas revolvidas nos escombros do seu inconsciente mais recôndito! Elas parecem atravessar os séculos nas profundidades oceânicas para, finalmente, emergir em verdades insofismáveis, transformadas em signos e mitos, deixando o autor completamente isolado dos aristocratas do Faubourg Saint-Germain, dos burgueses e dos outros em geral para os tempos vindouros, numa redoma impenetrável, como a redoma da Arte com destino à posteridade. Eis o trecho de Marcel Proust: "...E à noite não jantavam no hotel, onde os focos elétricos, jorrando luz no grande refeitório, transformavam-no em um imenso e maravilhoso aquário, diante de cuja parede de vidro a população operária de Balbec, os pescadores e também as famílias de pequenos burgueses, invisíveis na sombra, se comprimiam contra o vidro para olhar, lentamente embalada em remoinhos de ouro, a vida luxuosa daquela gente, tão extraordinária para os pobres como a de peixes e moluscos estranhos: ( uma grande questão social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos e se a gente obscura que olha àvidamente de dentro da noite não virá colhê-los em seu aquário e devorá-los). No entanto, em meio daquela multidão suspensa e atônita no negror da noite, talvez houvesse algum escritor ou estudioso da ictiologia humana, que ao ver como se fechavam as mandíbulas dos velhos monstros femininos para engolir algum pedaço de alimento, talvez se entretivesse em classificar tais monstros pelas suas raças, pelos caracteres inatos e também por esses caracteres adquiridos, graças aos quais uma velha dama sérvia, cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho, comendo salada como uma La Rochefoucauld, pois desde a infância vive na água doce do faubourg Saint-Germain.” (...) “Et le soir ils ne dînaient pas à l’hôtel ou, les sources électriques faisant sourdre à flots la lumière dans la grande salle à manger, celle-ci devenait comme un immense et merveilleux aquarium devant la paroi de verre duquel la population ouvrière de Balbec, les pêcheurs et aussi les familles petits bourgeois, invisibles dans l’ombre, s’écrasaient au vitrage pour apercevoir, lentement balance dans des ramous d’or, la vie luxueuse de ces gens, aussi extraordinaire pour les pauvres que celle de possons et de mollusques étranges ( une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger). En attendant peut-être parmi la foule arrêtée et confundue dans la nuit, y avait-il quelque écrivain , quelque amateur d’ichtyologie humaine, qui regardant les mâchoires de vieux monsters féminins se refermer sur un morceau de nourriture engloutie, se complaisant à classer ceux-ci par race, par caractères innés et aussi par ces caracteres acquis qui font qu’une vieille dame serbe dont l’appendice bucal est d’un grand poisson de mer, parce que depuis son enfance elle vit dans les eaux douces du faubourg Saint-Germain, mange la salade comme une La Rochefoucauld". Antes desse espetáculo noturno, o autor relata uma situação bem desagradável que teve de enfrentar na sala de almoço do hotel, mostrando o comportamento negativo de um hóspede, que o fez levantar-se, sem desculpas, da mesa que lhe fora indicada, por engano, interrompendo-lhe a refeição, pois havia uma reserva no nome dele, pedindo em voz alta ao mordomo que cuidasse para que semelhante erro não se repetisse por ser bastante desagradável que “gente que ele não conhecia” tomasse conta de sua mesa, o que constituiria, para ele, um verdadeiro insulto. Fotos: Google.

Marcel Proust - Jacques Lacan - Jacques Rancière O MITO DO CAPACHO : O Caminho de Guermantes - de Elsa Caravana Guelman. Para o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis. Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o naturalista reconstitui populações animais a partir dos ossos, e florestas a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se uma nova idéia de artista. O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E, nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.” Para Novalis "O homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala linguagens infinitas".. Segundo Rancière, o novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado Mitologizar para Lacan significa incorporar numa mesma história elementos que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia. O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real E é por essa apresentação mágica e viva que ele é mitologizado no entender de Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício, colorido e imortalizado pelo seu passado e lendas medievais.” “...O palácio de Guermantes começava para mim na porta do seu vestíbulo...” Diante do capacho o herói se detém, como se muralhas gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória, quando, por um toque mágico, num convite da duquesa de Guermantes, o capacho não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura, de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente, ao mundo imaginário dos Guermantes para então ser transportado ao mundo da arte. . Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante onde as pessoas, quando convidadas, limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos Guermantes. Nada mais que isso. Para Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que se achava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação exóticas, o capacho gasto da margem.” O capacho dos Guermantes, como mito, representava a linha divisória intransponível entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul no mapa mundi.EL PROUST