Elsa Caravana Guelman
Para
o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a
palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação
inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis. Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma
sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo,
inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua
destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e
reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o
naturalista reconstitui populações
animais a partir dos ossos, e florestas
a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se uma nova idéia de artista. O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo
social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na
configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes
insignificantes da prosa do mundo sua
dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na
fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos
de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de
uma mitologia. E, nas figuras dessa
mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino
de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.”
Para Novalis "O
homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala, linguagens
infinitas"..
Segundo
Rancière, o novo poeta, o poeta
geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o
insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista
despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que
se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa
hermenêutica: para que o banal entregue
seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado
Mitologizar para Lacan significa
incorporar numa mesma história elementos
que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os
do mundo da realidade e os do mundo da fantasia.
O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar
estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel
Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era
o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos
Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real E é por essa apresentação mágica e viva que
ele é mitologizado no entender de
Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem
obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício, colorido e imortalizado pelo seu passado e
lendas medievais.
Diante dele o herói se detém, como se muralhas
gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória,
quando, por um toque mágico, o capacho
não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura,
de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente, ao mundo imaginário dos Guermantes para
então ser transportado, em seguida, ao
mundo da arte.
. Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo
um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante
onde as pessoas, quando convidadas, limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos
Guermantes. Nada mais que isso. Para
Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por
ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já
Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador
e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que
se achava aberta a porta dos Guermantes,
que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando
avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete
avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação
exóticas, o capacho gasto da margem.”
O capacho dos Guermantes, como mito, representava a linha divisória intransponível
entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do
equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul no mapa mundi.
É através do mito que um objeto insignificante ganha significação simbólica.. O Capacho torna-se, então, falante, numa linguagem infinita, e passa a exibir " as marcas de sua história e os signos de sua destinação." porque foi mitologizado, entregando, desse modo, seu segredo, pela incoporação do real e do imaginário..