“O mar
na primeira representação de BERMA.” (À
sombra das raparigas em flor). MARCEL
PROUST.
De Elsa
Caravana Guelman
etc.usf.edu
Berma,
modelo de Sarah Bernhardt, personagem importante da Recherche, foi a responsável
pela iniciação do narrador no mundo artístico. E foi numa tarde que ele foi ouvir, numa concorrida matiné, Berma
como Fedra, havendo para isso a interferência do Sr.Norpois que convencera seu
pai a deixá-lo ir com sua avó assistir ao espetáculo. Enquanto
aguardava o início da representação, o narrador sentia-se “feliz também na
própria sala; desde que sabia que -- ao contrário do que por tanto tempo me
havia apresentado a minha imaginação
infantil – não havia senão um palco para
todo mundo, pensava eu que os outros espectadores impediriam a gente de
ver direito, como no meio de uma
multidão; ora, verifiquei que, ao contrário, graças a uma disposição que é como
o símbolo de toda percepção, cada qual se sente o centro do teatro
Nessa representação quem faz as
honras da casa é Poseidon, o deus absoluto dos mares. Quando a cortina desce e
o espetáculo tem início, o espectador sente que o marulhar das ondas de um mar
inquieto se delineia vagamente, tomando conta do palco até que Berma apareça em
toda sua grandeza para dar início ao espetáculo, e com ela se inicia, através
dos sons da decoração marítima, a poesia trazida pela sua voz e impregnada
pelas águas.
Dessa primeira vez, uma cena ficou
gravada em sua mente. Ele se recordava da cena “em que Berma
permanece imóvel um instante, com o braço erguido à altura do
rosto banhado em luz esverdeada, graças a um artifício de iluminação, diante de
um cenário que representa o mar, a sala rompeu em aplausos, mas já a artista
mudara de posição e o quadro que eu desejaria estudar não mais existia”.(“`A
sombra das raparigas em flor”). Acompanhava com os olhos atentos o desenrolar
de Fedra, personagem da tragédia grega de Eurípedes, atualizada por Racine, mergulhada
num espaço aquático e totalmente
submersa, com o ambiente líquido do mar
dominando a representação.
.Quando o narrador, encontrando-se
com o escritor Bergotte na casa de Swann, em visita a Gilberte, elogiou a ornamentação verde que realçava o
momento em que Fedra ergue o braço, ouviu do escritor a seguinte explicação:
_”Ah!, isso daria muito prazer ao
cenógrafo, que é um grande artista. Hei
de contar a ele, pois está muito orgulhoso dessa luz. Quanto a mim, confesso
que não me agrada muito: banha tudo numa espécie de atmosfera glauca, e a
Fedra, tão pequena lá dentro, tem muito de ramo de coral no fundo de um
aquário. Dirá o senhor que isso faz
ressaltar o lado cósmico do
drama. É verdade! Em todo caso, estaria melhor numa peça que se passasse nos domínios de Netuno. Bem
sei que há ali algo de vingança de Netuno.” (À sombra das raparigas em flor).
Bergotte reconheceu que a primeira
aparição de Berma, interpretando Fedra, se deu no interior da água. Disso não
tinha a menor dúvida.O mar estava em primeiro plano, dominante. Só que ele, explicou em seguida, não concordava que ela permanecesse
indefinidamente nessa água que a envolvia no fundo de um aquário.
O narrador, que muito admirava
Begotte, por certo não esqueceu as observações do escritor sobre a primeira
representação de Berma “numa sala
entusiasta onde se notavam as principais notabilidades do mundo das
artes e da crítica”, dando ensejo à artista
de um “triunfo como raramente os
terá conhecido mais brilhantes no
decurso de sua prestigiosa carreira”(À sombra das raparigas em flor).
Seu interesse pelo desempenho da
Berma não cessara de aumentar depois de
finda a representação,em virtude de não mais sofrer a compreensão e os limites
da realidade. Contudo, “esse interesse
havia atuado com igual intensidade, enquanto Berma representava, sobre
tudo quanto ela oferecia, na indivisibilidade da vida, a meus olhos e a meus
ouvidos; ele nada separara e diferenciara; de modo que se alegrou em descobrir
uma causa razoável naqueles elogios dedicados ao bom gosto e à simplicidade da
artista e os atraía a si com o seu poder
de absorção, apoderava-se deles como o otimismo de um bêbado se apodera das
ações de seu próximo, encontrando nelas um motivo para se enternecer. “É
verdade”, pensava eu, “que bela voz, que ausência de gritos, que simplicidade
de vestuário, que Inteligência em haver
escolhido Fedra! Não, eu não fiquei decepcionado!””
O narrador não se continha em pensar
que Berma se atirou no papel de Fedra.. Elogiava seu bom gosto não só para
vestir-se como para representar. Nunca usava cores demasiado vivas, nem tinha
gritos exagerados. Sabia ser comedida, guardando-se para, no momento próprio,
enfatizar sua arte de representar.”E depois, essa voz admirável, que tanto a
auxilia e que ela emprega fascinantemente, quase me atreveria a dizer qual musicista!...”
De todo o teatro de Racine, “a personagem de Fedra é de longe a
mais fecunda e a mais rica do ponto de vista psicológico . Embora reconhecendo
sua dívida em relação a Eurípedes, que lhe fornecera a ‘idéia, ou seja, a
concepção do conjunto , o poeta tinha consciência do triunfo /…/ Mas a mais
abertamente carnal das pecas profanas terminava com um gesto de grandeza.
Arrastada, perdida, Fedra se refaz para assumir, com uma calma heróica ( o que
não é o caso dos outros furiosos’), seu crime e todas as suas conseqüências,
não somente o homicídio, mas também a pior das degradações daquela época:
a_perda da honra.”(ZUBER, Roger & CUENIN, Micheline – Le Classicisme 2.ed.,
Paris, Arthaud, 1990, Col. Littérature Française,4rp.304, trad de Gilberto P.
Passos).
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