O CARA-DE-BRONZE e a Viagem do GRIVO: JOÃO GUIMARÃES ROSA
De ELSA CARAVANA GUELMAN
Por que se dá a demanda do Santo Graal na corte do rei Arthur em Caamalot? É a doença e a velhice do rei que motivam essa busca que visava não só restituir a saúde do rei como devolver-lhe a juventude. Quem parte em busca dessa solução miraculosa é Galaaz, que é o mais perfeito de todos os cavaleiros da Távola Redonda.
A novela “Cara de Bronze”, de Guimarães Rosa, inspira-se na corte do Rei Arthur e na demanda do Santo Graal, e, penetrando na composição mítica e lendária, ela congrega os elementos pertinentes às gestas medievais, dando início ao seu ciclo do sertão no Urubuquaquá, nas terras do fazendeiro Segisberto Jéia, velho e doente, senhor absoluto de muitas terras e imenso gado num poderoso reinado. Os pontos de referência são: ambos são poderosos mas ambos estão doentes e velhos e não há nada nesse mundo que possa reverter essa situação. O que os espera é a morte na inexorável marcha vertiginosa do tempo. A busca do “Graal” surge como uma esperança,uma tentativa de salvação, a última para tentar deter a avalanche temporal e desordenada dos dias, dos meses e dos anos num ritmo entrópico cada vez mais dilacerante numa espiral sem fim.
O escolhido para essa viagem foi o Grivo, o menino mítico surgido em “Miguilim”, que, já naquela época, sabia o nome das coisas, que falava melhor porque jogava “nos ares” um montão de palavras, moedal” Além de ser um vaqueiro perfeito, bom, era ele quem ligava o Cara de Bronze às coisas. Era o intermediário entre o patrão, o único com permissão de entrar em seu quarto para ouvir sua palavra e transmiti-la aos demais vaqueiros. Almoçava com Segisberto Jéia e lhe relatava todos os acontecimentos. O fazendeiro não saia do quarto e nem recebia os visitantes, porque tinha uma erupção, umas feridas “feias brotadas no rosto. Seria lepra?” Quem o conheceu? Quem sabe como ele “empurrou, com costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura...” De sua cabeça poderiam brotar idades e montanhas. Ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas.Começou vagaroso, “feito cobra pega seu ser do sol” quando jogava assunto com os vaqueiros. Ficou muito rico (o que adiantava a riqueza se vivia olhando no espelho da velhice e não tinha o elixir da juventude?) mas era sozinho, dito maldito, com culpas em aberto, com uma gota d’água no coração. Nunca fez confidência a ninguém. O autor comenta: “O homem envelhece é porque não agüenta viver, ainda não sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo.” O quarto do Cara-de-Bronze era um vigoroso reino, uma verdadeira corte medieval, distante, secreto, misterioso, não se misturando à gente comum do Urubuquaquá, esses precisavam da ajuda do Grivo para o desempenho das tarefas comuns do cotidiano.
Os vaqueiros, depois da apartação do gado, formavam grupos de conversas, enquanto, na varanda, alguém tocava alta viola. Entre eles havia um vaqueiro mais inquieto e perscrutador, que era Moimeichêgo ( MOI-ME-ICH-EGO, contendo, no nome, o EU em francês, inglês, alemão e latim), e que parecia, pelas perguntas que fazia, ter chegado há pouco. Queria saber quem era que cantava, como é que era o velho, se tinha parentes, se tinha família, se vivia sozinho, como seria o quarto do Cara-de-Bronze; queria, finalmente, saber como eram seus traços, feições, modos e costumes, todo tintim, se era pálido ou moreno. Outro vaqueiro, MAINARTE (minha arte: mein, meu, pronome possessivo alemão, que, juntamente com Moimeichego, evidencia a preocupação criativa e universal do autor, mesclando-os aos nomes dos vaqueiros locais . E é o vaqueiro Mainarte que explica a preferência do patrão pelo Grivo. “ –Que não foi. O Velho apreciou o Grivo foi no ele dizer: - “Sou triste, por oficio; alegre por meu prazer. De bem a melhor! DE-BEM-À-MELHOR!...
O autor adverte, em meio á narração: “Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. Alguns dela vão não gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas, -- também a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, não animo ninguém nesse engano; esses podem, e é melhor, dar volta para trás. Esta estória se segue é olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto. Quem já esteve um dia no Urubuquaquá? “
Esse trecho do autor, em meio à narrativa, funciona como uma chamada à realidade regional, aquilo que verdadeiramente é, afastando-se do contexto medieval, que é o que se imagina e recria, e dar um nova expectativa para o leitor, atento aos fatos e aos acontecimentos, que uma concepção mítica e poética, em gradações sucessivas, se alternará à realidade concreta da narrativa.
Por estar predestinado a realizar a viagem, o menino mítico, o vaqueiro Grivo, não executava nenhuma atividade na fazenda, não trabalhava e só estava concentrado no que deveria consistir sua missão primordial, ordenada pelo Cara-de-Bronze, do que buscar, encontrar e selecionar e trazer como nas epopéias antigas nas quais os heróis se lançavam pelo mundo afora e retornavam, muito tempo depois, com as vitórias alcançadas. Entre ele e os vaqueiros havia uma grande distância, espaços intransponíveis, uma barreira onde os gestos, exclamações, conversas, gritos, desejos e demais necessidades das atividades coletivas lhe eram indiferentes. Um dia, o Grivo arrumou “seus dobros, amarrou seus tentos. Selou cavalo. Subiu a cavalo. No cavalo melhor, do Cara-de-Bronze.”(...) “O Grivo não temeu. Se despediu alegre”, sem nada dizer aonde ele ia e ao que ia. “O Grivo se calou, de doer a boca. Ele tinha apalavro.” Da janela do quarto, o velho lhe acenou a mão.
O vaqueiro Cicica explicava a ausência do Grivo: “Pois, então, o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino e sem dizer palavra a ninguém...Que ia ter fito?” O vaqueiro Mainarte dizia : “É. Eu sei que ele foi buscar alguma coisa. Só não sei o que é.” O vaqueiro Sacramento concluiu: “Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim...”
O Grivo saiu dezembro-janeiro-fevereiro, “quando o coco do buriti madura em toda parte. Assim em envios de inverno, os rios sobresseenchendo”. O Grivo entendeu bem a sua missão: “Só estava seguindo, em serviço do Cara-de-Bronze? Estava bebendo sua viagem. Deixa os pássaros cantarem. No ir – seja até aonde se for – tem-se de voltar; mas seja como for, que se esteja indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no ponto final.”
A vaigem do Grivo deve ser entendida como uma travessia, em que ele , metaforicamente, ganha asas e mobilidade como um ser fora do tempo linear, do tempo cronometrado, quando totalmente livre atinge a eternidade e num espaço cuja imensidão, rasgando os contornos existentes, projeta-o nas profundezas do imensurável, passando pelas coisas que vão sendo identificadas nos seus mínimos detalhes, como árvores de grande e pequeno porte, arbustos, cipós; pássaros e sua vivência natural, outros pássaros menores e até cantadores; mamíferos que encontra, répteis, batráquios, insetos; lugares, fazendas, homens, mulheres com suas profissões; de tudo um pouco ele viu.
Nessa viagem através dos séculos, o herói mítico Grivo partiu em busca da revelação das coisas e participou da criação de tudo o que encontrou em sua jornada simbólica, apresentada metaforicamente. E ele trouxe o Nome, o nome de todas as coisas que viu, nos dias e nas noites, cumprindo, assim, o que prometera ao Cara-de-Bronze em sua partida misteriosa.O que o Grivo catalogou daria para formar um verdadeiro compêndio de botânica, de zoologia e de mineralogia do sertão.
Quando o Grivo voltou, encontrou uma grande agitação por parte dos vaqueiros que estavam surpresos e ansiosos para conhecer, finalmente, o motivo de tão sigilosa viagem. “Narrará o Grivo só por metades? Tem ele de por a juros, o segredo dos lugares, de certas coisas ? Guardar consigo o segredo seu; tem. Carece. E é difícil de se letrear um rastro tão longo. Para o descobrir, não haverá possíveis indicações? Haja, talvez. Alguma árvore.”
( Quais árvores o Grivo viu: a ana-sorte, o joão-curto, as três-marias, o angelim-macho, o joão-leite, o cabelo-de-negro, a carne-de-anta, a árvore-da-folha- parida, o bucho-de-boi, o muito-sertão, o araça-das-almas, o mata-caçador, a costela-de-vaca, o grão-de-cavalo, a murta-de-parida, o mata-caçador, a sombra-de-touro e uma infinidade...)
( Quais os arbustos, os cipós , as plantinhas e as ervas : o chapéu-de-couro, o cabelo-de-anjo, o alfinete-de-noiva, o bilo-bilo, a canela-da-ema, o azulão, o espinho-de-deus, a baba-de-viuva, chapéu-de-de-frade., pau-pingado, orelha-de –onça –da-miuda, pelo-de-urso, rabo-de-raposa, navalha-de-macaco.)
( Quais os capins no pasto dos bois: sempre-verde, Aristides, luziola, maquine, zabelê, cobre-choupana, mimoso-de-cacho, redondo, pintado, cheiroso, caveludo, capim-rei, )
( Quais as aves que encontrou: Gavião, urubu, papagaio doente de asa grande, periquitos e maitacas, a maritaca-de-fita-vermelha-atrás-do-bico, papagaio de asas amarelas, o azul, papagaio-trombeteiro, o papagaio-chorão, as araras, seriemas correndo e gritando, emas correndo, seriema voando, anus pretos e brancos, a alma-de-gato, a juriti-de-peito-amarelo, o bentevi...)
(Que outras qualidades viu: um casal de antas, os veados avermelhados e os ossos de um veado morto, o jacaré tenterê, o sapo mira-lua, o sapo-bigorna, sucuri de barriga dourada e de barriga amarela, borboletas, um jumentinho, uma onça, os répteis de alma vivente, bichos da terra e do ar, bichos de entre-mato-e-campo, mosquitos, moscas, abelhas...)
O que o Grivo conversou com o Cara-de-Bronze ninguém soube, ninguém ouviu. Houve um silêncio muito grande, reinante. Os vaqueiros estavam todos reunidos quando o Grivo chegou, de mansinho. “Eu vos conto, por miúdo. Desde que saí, do Urubuquaquá, conforme o comum --- em direitura. Andei os dias naturais. Fui. Vim-me encostando para um chapadão feio enorme. Lá ninguém mora lá – só em beira de marimbu – só criminoso. Desertão, com uma lepra de relva. Dez dias, nos altos: lá não tem buriti... Água, nem para se lavar o corpo de um defunto.” O Grivo mantinha firme sua visão das campinas, dos chapadões , dos areões, lindas veredas e brejos cerrados, marimbus. Continuou sua peregrinação, contando que subiu serra com sol por cima, beirou a caatinga alta, passando pelo sertão seco, novamente pela caatinga cheia de carrapatos e pela caatinga da faveleira. Acompanhou uma boiada, tornou esquerda, sempre nos Gerais. Os gerais não têm fim.Nunca acaba. Os Gerais são os Gerais. Ele dizia que todo lugar por onde passava parecia um lugar já conhecido. Viajando sempre sozinho, só queria chegar, ficar um tempo e depois voltar, pois sabia que o Velho o esperaria, talvez “nos outonos. Para chorar noites e beber auroras.” Na viagem, ele ficou triste, sentiu saudades “A saudade é braço-e-mão do coração” Indagava a si mesmo sobre a vida. “A vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois se vadia.” Sabia que não podia desistir, tinha de ir em frente, como prometera ao Velho. Enfrentou dias e noites, viu o luar, o sol, a poeira, as pedras o vento e encontrou o Saci, que lhe disse: “Já também vou, faz tempos que careço duma viagem”.
Os vaqueiros queriam saber se ele esteve no rio Sassafrás, no Sapão, no Manuel-Alveas,no Manuel-Alvinho, no São Marcelo. Ele respondeu que, em rio de água preta, não se pega peixe. Um cantador ia acompanhando as palavras do Grivo com sua melodia. Divulgou que passou por mulher na roca e no tear, e depois viu uma mulher velha com um rosário e outra velha que cruzava bilros. Topou com um caçador dos Gerais. Andou léguas e léguas por entre fazendas, sítios, uma cafua, com homens, mulheres e crianças.. Perguntaram se ele havia encontrado alguma mulher e se tinha se casado. “O Grivo estuda como narrar uma massa de lembranças”. A moça que ele encontrou se chamava Nhorinhá, que era linda como uma noiva nua, “toda pratas-e-ouro”. Ela sorriu para ele com os olhos da vida”. ( Dante: La meretrice che mai dall’ospizio/ di Cesare non torse li occhi putti). Grivo olhava ao redor e não recebeu nenhum aviso das coisas. “Não teve os pontos do buzo, de peder ou ganhar” Resolveu, então, seguir seu caminho um tanto desanimado, mas tinha de prosseguir o seu roteiro. Estava bebendo a viagem do Cara-de-Bronze.
Atravessou muitas cidades. Ele e seu cavalo não desistiam. Certa vez precisava adormecer deixou o cavalo amarrado num pé-de-pau, rodeado de zumbidos e “Ai, conheceu a tristeza de acordar, de quem dormiu solitário no alto do dia; mas logo ouviu, de si, que carecia de relembrar alegrias inventadas, e saber que um dia tudo vai tornar a ser simples ---como pedras brancas que minam água.” Por fim, o Grivo falou: “Fui e voltei. Alguma coisa mais eu disse? Estou aqui. Como vocês estão. Como esse gado – botado aí dentro do curral ---jejua, jejua. Retornei, no tempo que pude, no berro do boi. Não cumpri? Falei sozinho, com o Velho, com Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem...”No final, comovido, começou a falar depressa: “Ele, o Velho, me perguntou:--“Você viu e aprendeu como é tudo, por lá? -- Nhor vi”. Aí ele quis: --- “Como é a rede da moça? - que moça noiva recebe, quando se casa?. O Grivo explicou: -- “É uma rede grande , branca, com varandas de labirinto.” E, depois de uma pausa, um vaqueiro, surgindo do escuro: -- “Ara, então! Buscar palavras-cantigas?” Grivo terminou: “ Ele, o Velho, disse, acendido: ---“Eu queria alguém que me abençoasse...” ele disse. Chorou pranto. . Aí, meu coração tomou tamanho.”
Os vaqueiros pressentem o futuro do Grivo: ( “No esperto foi, do que te valeu, Grivo. Diz-se tu vai enricar, de repente, hem? Entrar em testamentos herdados....” E outro: “Diz-se que vai ganhar, de beijo em mão, a Vereda do Sapal’).
E assim terminou o significativo périplo do Grivo no esmiuçar da riqueza das coisas incrustadas no âmago do sertão que é --- mais que uma simples referência geográfica--- um verdadeiro mundo no sertão-MUNDO.
Para Benedito Nunes, em “O Dorso do Tigre”, página 185, a viagem do Grivo pode ser vista assim: “A Viagem tem, pois, dois sentidos, duas versões; e o conto se divide em dois focos concêntricos que se movem um em função do outro: o da narrativa propriamente dita, como unidade literária maior, que é a estória da Demanda, descrevendo o ambiente --- a terra, a Fazenda, os homens, seus trabalhos, o que dizem ao cuidar do gado --- e contando-nos o que se passou nesse Urubuquaquá entre um certo Cara-de-Bronze e um certo Grivo: e o da narrativa da narrativa, da viagem da viagem, cheio de subentendidos, por trás do qual fica a verdadeira estória, que somente ao Cara-de-Bronze foi contada” Considera que a “missão do Grivo, objeto da demanda que o Cara–de-Bronze ordenou, foi retraçar o surto originário da linguagem, recuperar a potencialidade do Verbo.”
Obras consultadas: “No Urubuquaquá, no Pinhém” (“Corpo-de-Baile”) de João Guimarães Rosa e “O Dorso do Tigre”de Benedito Nunes.
Foto: divirta-se.correioweb.com.brdivirta-se.correioweb.com.brdivirta-se.correioweb.com.br
Por que se dá a demanda do Santo Graal na corte do rei Arthur em Caamalot? É a doença e a velhice do rei que motivam essa busca que visava não só restituir a saúde do rei como devolver-lhe a juventude. Quem parte em busca dessa solução miraculosa é Galaaz, que é o mais perfeito de todos os cavaleiros da Távola Redonda.
A novela “Cara de Bronze”, de Guimarães Rosa, inspira-se na corte do Rei Arthur e na demanda do Santo Graal, e, penetrando na composição mítica e lendária, ela congrega os elementos pertinentes às gestas medievais, dando início ao seu ciclo do sertão no Urubuquaquá, nas terras do fazendeiro Segisberto Jéia, velho e doente, senhor absoluto de muitas terras e imenso gado num poderoso reinado. Os pontos de referência são: ambos são poderosos mas ambos estão doentes e velhos e não há nada nesse mundo que possa reverter essa situação. O que os espera é a morte na inexorável marcha vertiginosa do tempo. A busca do “Graal” surge como uma esperança,uma tentativa de salvação, a última para tentar deter a avalanche temporal e desordenada dos dias, dos meses e dos anos num ritmo entrópico cada vez mais dilacerante numa espiral sem fim.
O escolhido para essa viagem foi o Grivo, o menino mítico surgido em “Miguilim”, que, já naquela época, sabia o nome das coisas, que falava melhor porque jogava “nos ares” um montão de palavras, moedal” Além de ser um vaqueiro perfeito, bom, era ele quem ligava o Cara de Bronze às coisas. Era o intermediário entre o patrão, o único com permissão de entrar em seu quarto para ouvir sua palavra e transmiti-la aos demais vaqueiros. Almoçava com Segisberto Jéia e lhe relatava todos os acontecimentos. O fazendeiro não saia do quarto e nem recebia os visitantes, porque tinha uma erupção, umas feridas “feias brotadas no rosto. Seria lepra?” Quem o conheceu? Quem sabe como ele “empurrou, com costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura...” De sua cabeça poderiam brotar idades e montanhas. Ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas.Começou vagaroso, “feito cobra pega seu ser do sol” quando jogava assunto com os vaqueiros. Ficou muito rico (o que adiantava a riqueza se vivia olhando no espelho da velhice e não tinha o elixir da juventude?) mas era sozinho, dito maldito, com culpas em aberto, com uma gota d’água no coração. Nunca fez confidência a ninguém. O autor comenta: “O homem envelhece é porque não agüenta viver, ainda não sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo.” O quarto do Cara-de-Bronze era um vigoroso reino, uma verdadeira corte medieval, distante, secreto, misterioso, não se misturando à gente comum do Urubuquaquá, esses precisavam da ajuda do Grivo para o desempenho das tarefas comuns do cotidiano.
Os vaqueiros, depois da apartação do gado, formavam grupos de conversas, enquanto, na varanda, alguém tocava alta viola. Entre eles havia um vaqueiro mais inquieto e perscrutador, que era Moimeichêgo ( MOI-ME-ICH-EGO, contendo, no nome, o EU em francês, inglês, alemão e latim), e que parecia, pelas perguntas que fazia, ter chegado há pouco. Queria saber quem era que cantava, como é que era o velho, se tinha parentes, se tinha família, se vivia sozinho, como seria o quarto do Cara-de-Bronze; queria, finalmente, saber como eram seus traços, feições, modos e costumes, todo tintim, se era pálido ou moreno. Outro vaqueiro, MAINARTE (minha arte: mein, meu, pronome possessivo alemão, que, juntamente com Moimeichego, evidencia a preocupação criativa e universal do autor, mesclando-os aos nomes dos vaqueiros locais . E é o vaqueiro Mainarte que explica a preferência do patrão pelo Grivo. “ –Que não foi. O Velho apreciou o Grivo foi no ele dizer: - “Sou triste, por oficio; alegre por meu prazer. De bem a melhor! DE-BEM-À-MELHOR!...
O autor adverte, em meio á narração: “Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. Alguns dela vão não gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas, -- também a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, não animo ninguém nesse engano; esses podem, e é melhor, dar volta para trás. Esta estória se segue é olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto. Quem já esteve um dia no Urubuquaquá? “
Esse trecho do autor, em meio à narrativa, funciona como uma chamada à realidade regional, aquilo que verdadeiramente é, afastando-se do contexto medieval, que é o que se imagina e recria, e dar um nova expectativa para o leitor, atento aos fatos e aos acontecimentos, que uma concepção mítica e poética, em gradações sucessivas, se alternará à realidade concreta da narrativa.
Por estar predestinado a realizar a viagem, o menino mítico, o vaqueiro Grivo, não executava nenhuma atividade na fazenda, não trabalhava e só estava concentrado no que deveria consistir sua missão primordial, ordenada pelo Cara-de-Bronze, do que buscar, encontrar e selecionar e trazer como nas epopéias antigas nas quais os heróis se lançavam pelo mundo afora e retornavam, muito tempo depois, com as vitórias alcançadas. Entre ele e os vaqueiros havia uma grande distância, espaços intransponíveis, uma barreira onde os gestos, exclamações, conversas, gritos, desejos e demais necessidades das atividades coletivas lhe eram indiferentes. Um dia, o Grivo arrumou “seus dobros, amarrou seus tentos. Selou cavalo. Subiu a cavalo. No cavalo melhor, do Cara-de-Bronze.”(...) “O Grivo não temeu. Se despediu alegre”, sem nada dizer aonde ele ia e ao que ia. “O Grivo se calou, de doer a boca. Ele tinha apalavro.” Da janela do quarto, o velho lhe acenou a mão.
O vaqueiro Cicica explicava a ausência do Grivo: “Pois, então, o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino e sem dizer palavra a ninguém...Que ia ter fito?” O vaqueiro Mainarte dizia : “É. Eu sei que ele foi buscar alguma coisa. Só não sei o que é.” O vaqueiro Sacramento concluiu: “Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim...”
O Grivo saiu dezembro-janeiro-fevereiro, “quando o coco do buriti madura em toda parte. Assim em envios de inverno, os rios sobresseenchendo”. O Grivo entendeu bem a sua missão: “Só estava seguindo, em serviço do Cara-de-Bronze? Estava bebendo sua viagem. Deixa os pássaros cantarem. No ir – seja até aonde se for – tem-se de voltar; mas seja como for, que se esteja indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no ponto final.”
A vaigem do Grivo deve ser entendida como uma travessia, em que ele , metaforicamente, ganha asas e mobilidade como um ser fora do tempo linear, do tempo cronometrado, quando totalmente livre atinge a eternidade e num espaço cuja imensidão, rasgando os contornos existentes, projeta-o nas profundezas do imensurável, passando pelas coisas que vão sendo identificadas nos seus mínimos detalhes, como árvores de grande e pequeno porte, arbustos, cipós; pássaros e sua vivência natural, outros pássaros menores e até cantadores; mamíferos que encontra, répteis, batráquios, insetos; lugares, fazendas, homens, mulheres com suas profissões; de tudo um pouco ele viu.
Nessa viagem através dos séculos, o herói mítico Grivo partiu em busca da revelação das coisas e participou da criação de tudo o que encontrou em sua jornada simbólica, apresentada metaforicamente. E ele trouxe o Nome, o nome de todas as coisas que viu, nos dias e nas noites, cumprindo, assim, o que prometera ao Cara-de-Bronze em sua partida misteriosa.O que o Grivo catalogou daria para formar um verdadeiro compêndio de botânica, de zoologia e de mineralogia do sertão.
Quando o Grivo voltou, encontrou uma grande agitação por parte dos vaqueiros que estavam surpresos e ansiosos para conhecer, finalmente, o motivo de tão sigilosa viagem. “Narrará o Grivo só por metades? Tem ele de por a juros, o segredo dos lugares, de certas coisas ? Guardar consigo o segredo seu; tem. Carece. E é difícil de se letrear um rastro tão longo. Para o descobrir, não haverá possíveis indicações? Haja, talvez. Alguma árvore.”
( Quais árvores o Grivo viu: a ana-sorte, o joão-curto, as três-marias, o angelim-macho, o joão-leite, o cabelo-de-negro, a carne-de-anta, a árvore-da-folha- parida, o bucho-de-boi, o muito-sertão, o araça-das-almas, o mata-caçador, a costela-de-vaca, o grão-de-cavalo, a murta-de-parida, o mata-caçador, a sombra-de-touro e uma infinidade...)
( Quais os arbustos, os cipós , as plantinhas e as ervas : o chapéu-de-couro, o cabelo-de-anjo, o alfinete-de-noiva, o bilo-bilo, a canela-da-ema, o azulão, o espinho-de-deus, a baba-de-viuva, chapéu-de-de-frade., pau-pingado, orelha-de –onça –da-miuda, pelo-de-urso, rabo-de-raposa, navalha-de-macaco.)
( Quais os capins no pasto dos bois: sempre-verde, Aristides, luziola, maquine, zabelê, cobre-choupana, mimoso-de-cacho, redondo, pintado, cheiroso, caveludo, capim-rei, )
( Quais as aves que encontrou: Gavião, urubu, papagaio doente de asa grande, periquitos e maitacas, a maritaca-de-fita-vermelha-atrás-do-bico, papagaio de asas amarelas, o azul, papagaio-trombeteiro, o papagaio-chorão, as araras, seriemas correndo e gritando, emas correndo, seriema voando, anus pretos e brancos, a alma-de-gato, a juriti-de-peito-amarelo, o bentevi...)
(Que outras qualidades viu: um casal de antas, os veados avermelhados e os ossos de um veado morto, o jacaré tenterê, o sapo mira-lua, o sapo-bigorna, sucuri de barriga dourada e de barriga amarela, borboletas, um jumentinho, uma onça, os répteis de alma vivente, bichos da terra e do ar, bichos de entre-mato-e-campo, mosquitos, moscas, abelhas...)
O que o Grivo conversou com o Cara-de-Bronze ninguém soube, ninguém ouviu. Houve um silêncio muito grande, reinante. Os vaqueiros estavam todos reunidos quando o Grivo chegou, de mansinho. “Eu vos conto, por miúdo. Desde que saí, do Urubuquaquá, conforme o comum --- em direitura. Andei os dias naturais. Fui. Vim-me encostando para um chapadão feio enorme. Lá ninguém mora lá – só em beira de marimbu – só criminoso. Desertão, com uma lepra de relva. Dez dias, nos altos: lá não tem buriti... Água, nem para se lavar o corpo de um defunto.” O Grivo mantinha firme sua visão das campinas, dos chapadões , dos areões, lindas veredas e brejos cerrados, marimbus. Continuou sua peregrinação, contando que subiu serra com sol por cima, beirou a caatinga alta, passando pelo sertão seco, novamente pela caatinga cheia de carrapatos e pela caatinga da faveleira. Acompanhou uma boiada, tornou esquerda, sempre nos Gerais. Os gerais não têm fim.Nunca acaba. Os Gerais são os Gerais. Ele dizia que todo lugar por onde passava parecia um lugar já conhecido. Viajando sempre sozinho, só queria chegar, ficar um tempo e depois voltar, pois sabia que o Velho o esperaria, talvez “nos outonos. Para chorar noites e beber auroras.” Na viagem, ele ficou triste, sentiu saudades “A saudade é braço-e-mão do coração” Indagava a si mesmo sobre a vida. “A vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois se vadia.” Sabia que não podia desistir, tinha de ir em frente, como prometera ao Velho. Enfrentou dias e noites, viu o luar, o sol, a poeira, as pedras o vento e encontrou o Saci, que lhe disse: “Já também vou, faz tempos que careço duma viagem”.
Os vaqueiros queriam saber se ele esteve no rio Sassafrás, no Sapão, no Manuel-Alveas,no Manuel-Alvinho, no São Marcelo. Ele respondeu que, em rio de água preta, não se pega peixe. Um cantador ia acompanhando as palavras do Grivo com sua melodia. Divulgou que passou por mulher na roca e no tear, e depois viu uma mulher velha com um rosário e outra velha que cruzava bilros. Topou com um caçador dos Gerais. Andou léguas e léguas por entre fazendas, sítios, uma cafua, com homens, mulheres e crianças.. Perguntaram se ele havia encontrado alguma mulher e se tinha se casado. “O Grivo estuda como narrar uma massa de lembranças”. A moça que ele encontrou se chamava Nhorinhá, que era linda como uma noiva nua, “toda pratas-e-ouro”. Ela sorriu para ele com os olhos da vida”. ( Dante: La meretrice che mai dall’ospizio/ di Cesare non torse li occhi putti). Grivo olhava ao redor e não recebeu nenhum aviso das coisas. “Não teve os pontos do buzo, de peder ou ganhar” Resolveu, então, seguir seu caminho um tanto desanimado, mas tinha de prosseguir o seu roteiro. Estava bebendo a viagem do Cara-de-Bronze.
Atravessou muitas cidades. Ele e seu cavalo não desistiam. Certa vez precisava adormecer deixou o cavalo amarrado num pé-de-pau, rodeado de zumbidos e “Ai, conheceu a tristeza de acordar, de quem dormiu solitário no alto do dia; mas logo ouviu, de si, que carecia de relembrar alegrias inventadas, e saber que um dia tudo vai tornar a ser simples ---como pedras brancas que minam água.” Por fim, o Grivo falou: “Fui e voltei. Alguma coisa mais eu disse? Estou aqui. Como vocês estão. Como esse gado – botado aí dentro do curral ---jejua, jejua. Retornei, no tempo que pude, no berro do boi. Não cumpri? Falei sozinho, com o Velho, com Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem...”No final, comovido, começou a falar depressa: “Ele, o Velho, me perguntou:--“Você viu e aprendeu como é tudo, por lá? -- Nhor vi”. Aí ele quis: --- “Como é a rede da moça? - que moça noiva recebe, quando se casa?. O Grivo explicou: -- “É uma rede grande , branca, com varandas de labirinto.” E, depois de uma pausa, um vaqueiro, surgindo do escuro: -- “Ara, então! Buscar palavras-cantigas?” Grivo terminou: “ Ele, o Velho, disse, acendido: ---“Eu queria alguém que me abençoasse...” ele disse. Chorou pranto. . Aí, meu coração tomou tamanho.”
Os vaqueiros pressentem o futuro do Grivo: ( “No esperto foi, do que te valeu, Grivo. Diz-se tu vai enricar, de repente, hem? Entrar em testamentos herdados....” E outro: “Diz-se que vai ganhar, de beijo em mão, a Vereda do Sapal’).
E assim terminou o significativo périplo do Grivo no esmiuçar da riqueza das coisas incrustadas no âmago do sertão que é --- mais que uma simples referência geográfica--- um verdadeiro mundo no sertão-MUNDO.
Para Benedito Nunes, em “O Dorso do Tigre”, página 185, a viagem do Grivo pode ser vista assim: “A Viagem tem, pois, dois sentidos, duas versões; e o conto se divide em dois focos concêntricos que se movem um em função do outro: o da narrativa propriamente dita, como unidade literária maior, que é a estória da Demanda, descrevendo o ambiente --- a terra, a Fazenda, os homens, seus trabalhos, o que dizem ao cuidar do gado --- e contando-nos o que se passou nesse Urubuquaquá entre um certo Cara-de-Bronze e um certo Grivo: e o da narrativa da narrativa, da viagem da viagem, cheio de subentendidos, por trás do qual fica a verdadeira estória, que somente ao Cara-de-Bronze foi contada” Considera que a “missão do Grivo, objeto da demanda que o Cara–de-Bronze ordenou, foi retraçar o surto originário da linguagem, recuperar a potencialidade do Verbo.”
Obras consultadas: “No Urubuquaquá, no Pinhém” (“Corpo-de-Baile”) de João Guimarães Rosa e “O Dorso do Tigre”de Benedito Nunes.
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