domingo, 13 de julho de 2014

A VIAGEM DO GRIVO - João Guimarães Rosa

O CARA-DE-BRONZE e a Viagem do GRIVO: JOÃO GUIMARÃES ROSA

De ELSA CARAVANA GUELMAN



Por que se dá a demanda do Santo Graal na corte do rei Arthur em Caamalot? É a doença e  a velhice do rei  que motivam essa busca que visava não só restituir a saúde  do rei como  devolver-lhe a juventude.  Quem parte em busca dessa solução miraculosa é Galaaz, que é o mais perfeito de todos os cavaleiros da Távola Redonda.
A novela “Cara de Bronze”, de Guimarães Rosa, inspira-se na corte do Rei Arthur e na demanda do Santo Graal, e, penetrando na composição mítica e lendária, ela congrega os elementos pertinentes às gestas medievais, dando início ao seu ciclo do sertão no Urubuquaquá,  nas terras do fazendeiro  Segisberto Jéia, velho e doente, senhor absoluto de muitas terras e imenso gado num poderoso reinado.  Os pontos de referência são:  ambos são poderosos mas ambos estão doentes e velhos e não há nada nesse mundo que possa reverter essa situação. O que os espera é a morte na inexorável marcha vertiginosa do  tempo. A busca do “Graal” surge como uma esperança,uma tentativa de salvação, a última para tentar deter a avalanche temporal e desordenada dos dias, dos meses e dos anos num ritmo entrópico cada vez mais dilacerante numa espiral sem fim.
O escolhido para essa viagem foi o Grivo, o menino mítico  surgido em “Miguilim”, que, já naquela época, sabia o nome das coisas,  que falava melhor porque jogava “nos ares” um montão de palavras, moedal” Além de ser um vaqueiro perfeito, bom, era ele quem ligava o Cara de Bronze  às coisas. Era o intermediário entre o patrão, o único com permissão de entrar em seu quarto para ouvir sua palavra e transmiti-la aos demais vaqueiros. Almoçava com Segisberto Jéia e lhe relatava todos os acontecimentos. O fazendeiro não saia do quarto e nem recebia os visitantes, porque tinha uma erupção, umas feridas “feias brotadas no rosto. Seria lepra?” Quem o conheceu? Quem sabe como ele “empurrou, com costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura...” De sua cabeça poderiam brotar idades e montanhas.  Ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas.Começou vagaroso, “feito cobra pega seu ser do sol” quando jogava assunto com os vaqueiros. Ficou muito rico (o que adiantava a riqueza se vivia olhando no espelho da velhice e não tinha o elixir da juventude?) mas era sozinho, dito maldito, com culpas em aberto, com uma gota d’água no coração. Nunca fez confidência a ninguém. O autor  comenta:  “O homem envelhece é porque não agüenta viver, ainda não sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo.”  O quarto do Cara-de-Bronze era um vigoroso reino, uma verdadeira corte medieval,  distante,  secreto, misterioso, não se misturando à gente comum do Urubuquaquá,  esses precisavam da ajuda do Grivo para o desempenho das tarefas comuns do cotidiano.
Os vaqueiros, depois da apartação do gado,  formavam grupos de conversas, enquanto, na varanda,  alguém tocava alta viola.  Entre eles havia um vaqueiro mais inquieto e perscrutador, que era Moimeichêgo ( MOI-ME-ICH-EGO, contendo, no nome,  o EU em   francês, inglês, alemão e latim), e que parecia, pelas perguntas que fazia, ter chegado há pouco. Queria saber  quem era que cantava,  como é que  era o velho, se tinha parentes, se tinha família, se vivia sozinho,   como seria o quarto do Cara-de-Bronze; queria, finalmente, saber  como eram seus traços, feições, modos e costumes, todo tintim,  se era pálido ou moreno. Outro vaqueiro, MAINARTE (minha arte: mein, meu, pronome possessivo alemão, que, juntamente com Moimeichego, evidencia  a preocupação criativa e universal do autor, mesclando-os aos nomes dos vaqueiros locais . E é o vaqueiro Mainarte que explica a preferência do patrão pelo Grivo. “ –Que não foi. O Velho apreciou o Grivo foi no ele dizer: - “Sou triste, por oficio; alegre por meu prazer. De bem a melhor!  DE-BEM-À-MELHOR!...
O autor adverte, em meio á narração: “Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso.  Alguns dela vão não gostar,  quereriam chegar depressa a um final. Mas, -- também  a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, não animo ninguém  nesse engano;  esses podem, e é melhor, dar  volta para trás. Esta estória se segue é olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto. Quem já  esteve um dia no Urubuquaquá? “
Esse trecho do autor, em meio à narrativa, funciona como uma chamada à realidade regional, aquilo que verdadeiramente é, afastando-se  do contexto medieval, que é o que  se imagina e recria,  e dar um nova expectativa para o leitor, atento aos fatos e aos acontecimentos, que uma concepção mítica e poética,  em gradações sucessivas,  se alternará à realidade concreta da narrativa.
Por estar  predestinado a realizar a viagem, o menino mítico, o vaqueiro Grivo, não executava nenhuma atividade na fazenda, não trabalhava e só estava concentrado no que  deveria  consistir sua missão primordial, ordenada pelo Cara-de-Bronze, do que buscar, encontrar e selecionar  e trazer como nas epopéias antigas nas quais os heróis se lançavam pelo mundo afora e retornavam, muito tempo depois, com as vitórias alcançadas. Entre ele e os vaqueiros havia uma grande distância, espaços intransponíveis, uma barreira onde os gestos, exclamações, conversas, gritos, desejos e demais necessidades das atividades coletivas lhe eram indiferentes. Um dia, o Grivo arrumou “seus dobros, amarrou seus tentos. Selou cavalo. Subiu a cavalo. No cavalo melhor, do Cara-de-Bronze.”(...)  “O Grivo não temeu. Se despediu alegre”,  sem nada dizer aonde ele ia e ao que ia. “O Grivo se calou, de doer a boca. Ele tinha apalavro.” Da janela do quarto, o velho lhe acenou a mão.
O vaqueiro Cicica explicava a ausência do Grivo: “Pois, então, o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer?  Que saiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino e sem dizer palavra a ninguém...Que ia ter fito?” O vaqueiro Mainarte dizia : “É. Eu sei  que ele foi buscar alguma coisa.  Só não sei o que é.” O vaqueiro  Sacramento concluiu: “Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim...”
O Grivo saiu dezembro-janeiro-fevereiro, “quando o coco do buriti madura em toda parte. Assim em envios de inverno, os rios sobresseenchendo”. O Grivo entendeu bem a sua missão: “Só estava seguindo, em serviço do Cara-de-Bronze? Estava bebendo sua viagem. Deixa os pássaros cantarem. No ir – seja até aonde se for – tem-se de voltar; mas seja como for,  que se esteja indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no ponto final.”
A vaigem do Grivo  deve ser entendida como uma travessia, em que ele ,   metaforicamente,  ganha asas e mobilidade como um ser fora do tempo linear,  do tempo cronometrado, quando totalmente livre atinge  a eternidade  e num espaço cuja imensidão,  rasgando os contornos existentes, projeta-o nas profundezas do imensurável,  passando pelas coisas que vão sendo identificadas nos seus mínimos detalhes, como árvores de grande e pequeno porte,  arbustos, cipós; pássaros e sua vivência natural, outros pássaros menores e até cantadores; mamíferos que encontra, répteis, batráquios, insetos; lugares, fazendas,  homens, mulheres com suas profissões; de tudo um pouco ele viu.

 Nessa viagem através dos séculos, o herói mítico Grivo partiu em busca da revelação das coisas e participou da criação de tudo o que encontrou em sua jornada simbólica, apresentada metaforicamente. E ele trouxe o Nome,  o nome   de todas  as coisas que viu, nos dias e nas noites,  cumprindo, assim, o que prometera ao Cara-de-Bronze em sua partida misteriosa.O que o Grivo catalogou daria para formar um verdadeiro compêndio de botânica, de zoologia e de  mineralogia do sertão.
Quando o Grivo voltou,  encontrou uma grande agitação por parte dos vaqueiros que estavam surpresos e ansiosos para conhecer, finalmente, o motivo de tão  sigilosa viagem. “Narrará o Grivo só por metades?  Tem ele de por a juros, o segredo dos lugares, de certas coisas ? Guardar consigo o segredo seu; tem. Carece. E é difícil de se letrear um rastro tão longo. Para o descobrir, não haverá possíveis indicações?  Haja, talvez. Alguma árvore.”
( Quais árvores o Grivo viu: a ana-sorte, o joão-curto,  as três-marias, o angelim-macho,  o joão-leite,  o cabelo-de-negro,  a carne-de-anta,  a árvore-da-folha- parida, o bucho-de-boi,  o muito-sertão,  o araça-das-almas, o mata-caçador, a costela-de-vaca,  o grão-de-cavalo,  a murta-de-parida, o mata-caçador,  a sombra-de-touro e uma infinidade...)
( Quais os arbustos, os cipós , as plantinhas e as ervas : o chapéu-de-couro,  o cabelo-de-anjo,  o alfinete-de-noiva,  o bilo-bilo,  a canela-da-ema,  o azulão,  o espinho-de-deus,  a baba-de-viuva,  chapéu-de-de-frade., pau-pingado,  orelha-de –onça –da-miuda, pelo-de-urso,  rabo-de-raposa,  navalha-de-macaco.)
( Quais os capins no pasto dos bois: sempre-verde,  Aristides,  luziola, maquine,  zabelê,  cobre-choupana, mimoso-de-cacho,  redondo, pintado, cheiroso,  caveludo, capim-rei,   )
( Quais as aves que encontrou: Gavião, urubu,  papagaio doente de asa grande,  periquitos e maitacas,  a maritaca-de-fita-vermelha-atrás-do-bico,  papagaio de asas amarelas, o azul, papagaio-trombeteiro,  o papagaio-chorão,  as araras, seriemas correndo e gritando,  emas correndo,  seriema voando, anus pretos e brancos,  a alma-de-gato,  a juriti-de-peito-amarelo, o bentevi...)
(Que outras qualidades viu:  um casal de antas, os veados avermelhados e os ossos de um veado morto, o jacaré tenterê,  o sapo mira-lua,  o sapo-bigorna,  sucuri de barriga dourada e de barriga amarela, borboletas, um jumentinho,  uma onça, os répteis de alma vivente, bichos da terra e do ar,  bichos de entre-mato-e-campo, mosquitos,   moscas, abelhas...)
O que o Grivo conversou com o Cara-de-Bronze ninguém soube, ninguém ouviu. Houve um silêncio muito grande, reinante. Os vaqueiros estavam todos reunidos quando o Grivo chegou, de mansinho.  “Eu vos conto, por miúdo. Desde que saí, do Urubuquaquá, conforme o comum --- em direitura. Andei os dias naturais. Fui. Vim-me encostando para um chapadão feio enorme. Lá ninguém mora lá – só em beira de marimbu – só criminoso. Desertão, com uma lepra de relva. Dez dias, nos altos: lá não tem buriti... Água, nem para se lavar o corpo de um defunto.”  O Grivo mantinha firme sua visão  das campinas, dos chapadões , dos areões, lindas  veredas e brejos cerrados, marimbus.  Continuou sua peregrinação, contando que  subiu serra com sol por cima,  beirou a caatinga alta, passando pelo sertão seco, novamente pela caatinga cheia de carrapatos e pela caatinga da faveleira. Acompanhou uma boiada, tornou esquerda, sempre nos  Gerais. Os gerais não têm fim.Nunca acaba. Os Gerais são os Gerais. Ele dizia que todo lugar por onde passava parecia um lugar já conhecido. Viajando sempre sozinho, só queria chegar, ficar um tempo e depois voltar, pois sabia que o Velho o esperaria, talvez “nos outonos. Para  chorar noites e beber auroras.” Na viagem, ele ficou triste, sentiu saudades “A saudade é braço-e-mão do coração” Indagava a si mesmo sobre a vida. “A vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois se vadia.” Sabia que não podia desistir, tinha de ir em frente, como prometera ao Velho. Enfrentou  dias e noites, viu o luar, o sol, a poeira, as pedras o vento  e encontrou o Saci, que lhe disse: “Já também vou,  faz tempos que careço duma viagem”.
Os vaqueiros queriam saber  se ele esteve no rio Sassafrás, no Sapão, no Manuel-Alveas,no Manuel-Alvinho, no São Marcelo.  Ele respondeu que, em rio de água preta, não se pega peixe.  Um cantador ia acompanhando as palavras do Grivo com sua melodia. Divulgou que passou por mulher na roca e no tear, e depois viu uma mulher velha com um rosário e outra velha  que cruzava bilros. Topou com um caçador dos Gerais. Andou léguas e léguas por entre fazendas, sítios, uma cafua, com homens, mulheres e crianças.. Perguntaram se ele havia encontrado alguma mulher e se  tinha se casado. “O Grivo estuda como narrar uma massa de lembranças”.  A moça que ele encontrou se chamava Nhorinhá, que era linda como uma  noiva nua, “toda pratas-e-ouro”. Ela sorriu para ele com  os olhos da vida”. ( Dante:  La meretrice che  mai dall’ospizio/ di  Cesare non torse li occhi putti). Grivo olhava ao redor e não recebeu nenhum aviso das coisas. “Não teve os pontos do buzo, de peder ou ganhar”  Resolveu, então, seguir  seu caminho um tanto desanimado, mas tinha de prosseguir o seu roteiro. Estava bebendo a viagem do Cara-de-Bronze.
Atravessou muitas cidades. Ele e seu cavalo não desistiam. Certa vez  precisava adormecer deixou o cavalo amarrado num pé-de-pau,  rodeado de zumbidos  e “Ai, conheceu a tristeza de acordar, de quem  dormiu solitário no alto do dia; mas logo ouviu, de si, que carecia de  relembrar alegrias  inventadas, e saber que um dia tudo vai tornar a ser simples ---como pedras brancas que minam água.”  Por fim,  o Grivo  falou: “Fui e voltei. Alguma coisa mais eu disse? Estou aqui. Como vocês estão. Como esse gado – botado aí dentro do curral ---jejua, jejua. Retornei, no tempo que pude, no berro do boi.  Não cumpri?  Falei sozinho, com o Velho, com  Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem...”No final, comovido,  começou a falar depressa: “Ele, o Velho, me perguntou:--“Você viu e aprendeu como é tudo, por lá?   -- Nhor vi”. Aí ele quis: --- “Como é a rede da moça?  - que moça noiva recebe, quando se casa?. O Grivo explicou: -- “É uma rede grande , branca, com varandas de labirinto.” E, depois de uma pausa, um vaqueiro, surgindo do escuro: -- “Ara, então! Buscar palavras-cantigas?” Grivo terminou: “ Ele, o Velho, disse, acendido: ---“Eu queria alguém que me abençoasse...” ele disse. Chorou pranto. . Aí, meu coração tomou tamanho.”
Os vaqueiros pressentem o futuro do Grivo: ( “No esperto foi, do que te valeu, Grivo. Diz-se tu vai enricar, de repente, hem? Entrar em testamentos herdados....”  E outro:  “Diz-se que vai ganhar, de beijo em mão, a Vereda do Sapal’).
E assim terminou o significativo périplo do Grivo no esmiuçar da riqueza das coisas incrustadas no âmago do sertão que é --- mais que uma simples referência geográfica--- um verdadeiro mundo no sertão-MUNDO.
Para Benedito Nunes, em “O Dorso do Tigre”, página 185,  a viagem do Grivo pode ser vista assim:  “A Viagem tem, pois, dois sentidos, duas versões;  e o conto se divide em dois focos concêntricos que se movem  um em função do outro: o da narrativa propriamente dita, como unidade literária maior, que é a  estória da Demanda, descrevendo o ambiente --- a terra, a Fazenda, os homens, seus trabalhos, o que dizem  ao cuidar do gado ---  e contando-nos o que se passou nesse Urubuquaquá entre um certo Cara-de-Bronze e um certo Grivo:  e  o da narrativa da narrativa, da viagem da viagem, cheio de subentendidos, por trás do qual fica a verdadeira estória, que somente ao Cara-de-Bronze foi contada”  Considera  que a “missão do Grivo, objeto da demanda que o Cara–de-Bronze ordenou,  foi retraçar o surto originário da linguagem, recuperar a potencialidade do Verbo.”
Obras consultadas: “No Urubuquaquá, no Pinhém” (“Corpo-de-Baile”) de João Guimarães Rosa e “O Dorso do Tigre”de Benedito Nunes.
Foto: divirta-se.correioweb.com.brdivirta-se.correioweb.com.brdivirta-se.correioweb.com.br

João Guimarães RosaJoão Guimarães Rosa

O MANEQUIM

O MANEQUIM
Conto de Elsa Caravana Guelman

Manuela recebeu de herança, num testamento de um tio, que tinha uma alfaiataria, nada mais nada menos que um manequim. Se, para alguns,  foi motivo de pilhéria, gozação, ela, muita surpresa, interpretou de  forma diferente, achando que, se alguém lhe deixava um manequim, era porque esse manequim tinha algum valor, não era um manequim qualquer.
                Recebeu o pacotão e, desvencilhando-se da papelada que o envolvia, retirou  uma bela peça, moldada artisticamente, tanto que seu rosto parecia real, com contornos bem definidos. Vestido, pareceria uma bela mulher. Como tinha uma grande loja  de roupas femininas, apreciou, de fato, o presente e o enviou  para lá, onde seria  exibido em  uma de suas  vitrines.
                A loja, muito bem estruturada, tinha na parte dos fundos, um galpão em que as costureiras trabalhavam. O manequim, que era, também, mais pesado que os outros, a princípio foi deixado no galpão, por falta de uma roupa condizente com sua aparência, ficando de pé, numa quina de parede, para não incomodar o trânsito das costureiras. Na parte de cima  ficavam as estilistas, desenhistas e montadores criando os modelos de roupas para o ano todo. Este andar era a espinha dorsal da firma, centro das discussões, dos métodos e das inovações na criação dos modelos que interpretassem as exigências atuais da moda, sempre flutuante, o que tornava o ambiente, às vezes, muito tenso, quando havia dificuldades nas aferições e nas pesquisas, ou muito alegre, quando havia um consenso nas escolhas.
                Havia diversas estilistas, mas apenas duas auxiliares, que disputavam uma vaga de estilista, em suas promoções: Raquel e Sheila.  A estas eram dadas tarefas que as deixavam um tanto insatisfeitas, por não poderem mostrar rapidamente suas aptidões criativas. Eram, no entanto, favorecidas porque lhes cabia vasculhar tudo o que fosse necessário para o trabalho final das estilistas, conhecendo, pois, em seu início, a tarefa das costureiras, dos montadores e dos desenhistas.
                Raquel era uma pessoa tranquila, de fala ponderada, o que lhe aumentava a beleza. Quando, porém, tinha de decidir algo com relação à moda, seus olhos faiscavam e ela assumia uma postura radiante. Parecia talhada para aquela profissão, sabendo escolher as roupas que convinham a cada ocasião. Apresentava-se, pois, sempre, muito elegante e poderia, a qualquer momento, dirigir-se à diretoria, tratar com um fornecedor ou discutir em outros departamentos, pois estava sempre muito bem vestida. E isso lhe valia muito, porque, quando havia uma emergência, que exigisse enaltecer a loja, era a ela que procuravam.  Apesar de tudo, todavia, era muito complicado avançar na profissão, pois havia uma certa rigidez quanto às mudanças.
                A vitrine foi reorganizada para que o novo manequim pudesse entrar.  Manuela sabia o quanto ela teria de ser insinuante para poder, sem fugir ao bom gosto, atrair e cativar  as pessoas que buscavam a loja, ou simplesmente passavam diante dela, para que vencessem o passo mais difícil, que era entrar. Depois, dentro da loja, uma funcionária hábil  saberia como tornar difícil sua saída sem comprar nada. Aquela vitrine tinha de ser ao máximo convidativa, oferecer o belo e o bom por um preço que trouxesse o almejado lucro e não assustasse a futura freguesa. 
Que roupa, de repente, vestiriam no manequim? Todas as estilistas opinaram, cada uma sugerindo um tipo de saia, uma blusa, um conjunto, uma calça e nada se ajustava ao manequim. Nada do que existia na loja parecia servir  para ele. As moças estavam entregues aos seus trabalhos e não poderiam interrompê-los fazendo, de uma hora para outra, outro tipo de roupa. Alguém o comparou a um presente de grego na guerra de Tróia. Uma peça ingrata que a patroa recebera.
                Manuela ficou desolada. Que fazer, então, diante de uma situação como aquela? E, no entanto, teriam de achar uma roupa para o manequim que se transformara num estorvo, ocupando lugar no galpão. Foi nesse momento que Raquel apareceu. Uma luz, lá no fundo, brotou na mente de Manuela.  Ela bem sabia das queixas de Raquel,  que achava já saber criar uma roupa perfeita sem que, no entanto, lhe dessem nenhuma para conceber;  fingia, entretanto, não as  conhecer para ganhar tempo e não ter de fazer mudanças  apressadas. Raquel continuava esperando sua oportunidade.
                - Raquel, vou precisar de você, mas terá de ser muito rápida. Não há tempo a perder. Quero inaugurar a vitrine no sábado, uma vitrine especial, mas me falta uma roupa adequada ao manequim que ganhei. Quero que você crie alguma coisa para ele, que o faça chamar a atenção das pessoas, que seja cativante. Posso contar com você?
                - Sim, claro – disse Raquel.  Farei todo o possível, multiplicarei minhas horas para vencer o prazo.
                Manuela levou Raquel para ver o manequim. Houve um murmúrio geral de contentamento entre as costureiras e as outras pessoas que trabalhavam no galpão. É que gostavam muito de Raquel e perceberam no ar alguma coisa de positivo, de inovador, que surgira para ela.
                - É seu, Raquel, mãos à obra!
                Assim que Manuela saiu, duas mulheres, das mais afoitas, vieram abraçar Raquel, que sorria para todas, que sempre a haviam incentivado, dizendo que seu dia chegaria. Ficou diante do  manequim. Nunca tinha visto um manequim assim, não que fosse grande, disforme, nada disso. Ele, apenas, parecia ter outra contextura, mais perfeita e contornada que os demais manequins, totalmente inexpressivos, precisando das roupas para lhes realçar a presença. Aquele, por si só, já tinha como que uma grande presença, ainda que não usasse qualquer vestimenta.
                Raquel tirou as medidas do manequim bem ajustadas, primeiramente. Depois, ao chegar ao pescoço, parou e reparou que o contorno do rosto era perfeito e, à medida que se afastava dele, foi notando outros pormenores e pensou, então, que, se o visse no meio de uma multidão, não o distinguiria facilmente dos seres humanos, se estivesse convenientemente vestido. Quem o criou fez dele uma peça de arte, uma estátua. O que mais lhe chamou a atenção foram os olhos, bem fundos, como duas luzes em águas profundas que, não só ofuscavam, como, por assim dizer, sugavam quem os olhasse demoradamente, deixando-se perder naquele mar misterioso.
                Bastante impressionada com o manequim, voltou à mesa de trabalho, ninguém lhe perguntou nada e nem ela disse alguma  coisa. Assim que pôde respirar um pouco, resolveu – e foi com muita alegria no coração e muita felicidade – contar para o Lucas a novidade.
                Foi até a rua para imaginar como o manequim seria visto. Achou as roupas, dos outros manequins, inexpressivas e sentiu que deveria avivar as cores que seriam vestidas pelo que lhe fora confiado, que não fossem berrantes, agressivas, mas que sugerissem um mergulho nas profundezas do mar, elegendo, então, um azul bem claro, que contrastasse com um bege mutante, como a lembrar um sol que se despedisse do mar antes do anoitecer. Ele deveria exibir uma suavidade contrastante com  a volúpia dos movimentos do dia. Desse modo, no meio da confusão e do  tumulto do dia a dia,  a pessoa que por ali passasse, e parasse para ver a vitrine, teria a impressão de estar atingindo a tranqüilidade máxima e seria convidada a entrar e penetrar naquela suavidade, como se o  mundo tivesse parado lá fora.
                Com toda liberdade que tinha para fazer o que quisesse e pegasse o que necessitasse, Raquel buscou auxílio nos setores da empresa, tecido, linha, enfeites, bordados, botões, fivelas e eis um esboço de um vestido simples, corrido, mas muito elegante. Lá pelas tantas, resolveu acrescentar um lilás que enterneceu seu trabalho.  Não estava competindo com ninguém, nem invadindo o terreno  das colegas, estava, sim, penetrando profundamente em si mesma, sem pensar em mais nada, como quem vai ao fundo do mar e tenta retirar de seu abissal os segredos e as descobertas ali perdidas. Enquanto trabalhou, foi ignorada por todos, até pela colega auxiliar. Seu manequim não mereceu a atenção das estilistas nem de ninguém. Cabia a ela, pois, trazê-lo para a vida da loja, estruturando-o  no seu novo ambiente.
                O vestido para o manequim, que desenhara, ficou pronto e foi entregue quando a maioria das pessoas já havia saído.Manuela e Raquel foram vesti-lo nele, na vitrine.  Havia uma luz que o iluminava para a rua e outra luz que o iluminava no contexto da vitrine.  A missão estava cumprida, o vestido caíra em cheio no manequim, dando-lhe grandeza e dignidade numa sequência de elegância e mistério.
               Manuela, agradecida, abraçou Raquel, emocionada. Esperariam pelo dia seguinte, quando o público daria a última palavra. Elas se sentiam suspeitas para julgar o resultado da confecção. Ainda naquela noite, quando Raquel estivesse abraçada ao Lucas, ela se imaginaria recebendo os aplausos de todos pelo seu trabalho, tão feliz estava.
                O êxito das vendas, que começaram a crescer, foi atribuído ao vestido do manequim. Logo, Raquel foi reconhecida, abraçada, louvada e promovida a estilista. Com uma obrigação: cuidar das roupas do estranho manequim, porque as outras estilistas tentaram, ainda, em vão, confeccionar alguma coisa para também vesti-lo, mas, quando chegavam perto dele, não conseguiam dar  sequer um ponto e, quando traziam a roupa pronta, não conseguiam vesti-lo. Nem Manuela conseguia impor-se ao manequim. Com um misto de medo e susto, afastaram-se dele. Enquanto isso as vendas cresciam e aquela vitrine passou a ser a mais visitada da rua. Ninguém esqueceu os vestidos que Raquel idealizou para o manequim nas comemorações do aniversário da loja. Um antigo fornecedor de tecidos importados, Alan, ofereceu-lhe sugestões: surgiu, assim, uma composição de seda lilás, lembrando  um tom rosa esmaecido, com incrustações de orquídeas e recoberta de mousseline de seda do mesmo tom. Depois do impacto da exibição da peça, muito prestigiada,   Raquel ainda criou outro modelo,  de popeline preta, sugestivo para  uma solenidade noturna. A rua ganhou elasticidade e, em razão da divulgação da vitrine, passou a receber pessoas de outras regiões.  Surgiram, nas proximidades, restaurantes e bares para cativar ainda mais os visitantes. Estabeleceu-se, ali, o pequeno mundo da moda, com toda sua magia e sedução.
A vida de Raquel foi mudando dia a dia e ela se esforçava ao máximo no desempenho da nova função. Chegava bem cedo e não tinha hora certa para deixar o trabalho. A sua dedicação foi até elogiada pela direção. Manuela sentia que podia confiar nas suas descobertas e inovações.  Raquel, entretanto, sabia que devia toda a reviravolta de sua vida  àquele estranho manequim que continuava sob suas ordens. Todos os dias ela se encontrava com  ele, transformando-o numa mulher muito elegante. Buscou um nome que a identificasse e lhe explicasse a personalidade: Isabelle. A aproximação entre ambas  aconteceu sem sobressaltos e não precisou esforçar-se muito para que o manequim cedesse às suas exigências, permitindo-lhe abarcar um  mundo de fantasia na criatividade que  a levou ao infinito, conseguindo tudo o que queria com Isabelle, a ponto de deixar as colegas perplexas. Não havendo uma luta inicial entre o seu Eu dominante e o manequim, que funcionava , portanto, como um Outro, um objeto seu,  estabeleceu-se uma coexistência. E, sem que ela percebesse, quase sorrateiramente,  havia uma sensação de entrega de sua parte para o manequim que a absorvia lentamente. Ele passou a completá-la e ela o completava. Raquel criava infindáveis modelos, de vários tipos, e todos eles serviam perfeitamente para Isabelle. A vitrine  atingiu um esplendor nunca visto antes.
A loja, em razão dessa transformação,  crescia em volume de vendas e de procura. Estavam vivendo uma época de ouro. Raquel, de promoção em promoção,  chegou a uma alta posição, sendo destacada entre todos. Já se falava, até, numa chefia geral, o que muito agradou a Lucas, pois ele sempre acreditou no seu talento e criatividade. As sugestões sobre tecidos, modelos de blusas, vestidos, conjuntos,  apresentadas em reuniões, eram facilmente aprovadas. Assim, Raquel, tornou-se responsável pela apresentação das coleções de  verão e inverno.  Apesar  das inovações,  sua função principal consistia em  cuidar, primordialmente,  das roupas de Isabelle, o que lhe tomava grande parte do tempo.  Em verdade, a auréola  de mistério, que envolvia o manequim, não se esvaíra.
              Foi num dia de sol radiante, quando Raquel chegou à loja,  que teve a inexplicável sensação de que a situação de euforia feérica, que todos estavam vivendo, iria se alterar.   A rua, nesse dia,  estava repleta de gente e as lojas pareciam cheias.  De longe,  pôde perceber que havia  um grande ajuntamento defronte da sua vitrine.  Parou para ter uma visão melhor daquela aglomeração. As pessoas não se moviam, estavam e permaneciam estáticas como se paralisadas por um ímã.  Chegou junto a vitrine, com certa dificuldade, abrindo caminho entre as pessoas.  Procurou colar o rosto no vidro e então deu com os olhos profundos do manequim, eletrizantes, ofuscantes, penetrantes, dominantes, petrificantes. As pessoas pareciam bestificadas. Cada vez aumentava mais o afluxo de gente diante da vitrine.
              Raquel, de fininho, entrou na loja e, por dentro, adentrou à vitrine. Virou a posição do manequim, deixando-o a olhar para dentro da loja e não mais para a rua.  O que aconteceu?  Entraram todas as pessoas, em tropel, loja adentro, seguindo a direção para a qual se voltara Isabelle. Foi o dia de maiores vendas, de todos os tempos.  Para impedir que Isabelle paralisasse novamente as pessoas que a olhassem fixamente nos olhos, Raquel inventou uma estratégia, que muita gente não entendeu, ao dar-lhe óculos escuros para  todos os dias,  daí em diante.  Com esses óculos, o charme de Isabelle, paradoxalmente, aumentou ainda mais.
                Entre Raquel e Isabelle, entretanto,  continuava a existir uma grande harmonia sigilosa.  O manequim captara fácil as idéias e o modo de pensar de Raquel. Se, no princípio, parecia um golem rústico, primitivo, aos poucos foi buscando seus valores. A estilista  passou a temer por ele, pelos incômodos que causava. Uma vez, um eletricista, ao cuidar da vitrine, descuidou-se e olhou fixamente para ele: quase ficou petrificado. A antiga arrumadeira da vitrine se queixava daquele estranho objeto que a impedia de fazer uma boa arrumação. Só a presença de Raquel evitava problemas maiores. Um dia, Raquel adoeceu, por causa de uma chuva que recebera em cheio, sem nenhum abrigo, numa noite quando ia para casa. Faltou ao trabalho, no dia seguinte, e ninguém pôs os óculos em Isabelle. Sem óculos, as pessoas  -  quase multidão -  ficaram paralisadas diante da vitrine sem que pessoa alguma pudesse ajudar. Estabeleceu-se quase um tumulto, em que todos falavam ao mesmo tempo.
                Em casa, ao ser avisada do ocorrido, Raquel resolveu,  ainda que débil, com o corpo fragilizado, dirigir-se à loja. Cambaleante, nem sabia como conseguira chegar tão rápido, e, sem falar com ninguém, entrou na vitrine e buscou o manequim. De pronto,  mudou-lhe  a posição, e, de imediato, as pessoas se afastaram. Isabelle pareceu sorrir-lhe, como que agradecendo sua presença. Passado aqueles primeiro momento de aflição, decidiram todos  que o manequim tinha de sair dali o mais rápido possível.
                - Esse manequim parece diabólico, lembra a Medusa, já ouviram falar? Pois é, a Medusa era uma mulher, na Grécia antiga, que petrificava quem a olhasse de frente, por isso todos temiam encará-la.  Causou tantos males que teve de ser morta. Deceparam sua cabeça, segundo a mitologia  - explicou alguém que entrara na loja.
                Manuela ouviu atentamente o cliente que assim falara e que acompanhava a mulher que tencionava fazer uma aquisição de roupa. Tomou a decisão de tirar o manequim da vitrine. Raquel estava trêmula e mal podia acreditar no que via e ouvia. Assustou-se quando dois homens corpulentos foram chamados para arrastar Isabelle. Eles entraram e não conseguiram tirar o manequim, que parecia ter chumbo nos pés.
                - Como na lenda, vamos ter de cortar sua cabeça, disse o homem. É o jeito de nos livrarmos dessa coisa.         
A noite foi chegando e as pessoas se  afastaram num clima de ansiedade e nervosismo. No olhar das outras estilistas, que foram obrigadas a aceitar sua ascensão durante todo esse tempo, Raquel sentiu uma grande dose de censura, nem lhe dirigiram a palavra ao sair. Acreditavam estar diante de um fenômeno de malignidade, algo sobrenatural. Não aceitariam nada mais daquele manequim diabólico. Manuela, para acalmar os ânimos, prometeu que no dia seguinte, pela manhã, bem cedo, de alguma maneira, ele seria retirado da vitrine, talvez cortado em pedaços, se fosse necessário, por uma serra elétrica.
                 Raquel estremeceu. Sabia o que estava reservado a Isabelle. Ela seria destruída, assim queriam todos. Viu que seu olhar carregava, ainda,  uma espécie de fulgor. Deveria  agir rapidamente, encontrar uma  solução para impedir  o que pretendiam fazer.  Mas, como ?  A noite passaria rapidamente e pela madrugada, antes  da abertura da loja, agiriam. De que maneira, não sabia. Que fazer? Telefonou para Lucas, que se assustou muito com o que ela pretendia. Por que arriscar sua carreira, ela estava cotada para ser a principal figura da loja,  sua vida profissional,  por um manequim? Não, não era um simples manequim, era Isabelle, explicou Raquel. O olhar de Isabelle não a petrificava, muito pelo contrário, elevava-a, tornava-a confiante e destemida. Na convivência que tiveram, dia a dia,  entre um vestido e outro, elas se completaram e como que se fundiram numa pessoa só. Destruir Isabelle seria, agora,  para Raquel, destruir-se a si própria.
              Enquanto esperava Lucas, a quem pedira, por celular, que viesse, Raquel, na rua,  grudou-se na vitrine e, embora, na escuridão não visse bem o seu interior, procurou localizar Isabelle que, no seu último vestido de seda pura estampada  - tecido enviado de Paris, de Montmartre -  sobressaía  como uma rainha entre seus súditos. Reinava um silêncio completo. Tudo era ilusório, apesar da calma da noite. Os planos para o dia seguinte, os planos para liquidar Isabelle, a assustavam e só  aumentava a idéia, em sua mente, de salvar o manequim antes que fosse tarde demais.
               A noite cada vez mais densa, sem as luzes feéricas dos enfeites e dos anúncios, foi-se assenhoreando da rua deserta e silenciosa, inatingível agora ao burburinho e aos solavancos dos transeuntes na difícil disputa por um espaço na busca de um objeto para concretizar sonhos, realizar desejos e sustentar  ostentações, enquanto uma aragem penetrante aparecia como uma convidada que surge na hora certa para sorver os momentos finais e decisivos de uma festa.  
                 Lucas chegou. Tentou, em vão, convencê-la, fazê-la mudar de  idéia,  mas foi tudo inútil.  Faltavam poucos minutos para as onze horas da noite. Qualquer vacilo seria fatal para a realização do plano. Bastaria a passagem do guarda noturno fiscalizando as lojas da rua para impedir qualquer ação. Se isso acontecesse, seria o fim, pois não saberia e nem teria como explicar o que iria acontecer.                                                                                                                                                                       
                  Raquel, sofrendo os efeitos daquela friagem, em sua saúde debilitada, então, armada de coragem, não titubeou,   entrou na loja com sua  chave de reserva. Sentiu que não poderia esperar nem um minuto a mais. Respirou fundo e, depois de lançar um último olhar para o ambiente que a fizera alçar um vôo tão alto, despedindo-se, abriu a vitrine, lutando com uma vontade imensa de chorar ao se deparar com Isabelle, tão suntuosa, tão bela. Conseguira trazer para a loja o sucesso e o encantamento, mas agora era uma condenada que aguardava o cumprimento de sua sentença.  Mas foi com muita calma que, procurando não tropeçar porque não acendeu a luz, chegou a Isabelle.  Tinha a voz embargada de emoção ao sussurrar junto ao manequim:
              --Vamos, Isabelle, vou tirar você daí.  Seja dócil.
             O manequim não ofereceu a menor resistência, como se entendesse o que estava acontecendo;  deixou-se arrastar, facilmente, por Raquel e seu namorado, até o carro de Lucas. A noite parecia continuar conspirando sem nenhuma alteração além da penetrante aragem no silêncio da rua deserta. Isabelle e Raquel, finalmente, despertavam e  saíam de um mundo estruturado desumanamente, ganhando  a liberdade. Lucas colocou Isabelle  na parte traseira de sua camionete, ele e Raquel entraram nela e se afastaram em direção ao desconhecido.
        Manuela chegou bem cedo. Saltou do carro e parou diante da vitrine, estarrecida.  Ali estava a sua vitrine de outrora, com seus arranjos simples, disposta com os manequins antigos, sem qualquer enfeitiçamento. Nenhum sinal do manequim que recebera, de herança, daquele tio que fora dono de uma alfaiataria. 
         



domingo, 6 de julho de 2014

PASSAGENS PARISIENSES

De Elsa Caravana Guelman


As passagens parisienses que podem ser definidas como expoentes do capitalismo e da especulação, nascidas no século XVIII nos jardins do Palais Royal,    conheceram sua idade de ouro no século XIX,  seu verdadeiro ápice, embelezadas pelo ferro e o vidro, que eram conquistas da época, em meio ao luxo e à ostentação. Descobertas pelos especuladores, os introdutores das “boutiques”, as  passagens proliferaram intensa e rapidamente, impulsionadas por um comércio intenso que visava a um lucro significativo, pois elas representavam  ganhos potenciais para seus promotores, fossem burgueses ou aristocratas. Passaram a representar, também, local de passeios, encontros, recebendo por dia uma infinidade de pessoas de todos os tipos ,  onde ocorreu  também o surgimento de novas livrarias, editores e gravadores, como o editor de Baudelaire na Passage des Princes, o editor de Verlaine, Lemerre, na Passage Choiseul e o gravador Sterne ,que reproduziu etapas importantes da vida de chefes de Estado como Lenin, Stalin  e de Gaulle,  na Passage des Panoramas.  E, assim, as passagens refletiram, alem do consumismo avassalador, a vida social, política e cultural da cidade.
Finalmente, foram elas que inspiraram a criação de uma das mais importantes obras da atualidade: “PASSAGES”, de Walter Benjamin..
Walter Benjamin, filósofo alemão, interessou-se pelo fenômeno das “passagens parisienses” em seu apogeu. Vivia em Paris e, ao conhecer as minúcias da cidade, deparou-se com as passagens. Apreciava as galerias de estrutura metálica,  cobertas por tetos de vidro e iluminadas a gás, construídas entre 1790 a 1860. Soube muito bem  observar as lojas  que cresciam assustadoramente e as pessoas que as procuravam em busca das novidades. As mulheres ficavam fascinadas diante das vitrines, muito bem enfeitadas, arrumadas e preparadas para atingir o âmago feminino, personalizado nos modelos expostos.
Tudo parecia um sonho, um verdadeiro delírio. No princípio, algumas pessoas diante dos atrativos, depois pequenos grupos de interesses variados, quando irrompeu, finalmente, uma multidão não só para contemplar mas disposta a impulsionar a descoberta da indústria têxtil que lançava no mundo uma variedade imensa de tecidos em qualidade e cores, que  logo se transformavam em vestidos, blusas,saias e echarpes, desencadeando um novo significado na evolução da moda até então vivida de maneira pacífica, tornando-a eletrizante.   E,  enquanto as lojas cresciam, as mercadorias aumentavam , os clientes tinham o que comprar, os proprietários enriqueciam, a sociedade se expandia na complexidade daquele novo estilo de vida. . Verificou-se, então, um dinâmico impulso social, semelhante a uma febre contagiante e indomável, causada por tanta ansiedade, impossível  mesmo de ser detida, lembrando um dique que se rompe e não consegue mais controlar o volume das águas que, livres, carregam tudo o que encontram pelo caminho.                      A mercadoria exposta cumpria, facilmente,  sua função, a de  chamar as pessoas que passavam e que não lhe conseguiam ficar indiferentes. Karl Marx, inspirando-se na parábola bíblica da adoração do bezerro de ouro, da época de Moisés,  denominou esse fenômeno social e psicológico, onde as mercadorias pareciam carregar uma vontade própria e misteriosa, de Fetichismo da Mercadoria.
Walter Benjamin encontrou  Paris  vivendo a euforia dessa explosão capitalista. E foi o fenômeno social desencadeante da explosão capitalista    que o convenceu a escrever sobre as passagens de Paris. Imediatamente assumiu esse projeto muito confiante, comunicando-o a seus amigos, Adorno e  Gershom Scholem.
Segundo Leandro Konder, Walter Benjamin “achou que valia a pena escrever todo um livro a respeito do universo espiritual que se expressava nessas galerias, um estudo que contribuiria decisivamente para uma compreensão aprofundada não só na história da França, mas da história de toda a Europa no século XIX” A idéia de escrever sobre as Passagens também se fortaleceu ao ler O camponês de Paris, de Aragon e traduziu para o alemão outra obra, na qual Aragon descrevia a Passagem da Ópera, que fora demolida em 1924 para o alargamento de uma avenida.

As passagens parisienses sofreram grandes transformações no decorrer dos anos, chegando a um declínio pelo abandono, incêndios e por se tornarem alvos das demolições em benefício do progresso. Com o surgimento dos magazines e o advento do automóvel, elas se isolaram mais e algumas foram esquecidas por não representarem mais o papel que lhes coube no passado.  Até que o interesse de reviver o passado – artístico e histórico -- da cidade buscou,  entre as grandes manifestações culturais, as passagens adormecidas, despojadas de suas aureolas de beleza e elegância, mas que possuíam intactas, além dos mistérios, os vestígios de um século esplendoroso, dando início a um movimento de renovação. É certo que está havendo grande interesse pelas passagens parisienses e cada vez mais se tenta reviver esses lugares misteriosos que representam, ainda, imagens do passado de Paris. Assim, as passagens são visitadas por um grande público que tanto pode encontrar  o luxo de algumas grifes como o fator artístico e cultural, nos livros, nas obras de arte, antiguidades, selos e gravuras importantes. E pode-se, agora,  separar o fenômeno artístico e estético que existe nas passagens da busca das grifes de moda que em muitas delas ainda existem.
Predominam as passagens  Panoramas, des Princes, Choiseul e as galerias Véro-Dodat, Vivienne e Colbert, que estão hoje na linha da vida moderna  com o que há de mais expressivo  para representar  a vida cultural e social de Paris.



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