O MANEQUIM
Conto de Elsa Caravana Guelman
Manuela recebeu de herança, num testamento de um tio, que tinha uma
alfaiataria, nada mais nada menos que um manequim. Se, para alguns, foi motivo de pilhéria, gozação, ela, muita
surpresa, interpretou de forma
diferente, achando que, se alguém lhe deixava um manequim, era porque esse
manequim tinha algum valor, não era um manequim qualquer.
Recebeu o pacotão e,
desvencilhando-se da papelada que o envolvia, retirou uma bela peça, moldada artisticamente, tanto
que seu rosto parecia real, com contornos bem definidos. Vestido, pareceria uma
bela mulher. Como tinha uma grande loja
de roupas femininas, apreciou, de fato, o presente e o enviou para lá, onde seria exibido em
uma de suas vitrines.
A loja, muito bem estruturada,
tinha na parte dos fundos, um galpão em que as costureiras trabalhavam. O
manequim, que era, também, mais pesado que os outros, a princípio foi deixado
no galpão, por falta de uma roupa condizente com sua aparência, ficando de pé,
numa quina de parede, para não incomodar o trânsito das costureiras. Na parte
de cima ficavam as estilistas,
desenhistas e montadores criando os modelos de roupas para o ano todo. Este andar
era a espinha dorsal da firma, centro das discussões, dos métodos e das
inovações na criação dos modelos que interpretassem as exigências atuais da
moda, sempre flutuante, o que tornava o ambiente, às vezes, muito tenso, quando
havia dificuldades nas aferições e nas pesquisas, ou muito alegre, quando havia
um consenso nas escolhas.
Havia diversas estilistas, mas apenas
duas auxiliares, que disputavam uma vaga de estilista, em suas promoções:
Raquel e Sheila. A estas eram dadas
tarefas que as deixavam um tanto insatisfeitas, por não poderem mostrar
rapidamente suas aptidões criativas. Eram, no entanto, favorecidas porque lhes
cabia vasculhar tudo o que fosse necessário para o trabalho final das
estilistas, conhecendo, pois, em seu início, a tarefa das costureiras, dos
montadores e dos desenhistas.
Raquel era uma pessoa tranquila,
de fala ponderada, o que lhe aumentava a beleza. Quando, porém, tinha de
decidir algo com relação à moda, seus olhos faiscavam e ela assumia uma postura
radiante. Parecia talhada para aquela profissão, sabendo escolher as roupas que
convinham a cada ocasião. Apresentava-se, pois, sempre, muito elegante e
poderia, a qualquer momento, dirigir-se à diretoria, tratar com um fornecedor
ou discutir em outros departamentos, pois estava sempre muito bem vestida. E
isso lhe valia muito, porque, quando havia uma emergência, que exigisse
enaltecer a loja, era a ela que procuravam. Apesar de tudo, todavia, era muito complicado
avançar na profissão, pois havia uma certa rigidez quanto às mudanças.
A vitrine foi reorganizada para
que o novo manequim pudesse entrar. Manuela sabia o quanto ela teria de ser insinuante para poder, sem fugir ao bom gosto,
atrair e cativar as pessoas que buscavam
a loja, ou simplesmente passavam diante dela, para que vencessem o passo mais
difícil, que era entrar. Depois, dentro da loja, uma funcionária hábil saberia como tornar difícil sua saída sem
comprar nada. Aquela vitrine tinha de ser ao máximo convidativa, oferecer o
belo e o bom por um preço que trouxesse o almejado lucro e não assustasse a
futura freguesa.
Que roupa, de repente, vestiriam no manequim? Todas as estilistas
opinaram, cada uma sugerindo um tipo de saia, uma blusa, um conjunto, uma calça
e nada se ajustava ao manequim. Nada do que existia na loja parecia servir para ele. As moças estavam entregues aos seus
trabalhos e não poderiam interrompê-los fazendo, de uma hora para outra, outro
tipo de roupa. Alguém o comparou a um presente de grego na guerra de Tróia. Uma
peça ingrata que a patroa recebera.
Manuela ficou desolada. Que
fazer, então, diante de uma situação como aquela? E, no entanto, teriam de
achar uma roupa para o manequim que se transformara num estorvo, ocupando lugar
no galpão. Foi nesse momento que Raquel apareceu. Uma luz, lá no fundo, brotou na
mente de Manuela. Ela bem sabia das
queixas de Raquel, que achava já saber
criar uma roupa perfeita sem que, no entanto, lhe dessem nenhuma para conceber;
fingia, entretanto, não as conhecer para ganhar tempo e não ter de fazer
mudanças apressadas. Raquel continuava
esperando sua oportunidade.
- Raquel, vou precisar de você,
mas terá de ser muito rápida. Não há tempo a perder. Quero inaugurar a vitrine
no sábado, uma vitrine especial, mas me falta uma roupa adequada ao manequim
que ganhei. Quero que você crie alguma coisa para ele, que o faça chamar a
atenção das pessoas, que seja cativante. Posso contar com você?
- Sim, claro – disse
Raquel. Farei todo o possível, multiplicarei
minhas horas para vencer o prazo.
Manuela levou Raquel para ver o
manequim. Houve um murmúrio geral de contentamento entre as costureiras e as
outras pessoas que trabalhavam no galpão. É que gostavam muito de Raquel e
perceberam no ar alguma coisa de positivo, de inovador, que surgira para ela.
- É seu, Raquel, mãos à obra!
Assim que Manuela saiu, duas
mulheres, das mais afoitas, vieram abraçar Raquel, que sorria para todas, que
sempre a haviam incentivado, dizendo que seu dia chegaria. Ficou diante do manequim. Nunca tinha visto um manequim
assim, não que fosse grande, disforme, nada disso. Ele, apenas, parecia ter
outra contextura, mais perfeita e contornada que os demais manequins,
totalmente inexpressivos, precisando das roupas para lhes realçar a presença. Aquele,
por si só, já tinha como que uma grande presença, ainda que não usasse qualquer
vestimenta.
Raquel tirou as medidas do
manequim bem ajustadas, primeiramente. Depois, ao chegar ao pescoço, parou e
reparou que o contorno do rosto era perfeito e, à medida que se afastava dele, foi
notando outros pormenores e pensou, então, que, se o visse no meio de uma
multidão, não o distinguiria facilmente dos seres humanos, se estivesse convenientemente
vestido. Quem o criou fez dele uma peça de arte, uma estátua. O que mais lhe
chamou a atenção foram os olhos, bem fundos, como duas luzes em águas profundas
que, não só ofuscavam, como, por assim dizer, sugavam quem os olhasse demoradamente,
deixando-se perder naquele mar misterioso.
Bastante impressionada com o
manequim, voltou à mesa de trabalho, ninguém lhe perguntou nada e nem ela disse
alguma coisa. Assim que pôde respirar um
pouco, resolveu – e foi com muita alegria no coração e muita felicidade – contar
para o Lucas a novidade.
Foi até a rua para imaginar como
o manequim seria visto. Achou as roupas, dos outros manequins, inexpressivas e
sentiu que deveria avivar as cores que seriam vestidas pelo que lhe fora
confiado, que não fossem berrantes, agressivas, mas que sugerissem um mergulho
nas profundezas do mar, elegendo, então, um azul bem claro, que contrastasse
com um bege mutante, como a lembrar um sol que se despedisse do mar antes do
anoitecer. Ele deveria exibir uma suavidade contrastante com a volúpia dos movimentos do dia. Desse modo,
no meio da confusão e do tumulto do dia
a dia, a pessoa que por ali passasse, e
parasse para ver a vitrine, teria a impressão de estar atingindo a tranqüilidade
máxima e seria convidada a entrar e penetrar naquela suavidade, como se o mundo tivesse parado lá fora.
Com toda liberdade que tinha
para fazer o que quisesse e pegasse o que necessitasse, Raquel buscou auxílio
nos setores da empresa, tecido, linha, enfeites, bordados, botões, fivelas e
eis um esboço de um vestido simples, corrido, mas muito elegante. Lá pelas
tantas, resolveu acrescentar um lilás que enterneceu seu trabalho. Não estava competindo com ninguém, nem
invadindo o terreno das colegas, estava,
sim, penetrando profundamente em si mesma, sem pensar em mais nada, como quem
vai ao fundo do mar e tenta retirar de seu abissal os segredos e as descobertas
ali perdidas. Enquanto trabalhou, foi ignorada por todos, até pela colega
auxiliar. Seu manequim não mereceu a atenção das estilistas nem de ninguém.
Cabia a ela, pois, trazê-lo para a vida da loja, estruturando-o no seu novo ambiente.
O vestido para o manequim, que
desenhara, ficou pronto e foi entregue quando a maioria das pessoas já havia
saído.Manuela e Raquel foram vesti-lo nele, na vitrine. Havia uma luz que o iluminava para a rua e
outra luz que o iluminava no contexto da vitrine. A missão estava cumprida, o vestido caíra em
cheio no manequim, dando-lhe grandeza e dignidade numa sequência de elegância e
mistério.
Manuela, agradecida, abraçou
Raquel, emocionada. Esperariam pelo dia seguinte, quando o público daria a
última palavra. Elas se sentiam suspeitas para julgar o resultado da confecção.
Ainda naquela noite, quando Raquel estivesse abraçada ao Lucas, ela se imaginaria
recebendo os aplausos de todos pelo seu trabalho, tão feliz estava.
O êxito das vendas, que
começaram a crescer, foi atribuído ao vestido do manequim. Logo, Raquel foi
reconhecida, abraçada, louvada e promovida a estilista. Com uma obrigação:
cuidar das roupas do estranho manequim, porque as outras estilistas tentaram,
ainda, em vão, confeccionar alguma coisa para também vesti-lo, mas, quando
chegavam perto dele, não conseguiam dar
sequer um ponto e, quando traziam a roupa pronta, não conseguiam
vesti-lo. Nem Manuela conseguia impor-se ao manequim. Com um misto de medo e
susto, afastaram-se dele. Enquanto isso as vendas cresciam e aquela vitrine
passou a ser a mais visitada da rua. Ninguém esqueceu os vestidos que Raquel
idealizou para o manequim nas comemorações do aniversário da loja. Um antigo
fornecedor de tecidos importados, Alan, ofereceu-lhe sugestões: surgiu, assim,
uma composição de seda lilás, lembrando
um tom rosa esmaecido, com incrustações de orquídeas e recoberta de
mousseline de seda do mesmo tom. Depois do impacto da exibição da peça, muito
prestigiada, Raquel ainda criou outro
modelo, de popeline preta, sugestivo
para uma solenidade noturna. A rua
ganhou elasticidade e, em razão da divulgação da vitrine, passou a receber
pessoas de outras regiões. Surgiram, nas
proximidades, restaurantes e bares para cativar ainda mais os visitantes. Estabeleceu-se,
ali, o pequeno mundo da moda, com toda sua magia e sedução.
A vida de Raquel foi mudando dia a dia e ela se esforçava ao máximo no
desempenho da nova função. Chegava bem cedo e não tinha hora certa para deixar
o trabalho. A sua dedicação foi até elogiada pela direção. Manuela sentia que
podia confiar nas suas descobertas e inovações.
Raquel, entretanto, sabia que devia toda a reviravolta de sua vida àquele estranho manequim que continuava sob
suas ordens. Todos os dias ela se encontrava com ele, transformando-o numa mulher muito
elegante. Buscou um nome que a identificasse e lhe explicasse a personalidade:
Isabelle. A aproximação entre ambas
aconteceu sem sobressaltos e não precisou esforçar-se muito para que o
manequim cedesse às suas exigências, permitindo-lhe abarcar um mundo de fantasia na criatividade que a levou ao infinito, conseguindo tudo o que
queria com Isabelle, a ponto de deixar as colegas perplexas. Não havendo uma
luta inicial entre o seu Eu dominante e o manequim, que funcionava , portanto,
como um Outro, um objeto seu,
estabeleceu-se uma coexistência. E, sem que ela percebesse, quase
sorrateiramente, havia uma sensação de
entrega de sua parte para o manequim que a absorvia lentamente. Ele passou a
completá-la e ela o completava. Raquel criava infindáveis modelos, de vários
tipos, e todos eles serviam perfeitamente para Isabelle. A vitrine atingiu um esplendor nunca visto antes.
A loja, em razão dessa transformação, crescia em volume de vendas e de procura.
Estavam vivendo uma época de ouro. Raquel, de promoção em promoção, chegou a uma alta posição, sendo destacada entre
todos. Já se falava, até, numa chefia geral, o que muito agradou a Lucas, pois
ele sempre acreditou no seu talento e criatividade. As sugestões sobre tecidos,
modelos de blusas, vestidos, conjuntos,
apresentadas em reuniões, eram facilmente aprovadas. Assim, Raquel, tornou-se
responsável pela apresentação das coleções de
verão e inverno. Apesar das inovações, sua função principal consistia em cuidar, primordialmente, das roupas de Isabelle, o que lhe tomava
grande parte do tempo. Em verdade, a
auréola de mistério, que envolvia o
manequim, não se esvaíra.
Foi num dia de sol radiante,
quando Raquel chegou à loja, que teve a
inexplicável sensação de que a situação de euforia feérica, que todos estavam
vivendo, iria se alterar. A rua, nesse dia, estava repleta de gente e as lojas pareciam
cheias. De longe, pôde perceber que havia um grande ajuntamento defronte da sua vitrine. Parou para ter uma visão melhor daquela
aglomeração. As pessoas não se moviam, estavam e permaneciam estáticas como se
paralisadas por um ímã. Chegou junto a
vitrine, com certa dificuldade, abrindo caminho entre as pessoas. Procurou colar o rosto no vidro e então deu
com os olhos profundos do manequim, eletrizantes, ofuscantes, penetrantes,
dominantes, petrificantes. As pessoas pareciam bestificadas. Cada vez aumentava
mais o afluxo de gente diante da vitrine.
Raquel, de fininho, entrou na
loja e, por dentro, adentrou à vitrine. Virou a posição do manequim, deixando-o
a olhar para dentro da loja e não mais para a rua. O que aconteceu? Entraram todas as pessoas, em tropel, loja adentro,
seguindo a direção para a qual se voltara Isabelle. Foi o dia de maiores
vendas, de todos os tempos. Para impedir
que Isabelle paralisasse novamente as pessoas que a olhassem fixamente nos
olhos, Raquel inventou uma estratégia, que muita gente não entendeu, ao dar-lhe
óculos escuros para todos os dias, daí em diante.
Com esses óculos, o charme de Isabelle, paradoxalmente, aumentou ainda
mais.
Entre Raquel e Isabelle, entretanto, continuava a existir uma grande harmonia
sigilosa. O manequim captara fácil as
idéias e o modo de pensar de Raquel. Se, no princípio, parecia um golem
rústico, primitivo, aos poucos foi buscando seus valores. A estilista passou a temer por ele, pelos incômodos que
causava. Uma vez, um eletricista, ao cuidar da vitrine, descuidou-se e olhou
fixamente para ele: quase ficou petrificado. A antiga arrumadeira da vitrine se
queixava daquele estranho objeto que a impedia de fazer uma boa arrumação. Só a
presença de Raquel evitava problemas maiores. Um dia, Raquel adoeceu, por causa
de uma chuva que recebera em cheio, sem nenhum abrigo, numa noite quando ia
para casa. Faltou ao trabalho, no dia seguinte, e ninguém pôs os óculos em
Isabelle. Sem óculos, as pessoas - quase multidão - ficaram paralisadas diante da vitrine sem que pessoa
alguma pudesse ajudar. Estabeleceu-se quase um tumulto, em que todos falavam ao
mesmo tempo.
Em casa, ao ser avisada do ocorrido,
Raquel resolveu, ainda que débil, com o
corpo fragilizado, dirigir-se à loja. Cambaleante, nem sabia como conseguira
chegar tão rápido, e, sem falar com ninguém, entrou na vitrine e buscou o
manequim. De pronto, mudou-lhe a posição, e, de imediato, as pessoas se
afastaram. Isabelle pareceu sorrir-lhe, como que agradecendo sua presença.
Passado aqueles primeiro momento de aflição, decidiram todos que o manequim tinha de sair dali o mais
rápido possível.
- Esse manequim parece
diabólico, lembra a Medusa, já ouviram falar? Pois é, a Medusa era uma mulher,
na Grécia antiga, que petrificava quem a olhasse de frente, por isso todos
temiam encará-la. Causou tantos males
que teve de ser morta. Deceparam sua cabeça, segundo a mitologia - explicou alguém que entrara na loja.
Manuela ouviu atentamente o
cliente que assim falara e que acompanhava a mulher que tencionava fazer uma
aquisição de roupa. Tomou a decisão de tirar o manequim da vitrine. Raquel
estava trêmula e mal podia acreditar no que via e ouvia. Assustou-se quando
dois homens corpulentos foram chamados para arrastar Isabelle. Eles entraram e
não conseguiram tirar o manequim, que parecia ter chumbo nos pés.
- Como na lenda, vamos ter de
cortar sua cabeça, disse o homem. É o jeito de nos livrarmos dessa coisa.
A noite foi chegando e as pessoas se
afastaram num clima de ansiedade e nervosismo. No olhar das outras
estilistas, que foram obrigadas a aceitar sua ascensão durante todo esse tempo,
Raquel sentiu uma grande dose de censura, nem lhe dirigiram a palavra ao sair.
Acreditavam estar diante de um fenômeno de malignidade, algo sobrenatural. Não
aceitariam nada mais daquele manequim diabólico. Manuela, para acalmar os ânimos,
prometeu que no dia seguinte, pela manhã, bem cedo, de alguma maneira, ele
seria retirado da vitrine, talvez cortado em pedaços, se fosse necessário, por
uma serra elétrica.
Raquel estremeceu. Sabia o que
estava reservado a Isabelle. Ela seria destruída, assim queriam todos. Viu que
seu olhar carregava, ainda, uma espécie
de fulgor. Deveria agir rapidamente,
encontrar uma solução para impedir o que pretendiam fazer. Mas, como ? A noite passaria rapidamente e pela madrugada,
antes da abertura da loja, agiriam. De
que maneira, não sabia. Que fazer? Telefonou para Lucas, que se assustou muito
com o que ela pretendia. Por que arriscar sua carreira, ela estava cotada para
ser a principal figura da loja, sua vida
profissional, por um manequim? Não, não
era um simples manequim, era Isabelle, explicou Raquel. O olhar de Isabelle não
a petrificava, muito pelo contrário, elevava-a, tornava-a confiante e
destemida. Na convivência que tiveram, dia a dia, entre um vestido e outro, elas se completaram
e como que se fundiram numa pessoa só. Destruir Isabelle seria, agora, para Raquel, destruir-se a si própria.
Enquanto esperava Lucas, a quem
pedira, por celular, que viesse, Raquel, na rua, grudou-se na vitrine e, embora, na escuridão
não visse bem o seu interior, procurou localizar Isabelle que, no seu último
vestido de seda pura estampada - tecido
enviado de Paris, de Montmartre -
sobressaía como uma rainha entre
seus súditos. Reinava um silêncio completo. Tudo era ilusório, apesar da calma
da noite. Os planos para o dia seguinte, os planos para liquidar Isabelle, a
assustavam e só aumentava a idéia, em
sua mente, de salvar o manequim antes que fosse tarde demais.
A noite cada vez mais densa, sem as luzes
feéricas dos enfeites e dos anúncios, foi-se assenhoreando da rua deserta e silenciosa,
inatingível agora ao burburinho e aos solavancos dos transeuntes na difícil
disputa por um espaço na busca de um objeto para concretizar sonhos, realizar
desejos e sustentar ostentações,
enquanto uma aragem penetrante aparecia como uma convidada que surge na hora
certa para sorver os momentos finais e decisivos de uma festa.
Lucas chegou. Tentou, em vão,
convencê-la, fazê-la mudar de idéia, mas foi tudo inútil. Faltavam poucos minutos para as onze horas da
noite. Qualquer vacilo seria fatal para a realização do plano. Bastaria a
passagem do guarda noturno fiscalizando as lojas da rua para impedir qualquer
ação. Se isso acontecesse, seria o fim, pois não saberia e nem teria como
explicar o que iria acontecer.
Raquel, sofrendo os efeitos daquela friagem,
em sua saúde debilitada, então, armada de coragem, não titubeou, entrou
na loja com sua chave de reserva. Sentiu
que não poderia esperar nem um minuto a mais. Respirou fundo e, depois de
lançar um último olhar para o ambiente que a fizera alçar um vôo tão alto,
despedindo-se, abriu a vitrine, lutando com uma vontade imensa de chorar ao se
deparar com Isabelle, tão suntuosa, tão bela. Conseguira trazer para a loja o
sucesso e o encantamento, mas agora era uma condenada que aguardava o
cumprimento de sua sentença. Mas foi com
muita calma que, procurando não tropeçar porque não acendeu a luz, chegou a
Isabelle. Tinha a voz embargada de
emoção ao sussurrar junto ao manequim:
--Vamos, Isabelle, vou tirar você
daí. Seja dócil.
O manequim não ofereceu a menor
resistência, como se entendesse o que estava acontecendo; deixou-se arrastar, facilmente, por Raquel e
seu namorado, até o carro de Lucas. A noite parecia continuar conspirando sem
nenhuma alteração além da penetrante aragem no silêncio da rua deserta. Isabelle
e Raquel, finalmente, despertavam e saíam
de um mundo estruturado desumanamente, ganhando
a liberdade. Lucas colocou Isabelle na parte traseira de sua camionete, ele e
Raquel entraram nela e se afastaram em direção ao desconhecido.
Manuela chegou bem cedo. Saltou do
carro e parou diante da vitrine, estarrecida.
Ali estava a sua vitrine de outrora, com seus arranjos simples, disposta
com os manequins antigos, sem qualquer enfeitiçamento. Nenhum sinal do manequim
que recebera, de herança, daquele tio que fora dono de uma alfaiataria.
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