Quando Juan, personagem de “ 62
Modelo para Armar”,de Julio Cortázar, cujo livro fora esboçado no final do
capítulo 62 de “ O jogo da amarelinha”, perambulava em Paris por Saint Germain
des Près, antes de chegar na esquina da rua Monsieur Le Prince com a rua de
Vaugirard, de onde se avistava um pedaço de céu avermelhado, com um cheiro de
umidade, um portal de mofo, que lhe recordava uma amiga, a condessa em Viena, na
sua solitária noite de Natal; viu na vitrine de uma livraria um livro que
imediatamente comprou. Era um livro de Michel Butor sobre o autor de Atala e
René, François-René de Chateaubriand.
Entrou na livraria, viu o livro e comprou-o, imaginando que provavelmente não o
leria, pois sempre comprava livros que se
perdiam em sua biblioteca sem nunca serem lidos. Com o livro na mão, numa verdadeira sequência,
seguindo pela rua Monsieur Le Prince, chegou ao restaurante Polidor. Sem se dar
conta do que conscientemente estava fazendo, entrou no restaurante. E o porquê
dessa atitude iria atormentá-lo durante a noite. Após um empurrão na porta,
viu-se dentro do restaurante, quando um garçom apareceu e o levou à pior mesa
existente, pois não fizera nenhuma reserva antecipada, “ a mesa falsa de cara
com a parede, com a parede fantasiada de espelho”. Concordara em se sentar numa
mesa, de costas para a sala, com o espelho lhe mostrando toda a entrada do
restaurante. Sentiu-se de costas para o mundo. A verdade é que, como não tivera
a intenção de comprar o livro, também não tivera a intenção de jantar no
Polidor.Tudo aconteceu de repente, por um momento de desalento. Pediu imediatamente uma garrafa de Sylvaner
(variedade de vinho proveniente da Alsácia e da Alemanha). Bebeu um copo, mais outro, talvez para tentar esquecer o vazio em que se encontrava em Paris
numa noite de Natal. Abriu o livro comprado e, desinteressadamente, leu que o
visconde de Chateaubriand havia contemplado as cataratas do Niágara,
escrevendo, sobre elas, um célebre trabalho.
E foi nesse momento, em que
estava começando a fechar o livro, porque a luz era péssima e não tinha vontade
de ler, ainda com Chateaubriand sob seus olhos, que viu no espelho um comensal
gordo, sentado na segunda mesa, de costas para ele, gritar:
- Je voudrais un château saignant.
O comensal gordo mutilara o nome
do autor de Atala. Deveria ter pedido :
- Je voudrais un chateaubriand saignant.
Juan sabia que se tratava de um
prato de carne, um bife grosso mal passado,
por isso sentiu imediatamente a mutilação no pedido feito pelo homem. Não
sabia se no cardápio o nome do prato também sofrera mutilação. ( Acredita-se
que esse prato tenha sido criado em Paris por Pierre de Montmirail, cozinheiro do
grande escritor francês François-René-Auguste de Chateaubriand, visconde de
Chateaubriand - 1768/1848 - que inventou uma variação de filé com o nome do
patrão.)
Na verdade, o comensal pedira:
- Eu queria um castelo sangrento.
E esse pedido se deu justamente quando
Juan bebia o primeiro gole de vinho gelado, esperando que lhe trouxessem uma coquille Saint-Jacques que, na verdade, não lhe apetecia no momento. A voz do homem
despertou-o, tirou-o do marasmo e das indecisões por ter diante de si o livro
que falava de Chateaubriand. Se Juan não estivesse diante do livro, que
mencionava expressamente Chateaubriand, não
teria prestado atenção ao pedido feito pelo homem gordo e sua voz se teria
perdido no salão do restaurante.
Sentado em sua mesa, no fundo da sala,
impregnado ainda pela voz que lhe chegara pelas costas, Juan interpretou o
pedido do comensal, em seu duplo sentido, concluindo que ele pedira um castelo sangrento. Ele se
perguntava: Por que entrara no restaurante Polidor, por que comprara o livro e
o abrira ao acaso e lera também ao acaso uma simples frase apenas um segundo antes que o comensal gordo
pedisse um bife quase cru?
Juan, ainda de costas para o mundo,
carregando aquele vazio intenso, pensava em seus amigos, em tantas e tantas
ocasiões na mesa do bar Cluny, na esquina de Boul´Mich com Boulevard
Saint-Germain. Sentia-se um estranho no ambiente do Polidor, mas, na certa,
quando pudesse se reunir com os amigos no Cluny, teria muitas coisas para
contar. E eles estariam
interessados nos seus relatos. As reminiscências
mergulhavam em sua mente, fervilhando à
medida que ele ia sorvendo os goles do Sylvaner. Onde estariam Hélène, a
condessa, Calac, Tell, Polanco e Nicole? Surgia, então, a Cidade, como uma metáfora,
que estaria vinculada a qualquer lugar
ou qualquer coisa e tinha um sentido privilegiado, sempre em oposição às
cidades habituais.A cidade não tinha explicação, ela, simplesmente, era.
Existia. Tanto podia ser em Paris, numa
cervejaria de Oslo ou em Barcelona. Transcendia à geografia.
Na cidade, os hotéis
tinham varandas tropicais, as ruas eram cobertas e havia uma praça com bondes.
Muitas coisas da cidade eram aceitas sem discussão ainda que fosse difícil
saber quem as havia trazido pela primeira vez. Havia sempre a lembrança de
estarem reunidos em torno da mesa do
Cluny, rindo das ilusões, quando um deles, na condução dos assuntos, se fazia de superior, mentor do grupo ou
paredro.
Juan, naquela fria noite de Natal, sentiu-se, no seu evoluir, dominado por dois espelhos, o do espaço,
refletindo o restaurante, com sua trepidação, seus pratos, seus fregueses, o
comensal gordo diante de seu “château
saignant” na movimentação constante da noite .O Outro, o espelho do tempo lhe
trazia a condessa que se definira na
esquina da rua Monsieur Le Prince com a
rua Vaugirard, Hélène e Frau Marta em
Viena e todos os amigos, numa animada conversa no bar Cluny. Os lugares e as pessoas
se misturavam e o envolviam num torpor que lhe era realçado pelo sabor do vinho,
em meio às conversas no restaurante.
Juan, já bem longe do restaurante Polidor e antes de se
deixar levar até o bairro do canal de
Saint-Martin, andou sozinho pelas ruas, totalmente embriagado de Sylvaner e
cansaço, tentando recompor-se, despojando-se do entorpecimento que naquela noite
o envolvera na pequena mesa que o obrigara a dar as costas ao mundo.
E ele, assim, foi definido: “ Mais tarde, com o gosto de
borra de um café ruim, caminhou sob o chuvisco em direção ao bairro do Panthéon,
fumou refugiado num portal, embriagado de Sylvaner e cansaço, obstinando-se
ainda vagamente em reavivar aquela matéria que cada vez mais se tornava
linguagem, arte combinatória de lembranças e circunstâncias, sabendo que naquela mesma noite ou no dia seguinte na zona, tudo o que contasse seria irremissivelmente
desvirtuado, posto em ordem, proposto como enigma de roda de conversa, charada
de amigos."
No livro “Uma Literatura nos Trópicos”, Silviano Santiago,
analisando o personagem de Cortázar, às fls. 21/22, enfoca a seguinte questão:
“ Durante o processo de tradução, o imaginário do escritor
está sempre no palco, como neste belo exemplo pedido de empréstimo
a Julio Cortázar."
E prossegue:
E prossegue:
"O personagem principal de “ 62 Modelo para armar”, de
nacionalidade argentina, vê desenhada no espelho do restaurante parisiense em
que entrou para jantar esta frase mágica: “ Je voudrais um château saignant.”
Mas, em lugar de reproduzir a frase na língua original, ele a traduz
imediatamente para o espanhol: “Quisiera um castillo sangriento.” Escrito no
espelho e apropriado pelo campo visual do personagem latino-americano, château sai do contexto gastronômico e
se inscreve no contexto feudal, colonialista, a casa onde mora o senhor, el castillo. E o adjetivo, saignant, que significava apenas a preferência ou o
gosto do cliente pelo bife mal passado, na pena do escritor argentino, sangriento, torna-se a marca evidente de
um ataque, de uma rebelião, o desejo de ver o château, o castillo
sacrificado, de derrubá-lo, a fogo e sangue.
A tradução do significante avança
um novo significado – e, além disso, o signo lingüístico nuclear (château) abriga o nome daquele que
melhor compreendeu o Novo Mundo no século XIX: René de Chateaubriand. Não é por
coincidência que o personagem de Cortázar, antes de entrar no restaurante,
tinha comprado o livro de um outro
viajante infatigável, Michel Butor, livro em que este fala do autor de René e de Atala. E a
frase do freguês, pronunciada em toda a inocência gastronômica, “je voudrais un château saignant”, é percebida na superfície do espelho, do dicionário, por uma
imaginação posta em trabalho pela leitura de Butor, pela situação do
sul-americano em Paris, “ quisiera um castillo sangriento”.”
Segundo a opinião do grande romancista e contista argentino (que nasceu na Bélgica e viveu em Paris durante boa parte de sua vida, sendo-lhe outorgada, inclusive, a nacionalidade francesa), o que, verdadeiramente, se
poderia tentar captar no mundo? Cortázar afirma que o que há é uma “ inquietude, um desassossego, um
desarraigo contínuo, um território onde a causalidade psicológica cederia
desconcertada.”Em última análise, portanto, para ele, forças desconhecidas se movem em torno do homem, mas este é incapaz de entendê-las.
Obras consultadas: 62 Modelo Para Armar - Tradução de Glória Rodriguez - Civilização Brasileira - 2000;
Uma Literatura Nos Trópicos - Silviano Santiago - Roccco - 2000
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