quinta-feira, 1 de novembro de 2012

62 MODELO PARA ARMAR - Julio Cortázar - de ELSA CARAVANA GUELMAN


Quando Juan, personagem de “ 62 Modelo para Armar”,de Julio Cortázar, cujo livro fora esboçado no final do capítulo 62 de “ O jogo da amarelinha”, perambulava em Paris por Saint Germain des Près, antes de chegar na esquina da rua Monsieur Le Prince com a rua de Vaugirard, de onde se avistava um pedaço de céu avermelhado, com um cheiro de umidade, um portal de mofo, que lhe recordava uma amiga, a condessa em Viena, na sua solitária noite de Natal; viu na vitrine de uma livraria um livro que imediatamente comprou. Era um livro de Michel Butor sobre o autor de Atala e René,  François-René de Chateaubriand. Entrou na livraria, viu o livro e comprou-o, imaginando que provavelmente não o leria, pois sempre comprava livros que se  perdiam em sua biblioteca sem nunca serem lidos.  Com o livro na mão, numa verdadeira sequência, seguindo pela rua Monsieur Le Prince, chegou ao restaurante Polidor. Sem se dar conta do que conscientemente estava fazendo, entrou no restaurante. E o porquê dessa atitude iria atormentá-lo durante a noite. Após um empurrão na porta, viu-se dentro do restaurante, quando um garçom apareceu e o levou à pior mesa existente, pois não fizera nenhuma reserva antecipada, “ a mesa falsa de cara com a parede, com a parede fantasiada de espelho”. Concordara em se sentar numa mesa, de costas para a sala, com o espelho lhe mostrando toda a entrada do restaurante. Sentiu-se de costas para o mundo. A verdade é que, como não tivera a intenção de comprar o livro, também não tivera a intenção de jantar no Polidor.Tudo aconteceu de repente, por um momento de desalento.  Pediu imediatamente uma garrafa de Sylvaner (variedade de vinho  proveniente da Alsácia e da Alemanha). Bebeu um copo, mais outro, talvez para tentar  esquecer o vazio em que se encontrava em Paris numa noite de Natal. Abriu o livro comprado e, desinteressadamente, leu que o visconde de Chateaubriand havia contemplado as cataratas do Niágara, escrevendo, sobre elas, um célebre trabalho.

E foi nesse momento, em que estava começando a fechar o livro, porque a luz era péssima e não tinha vontade de ler, ainda com Chateaubriand sob seus olhos, que viu no espelho um comensal gordo, sentado na segunda mesa, de costas para ele, gritar:

- Je voudrais un château saignant.

O comensal gordo mutilara o nome do autor de Atala. Deveria ter pedido :

 - Je voudrais un chateaubriand saignant.

              Juan  sabia que se tratava de um prato de carne, um bife grosso  mal passado, por isso sentiu imediatamente a mutilação no pedido  feito pelo homem. Não sabia se no cardápio o nome do prato também sofrera mutilação. ( Acredita-se que esse prato tenha sido criado em Paris por Pierre de Montmirail, cozinheiro do grande escritor francês François-René-Auguste de Chateaubriand, visconde de Chateaubriand  - 1768/1848 - que inventou uma variação de filé com o nome do patrão.)
                   Na verdade, o comensal pedira:

               - Eu queria um castelo sangrento.

               E esse pedido se deu justamente quando Juan bebia o primeiro gole de vinho gelado, esperando que lhe trouxessem uma coquille Saint-Jacques que, na verdade,  não lhe apetecia no momento. A voz do homem despertou-o, tirou-o do marasmo e das indecisões por ter diante de si o livro que falava de Chateaubriand. Se Juan não estivesse diante do livro, que mencionava  expressamente Chateaubriand, não teria prestado atenção ao pedido feito pelo homem gordo e sua voz se teria perdido no salão do restaurante.

               Sentado em sua mesa, no fundo da sala, impregnado ainda pela voz que lhe chegara pelas costas, Juan interpretou o pedido do comensal, em seu duplo sentido, concluindo que  ele pedira um castelo sangrento. Ele se perguntava: Por que entrara no restaurante Polidor, por que comprara o livro e o abrira ao acaso e lera também ao acaso uma simples frase  apenas um segundo antes que o comensal gordo pedisse um bife quase cru?

          Juan, ainda de costas para o mundo, carregando aquele vazio intenso, pensava em seus amigos, em tantas e tantas ocasiões na mesa do bar Cluny, na esquina de Boul´Mich com Boulevard Saint-Germain. Sentia-se um estranho no ambiente do Polidor, mas, na certa, quando pudesse se reunir com os amigos no Cluny, teria muitas coisas para contar. E eles  estariam interessados  nos seus relatos. As reminiscências mergulhavam em sua mente, fervilhando  à medida que ele ia sorvendo os goles do Sylvaner. Onde estariam Hélène, a condessa, Calac, Tell, Polanco e Nicole? Surgia, então, a Cidade, como uma metáfora,  que estaria vinculada a qualquer lugar ou qualquer coisa e tinha um sentido privilegiado, sempre em oposição às cidades habituais.A cidade não tinha explicação, ela, simplesmente, era. Existia.  Tanto podia ser em Paris, numa cervejaria de Oslo ou em Barcelona. Transcendia à geografia.

 Na cidade, os hotéis tinham varandas tropicais, as ruas eram cobertas e havia uma praça com bondes. Muitas coisas da cidade eram aceitas sem discussão ainda que fosse difícil saber quem as havia trazido pela primeira vez. Havia sempre a lembrança de estarem  reunidos em torno da mesa do Cluny, rindo das ilusões, quando um deles, na condução dos assuntos,  se fazia de superior, mentor do grupo ou paredro.

Juan, naquela fria noite de Natal, sentiu-se, no  seu evoluir,  dominado por dois espelhos, o do espaço, refletindo o restaurante, com sua trepidação, seus pratos, seus fregueses, o comensal gordo diante de seu  “château saignant” na movimentação constante da noite .O Outro, o espelho do tempo lhe trazia a condessa  que se definira na esquina  da rua Monsieur Le Prince com a rua Vaugirard, Hélène  e Frau Marta em Viena e todos os amigos, numa animada conversa no bar Cluny. Os lugares e as pessoas se misturavam e o envolviam num torpor que lhe era realçado pelo sabor do vinho, em meio às conversas no restaurante.

Juan, já bem longe do restaurante Polidor e antes de se deixar levar até  o bairro do canal de Saint-Martin, andou sozinho pelas ruas, totalmente embriagado de Sylvaner e cansaço, tentando recompor-se, despojando-se do entorpecimento que naquela noite o envolvera na pequena mesa que o obrigara a dar as costas ao mundo.

E ele, assim, foi definido: “ Mais tarde, com o gosto de borra de um café ruim, caminhou sob o chuvisco em direção ao bairro do Panthéon, fumou refugiado num portal, embriagado de Sylvaner e cansaço,  obstinando-se  ainda vagamente em reavivar aquela matéria que cada vez mais se tornava linguagem, arte combinatória de lembranças e circunstâncias, sabendo que naquela mesma noite ou no dia seguinte na zona,   tudo o que contasse seria irremissivelmente desvirtuado, posto em ordem, proposto como enigma de roda de conversa, charada de amigos."

No livro “Uma Literatura nos Trópicos”, Silviano Santiago, analisando o personagem de Cortázar, às fls. 21/22,  enfoca a seguinte questão:

“ Durante o processo de tradução, o imaginário do escritor está sempre no  palco, como  neste  belo exemplo  pedido  de   empréstimo a Julio Cortázar."

E prossegue:

"O personagem principal de “ 62 Modelo para armar”, de nacionalidade argentina, vê desenhada no espelho do restaurante parisiense em que entrou para jantar esta frase mágica: “ Je voudrais um château saignant.” Mas, em lugar de reproduzir a frase na língua original, ele a traduz imediatamente para o espanhol: “Quisiera um castillo sangriento.”  Escrito no espelho e apropriado pelo campo visual do personagem latino-americano, château sai do contexto gastronômico e se inscreve no contexto feudal, colonialista, a casa onde mora o senhor, el castillo. E o adjetivo, saignant,  que significava apenas a preferência ou o gosto do cliente pelo bife mal passado, na pena do escritor argentino, sangriento, torna-se a marca evidente de um ataque, de uma rebelião, o desejo de ver o château, o castillo sacrificado, de derrubá-lo, a fogo e sangue.  A tradução do significante  avança um novo significado – e, além disso, o signo lingüístico nuclear (château) abriga o nome daquele que melhor compreendeu o Novo Mundo no século XIX: René de Chateaubriand. Não é por coincidência que o personagem de Cortázar, antes de entrar no restaurante, tinha  comprado o livro de um outro viajante infatigável, Michel Butor, livro em que  este fala do autor de René e de Atala. E a frase do freguês, pronunciada em toda a inocência gastronômica, “je voudrais un château saignant”, é percebida na superfície do espelho, do dicionário, por uma imaginação posta em trabalho pela leitura de Butor, pela situação do sul-americano em Paris, “ quisiera um castillo sangriento”.”

                Segundo a opinião do grande romancista e contista argentino (que nasceu na Bélgica e viveu em Paris durante boa parte de sua vida, sendo-lhe outorgada, inclusive, a nacionalidade francesa), o que, verdadeiramente, se poderia tentar captar no mundo?  Cortázar afirma que o que há  é uma “ inquietude, um desassossego, um desarraigo contínuo, um território onde a causalidade psicológica cederia desconcertada.”

                 Em última análise, portanto, para ele, forças desconhecidas se movem em torno do homem, mas este é incapaz de entendê-las.

Obras consultadas: 62 Modelo Para Armar - Tradução de Glória Rodriguez - Civilização Brasileira - 2000;
Uma Literatura Nos Trópicos - Silviano Santiago - Roccco - 2000



         

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