sábado, 2 de novembro de 2013
Marcel Proust - Jacques Lacan - Jacques Rancière O MITO DO CAPACHO : O Caminho de Guermantes - de Elsa Caravana Guelman. Para o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis. Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o naturalista reconstitui populações animais a partir dos ossos, e florestas a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se uma nova idéia de artista. O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E, nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.” Para Novalis "O homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala linguagens infinitas".. Segundo Rancière, o novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado Mitologizar para Lacan significa incorporar numa mesma história elementos que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia. O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real E é por essa apresentação mágica e viva que ele é mitologizado no entender de Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício, colorido e imortalizado pelo seu passado e lendas medievais.” “...O palácio de Guermantes começava para mim na porta do seu vestíbulo...” Diante do capacho o herói se detém, como se muralhas gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória, quando, por um toque mágico, num convite da duquesa de Guermantes, o capacho não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura, de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente, ao mundo imaginário dos Guermantes para então ser transportado ao mundo da arte. . Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante onde as pessoas, quando convidadas, limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos Guermantes. Nada mais que isso. Para Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que se achava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação exóticas, o capacho gasto da margem.” O capacho dos Guermantes, como mito, representava a linha divisória intransponível entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul no mapa mundi.
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