O PEQUENO MUNDO DE
MARCEL PROUST
De Elsa Caravana
Guelman
A literatura de Marcel Proust é de uma riqueza inimaginável pelas significações mágicas e simbólicas que se entrelaçam entre as
palavras em sua narrativa que, de início, se
apresenta numa aparência de leveza na condução dos acontecimentos que vão
surgindo no crescimento e na bifurcação de suas longas frases quando, então, crescem emocionalmente e, numa
transformação, nos conduzem a um verdadeiro labirinto. E essas infiltrações são invisíveis numa
primeira vista, não aparecem, como se
dormissem dentro das palavras, necessitando de uma ordem do leitor para o seu
despertar ou, como sonâmbulas, necessitam de quem as despertem. São muitos
também os signos que fogem das coisas onde estão como se escapassem de vasos
fechados e se identificam em verdadeiros círculos, cruzando-se, inicialmente,
com mundanismo, amor, sensibilidade
antes de convergirem, finalmente, todos esses signos, para a vivência absoluta da arte. Se persistirmos na descoberta desses signos
descobriremos que as frases desabrocham
como flores em dia de sol nos jardins e as sentiremos revividas e incorporadas
de novas sensações , quando despertarão para uma vida própria no enriquecimento
do texto. As palavras de estáticas passam a ser dinâmicas, e, recriadas em seu
novo reino, se ajustam em harmonia ao dar seguimento às novas visões do
pensamento. Entendemos, então, que, num processo duplo, o leitor e as palavras
do escritor se encontram e se completam verdadeiramente para uma viagem de
encantamento nos domínios da escrita.É o que acontece quando se lê Marcel
Proust. Abrimos o livro e começamos a ler em busca de um entendimento. As
palavras parecem nos esperar para esta viagem. Mas na verdade querem é ser
decifradas, pois muitas delas não estão no texto com o seu sentido lógico, do
dicionário, não. Quando encontramos a primeira dificuldade e o entendimento é
dúbio, vamos, então, tateando, mexendo, remexendo em tudo na tentativa de
encontrar um sentido figurativo ou analógico para não perder o rumo e despencar
nos seus longos parênteses, verdadeiros recheios de conhecimentos filosóficos e
literários, um alerta ao leitor para se preparar a uma conclusão surpreendente,
uma espécie de “avant goût”, uma pequena amostra da beleza e da grandiosidade
que ele nos prepara com a certeza de que
não pararíamos, que iríamos até ao fim. Finalmente
nos envolvemos com o uso constante de metáforas que, ampliando e avivando os
trechos das reminiscências e descobertas
com infinitas feições, enriquecem e eternizam sua literatura.
Sobre
a literatura proustiana, André Gide, que se
recusou a publicar Du côté de chez Swann pela Gallimard, assim se expressou:
“Que livros
curiosos! Penetramos neles como em uma floresta encantada; desde as primeiras
páginas nos perdemos, e ficamos felizes de nos perder; logo não sabemos mais
por onde entramos nem a que distância
nos encontramos da margem; em alguns momentos, parece que caminhamos sem
avançar, e, em outros, que avançamos sem caminhar, vamos olhando tudo de
passagem; não sabemos mais onde estamos, para onde vamos.” André Gide, Incidences, Paris,
Gallimard, 1948.
Marcel Proust é uma fonte inesgotável,
que se estrutura e se recria a todo instante, proporcionando-nos prazeres
renovados da amplidão transbordante de suas rememorações, porque nada para ele
se apresentava concluído, tendo de evoluir, crescer e se modificar no jogo sutil
das emoções que sua memória prodigiosa arrancava dos abismos da mente. Ler
Marcel é contar sempre com surpresas e
descobertas, surpresas que podem até modificar o sentido original que se deu à
leitura e descobertas pela duplicidade de ideia que cada palavra pode sugerir
em sua movimentação. Acho que até o próprio Proust se perdia nessa tentativa de
aprimoramento de seu estilo, sempre impulsionado pelo que lhe ditava o
subconsciente, o seu interior mais profundo e contando com sua sensibilidade, em que tudo está
aprisionado como em caixas a espera de
um olhar ou de um empurrão para ganhar existência no mundo real.
A
preocupação de Proust com seus romances foi imensa, ocupando-lhe todo o tempo
de que dispunha, quando se isolou em seu
apartamento e passou a viver inteiramente para a arte, em companhia da amiga Celeste Albaret. Ela,
inclusive, o ajudava pregar pedaços de papel escritos nos seus cadernos e nas
revisões, verdadeira compulsão. Deixou 75 cadernos com observações,
modificações de sua obra, escritas nervosamente pela noite afora. Corria contra
o tempo, pois temia que a morte o tragasse antes de terminar seu trabalho
definitivo. Esses cadernos manuscritos, que estavam em poder da
família, foram adquiridos pela
Biblioteca Nacional da França e lá se encontram à disposição dos estudiosos e
decifradores de Marcel, havendo um grupo de pesquisadores franceses, japoneses
e brasileiros trabalhando para a organização de uma edição que conterá a
transcrição integral das páginas, com notas e comentários dos textos,
reproduções em fac-símile que dará ao leitor a possibilidade de cotejar a
transcrição com o manuscrito proustiano.
Faremos, então, uma viagem literária ao
universo de Marcel Proust. Escolhemos seu
romance, “Du cote de chez Swann”, na parte referente a Combray, por
ressaltar as lembranças de uma época em que seus sonhos e anseios eram mais
fecundos que suas dúvidas.
“Desse
modo, por bastante tempo, quando acordava de noite e me vinha a recordação de
Combray, nunca consegui rever mais que aquela espécie de traço ou lanço
luminoso (pan lumineux), que era recortado no meio de trevas indiferenciadas,
semelhante aos que o acender de um fogo de artifício ou certa projeção elétrica
iluminam e seccionam em um prédio cujas outras partes permanecem escuras e mergulhadas dentro da noite: na base, muito
larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda escura por
onde surgiria o Sr. Swann,
inconsciente autor das minhas tristezas,
o vestíbulo por onde me levaria para o
primeiro degrau da escada, tão difícil de subir, que, por si só,
constituía o tronco bastante estreito
daquela pirâmide irregular; e, o meu quarto, no alto,
com o pequeno corredor de porta envidraçada por onde mamãe entrava; em resumo, sempre visto à
mesma hora, isolado de tudo o que
pudesse ter em torno, aparecendo sozinho na escuridão, o cenário estritamente necessário ( como os que são
vistos indicados em cima das velhas peças para as representações na província),
ao drama do meu deitar: como se Combray se resumisse apenas em dois andares
ligados por uma estreita escada, e como se nunca fosse mais
que sete horas da noite. Na verdade,
poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray ainda compreendia outras coisas mais e existia em
outras horas. Todavia como o que então recordasse me seria fornecido unicamente
pela memória voluntária, a memória da Inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado
não conservam nada deste, nunca me teria ocorrido de pensar no restante de
Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim. Morto para sempre? Era
possível ?
Há muito de acaso em tudo isso, e um
segundo acaso, que é o de nossa morte, não nos permite muitas vezes aguardar
por muito tempo os favorecimentos do primeiro.
Acho que é
razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos, se acham
cativas em algum ser inferior, num animal, um vegetal, uma coisa inanimada,
efetivamente perdida para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que
nos permite passar por perto da arvore, entrar na posse do objeto que lhe serve
de prisão. Então elas palpitam, chamando-nos,
e, logo que as reconhecemos, está desfeito o encanto. Libertadas por nós,
venceram a morte e voltam a viver conosco.
Assim é com o nosso passado. Trabalho
perdido tentar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência mostram-se inúteis. Está ele oculto, longe do
seu domínio e do seu alcance, em algum objeto material ( na sensação que nos
daria tal objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que seja localizado antes de
morrer, ou que não o localizemos nunca.”
Nessa recordação de Combray, Marcel
Proust, ou o narrador, se esqueceu de um lugar que lhe era muito caro: uma
pequena peça que cheirava a íris (uma planta perfumada e suspensa por galhos) e
onde também tinha um cassis silvestre e perfumado, na parte de cima da
casa e perto do local onde sua avó
sempre dava seus passeios pelo jardim. Mas o próprio narrador adverte: “Na
verdade, poderia responder a quem me perguntasse que Combray comprendia outras
coisas mais e existia em outras horas.” Na ocasião, suas recordações a respeito
de Combray eram trazidas unicamente pela memória voluntária, a memória da
inteligência, cuja informação sobre o passado
não conservava nada dele, e nem lhe teria feito lembrar-se do restante
de Combray, ainda que nesse restante estivesse um cantinho
com tantas recordações de seu passado. Essa recordação
da memória voluntária de Combray difere da outra recordação de Combray em razão
da madeleine que é evocada pela memória involuntária, quando Combray aparece em um passado puro,
nada tendo com o presente atual e o passado que foi presente, por ser uma
essência “do tempo em estado puro”. Voltando ao esquecimento de Marcel. O que
representava esse cantinho ? O que
representou, verdadeiramente, em sua infância e adolescência.?
“Quando tinha 12 anos eu me isolei pela
primeira vez no quartinho que ficava no
alto de nossa casa em Combray onde existiam colares de grãos de íris suspensos,
procurando nessa fuga um prazer desconhecido, original, que não poderia ser
substituído por outro. Era uma peça grande, que podia ser fechada à chave, mas
a janela estava sempre aberta dando passagem a uma flor lilás que vinha do muro
exterior e conseguira passar pela fresta sua extremidade perfumada. Tão alto
(dans les combles du château), no sótão, eu me sentia absolutamente só, mas esta
aparência de estar em pleno ar, somava
uma sensação deliciosa ao
sentimento de segurança que sólidas fechaduras davam a minha solidão.A
exploração que eu fiz então em mim mesmo em busca de um prazer que eu não
conhecia, não me teria dado mais emoção, mais pavor, se eu tivesse agido por
mim ao praticar uma intervenção cirúrgica em minha medula e meu cérebro. A todo
momento eu acreditava que ia morrer. Mas que me importava, meu pensamento
exaltado pelo prazer sentia que ele era mais vasto, mais possante que este universo que eu percebia ao longe pela
janela na imensidão e na eternidade da qual eu pensava habitualmente com
tristeza não ser senão uma efêmera parcela. Nesse momento também ainda longe das
nuvens cobrirem a floresta, eu sentia que meu espírito ia um pouco mais longe
que a extremidade das coisas, não estava
tomado por elas, deixava uma
pequena margem ainda. Eu sentia meu
olhar potente nas minhas pupilas trazer como simples reflexos sem realidade as
belas colinas curvas que se elevavam
como seios dos dois lados do rio. Tudo isso
repousava sobre mim, eu era mais
que tudo isso, eu não podia morrer.” (...) Nesse momento eu senti uma ternura que me envolvia, era o
odor do lilás que em minha exaltação eu tinha deixado de perceber. Mas um odor
acre, um odor de seiva ali se misturava
como se eu tivesse quebrado o galho; eu tinha somente deixado sobre a
folha um traço prateado e natural como faz o fio da virgem ou o caracol. Mas
sobre este galho ele me aparecia como o
fruto proibido sobre a árvore do mal. E
como os povos que dão às suas divindades formas inorganizadas, foi sob a
aparência desse fio de prata que se podia esticar quase indefinidamente sem o
terminar e que eu vinha de tirar de mim - mesmo, indo tudo ao avesso de minha
vida natural, que eu reapresentava (imaginava) para mim desde então e para algum tempo o diabo.”( Du cote de chez
Swann – Esquisse III, pag. 646/647, volume I, Bibliothèque de la Pléiade).
Este texto, que constou da obra Contre Saint-Beuve, como
Sommeils, e não do livro Du Coté de
chez Swann, é revelador da importância do seu pequeno mundo de Combray.
Consta de suas anotações. Além desse, Marcel deixou muitos outros trechos em
cadernos com diversas citações e muitas correções que ele fazia e refazia até
encontrar a fórmula perfeita. Os seus editores é que sofriam com as constantes
revisões ao modificar, acrescentar ou suprimir os trechos literários antes da
publicação.
Daremos
ênfase, portanto, ao que constou de seu livro “Du cote de chez Swann” a
respeito do “cabinet”, em suas férias em Illiers, e o que realmente foi
publicado.
Em alguns dias, para fugir das
discussões de seus avós sobre bebida, motivada por sua tia-avó, que dava ao seu
avô algumas gotas para beber e, ao mesmo tempo, gritava para sua avó o que ele
bebia, causando-lhe sofrimentos, o narrador ia soluçar lá no alto da casa, “ao
lado da sala de estudos, sob os telhados, numa pequena peça que cheirava a íris
(dans une petite pièce sentant l’iris),
também perfumada por um cassis selvagem que crescera fora entre as pedras da
muralha e passava ramo florido pela janela entreaberta. Destinada a um uso mais
especial e mais vulgar, aquela peça, de onde se tinha vista, de dia, até o
torreão de Roussainville-de-Pin, me serviu muito tempo de refúgio, sem dúvida
por ser a única que me era permitido fechar a chave para todas as minhas
ocupações que demandavam uma inviolável solidão: a leitura, o devaneio, as lágrimas
e a volúpia.” Nesse diminuto ambiente em que
se refugiava, como a desafiar o universo, às portas fechadas, na criação do seu pequeno mundo imaginário,
levado pela vibrante imaginação que já se
deixava impulsionar pela sensação, o que no futuro seria o Dejá vu de suas
rememorações, Marcel viu brotar as primeiras experiências de sua vida. Na
certa, leu, avidamente, François Le Champi, um prazer divino, leitura de
férias, interrompida, às vezes, por um obstáculo vulgar como quando um amigo
vinha visitá-lo ou um sol impertinente lhe forçava levantar os olhos da página
ou a mudar de lugar. É possível que
tenha lido, também, “Vingt Mille lieues sous les mers”, de Jules Verne, pois para
demonstrar a curiosidade de Aimé, o
maître do hotel de Balbec, Proust afirma ter ele o ar, ao mesmo tempo, atento e agitado de uma criança que leu um
romance de Jules Verne. O que levou Michel Butor a concluir que Marcel Proust
tenha sido essa criança que leu o romance de Jules Verne. Em sua obra, Marcel
Proust dá mais outra pista ao escrever sobre o assunto: “A idéia que se poderia
voluntariamente renunciar a cem jantares ou almoços na cidade, ao duplo de
chás, ao triplo de acontecimentos
noturnos, às mais brilhantes segundas-feiras da Ópera e terças-feiras do
Francês para visitar os Fjords da Noruega não pareceu aos Courvoisier mais explicável que “Vingt
Mille lieues sous lês mers””. Seria ou teria achado o romance tão
extraordinário, assim ?
Em sua enumeração da pequena peça, após
a leitura, vem os devaneios a que se
permitia e que davam certo sabor aos
seus dias de férias em Combray, nas alegrias da solidão e do silêncio que ele
procurava esconder, quando seu olhar alcançava pela janela Roussainville, em
cujos muros jamais penetrou, embora fosse uma aldeia que havia tanto tempo
desejava conhecer, sentir as árvores do seu bosque, admirar as torres de sua
igreja antecipando os passeios do lado de Méséglise, de Tansonville e de
Mountjouvain.
Pela janela de seu pequeno gabinete,
sempre aberta, Marcel contemplava a natureza esculpida por folhagens que, ao
lado das que cresciam normalmente, formavam um conjunto que parecia, na
verdade, uma obra de arte. E, então,
surgia diante dele, ao longe, uma vista
de Roussainville, como um “petit pan de couleur”, deixando-o imerso em seus devaneios:
“...terra prometida ou maldita, Roussainville, em cujos muros jamais penetrei,
Roussainville que, quando a chuva já se acabara
para nós, continuava a receber castigo como uma aldeia da Bíblia por
todos os transbordamentos da tempestade que flagelavam obliquamente as
casas de seus moradores...” Diante de um
horizonte desértico à sua frente, Marcel continuava seu devaneio: “ Mas era em
vão, debalde, que eu implorava o torreão
de Roussainville, que lhe suplicava me mandasse alguma menina da sua aldeia,
como ao único confidente que eu podia
conseguir dos meus primeiros desejos, quando, nos altos de nossa casa em
Combray, no pequeno gabinete cheirando a íris, só avistava a sua torre no
quadrado da janela, enquanto, com as heróicas hesitações do viajante que se
embrenha numa exploração ou do desesperado que se suicida, eu fazia surgir
desfalecente em mim mesmo um caminho
desconhecido e que julgava mortal até o momento em que sentia o rastro natural
de um caracol que vinha juntar-se às
folhas da groselheira silvestre inclinadas até a mim. Em vão eu lhe suplicava
agora. Totalmente em vão, compreendendo
toda aquela extensão no meu campo visual, drenando-a com os meus olhares
que gostariam de trazer dali uma mulher.” (...) “o horizonte continuava
deserto, enquanto a noite caía sem dar esperança ao meu desejo, naquele solo estéril de terra
esgotada; e não era mais de alegria, era
de raiva que eu batia às árvores do bosque de
Roussainville, de onde não saía nem um ente vivo, como se as árvores
fossem uma pintura, não árvores
verdadeiras, sobre a tela de um panorama.”
Era nesse pequeno ambiente que Marcel dava vazão
às suas lágrimas quando dissabores o
acometiam. Mais tarde ficou sabendo que sua avó vivia se martirizando por causa
da sua falta de vontade, sua saúde precária que projetavam muita incerteza
sobre seu futuro. (Nessa época o único consolo de Marcel era esperar toda noite
que sua mãe fosse beijá-lo, quando já estivesse na cama, preparando-se para
dormir. Apesar de durar tão pouco, pois sua mãe descia rapidamente após o beijo
noturno, ele a aguardava. Era uma verdadeira tortura diária e quanto mais cedo
ela vinha, mas depressa ia embora. Desejava, então, que ela viesse o mais tarde possível, para
que se prolongasse o tempo de espera em que ela ainda não subira. Nas noites em
que havia um convidado para jantar, Sr. Swann, a situação se complicava, pois
sua mãe podia nem subir para lhe dar boa-noite, o que o deixava desesperado e
infeliz.)
A última finalidade do seu esconderijo,
seu pequeno mundo, era poder,
seguramente, entregar-se à volúpia, no descobrimento de seus desejos íntimos e
secretos ao despertar sua sexualidade. Este pequeno mundo de
leituras, devaneios, lágrimas e volúpias, inicialmente, lhe abriu as portas
para a criação de sua Recherche, incutindo-lhe prazerosamente os fundamentos
necessários a fim de incrementar e solidificar os alicerces fecundos de uma
obra de arte extraordinária, reflexo de uma vida verdadeiramente vivida no
mergulho insondável do interior do ser na busca das verdades eternas através da
memória afetiva ou involuntária.
Para Giles Deleuze, a Recherche não foi
construída como uma catedral, nem como um vestido – metáforas utilizadas pelo
escritor -- mas como uma teia. O
narrador da Recherche é uma aranha. Acontece que a aranha nada vê, nada percebe, de nada se
lembra e somente em uma das extremidades de sua teia “ela registra a mais leve
vibração que se propaga até seu corpo em
ondas de grande intensidade e que a faz, de um salto, atingir o lugar
exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde unicamente aos signos e é atingida pelo menor
signo que atravessa seu corpo como uma onda e a faz pular sobre a presa.” (...)
“O narrador-aranha, cuja teia é a Recherche que se faz, que se tece com cada
fio movimentado por este ou aquele signo:
a teia e a aranha, a teia e o corpo são uma mesma máquina. O narrador
pode ser dotado de uma extrema sensibiliddade, de uma prodigiosa memória: ele
não possui órgãos no sentido em que é privado
de todo uso voluntário e organizado de suas faculdades. Em
contrapartida, uma faculdade se exerce nele quando é coagida e forçada a
fazê-lo; e o órgão correspondente vem situar-se nele, mas como um esboço “intensivo” despertado pelas
ondas que lhe provocam o uso involuntário. Sensibilidade
involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são como que
reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos de diversas naturezas. Esse
corpo-teia-de-aranha se agita para entreabrir ou fechar cada uma das pequenas
caixas que vêm deparar-se com um fio
viscoso da Recherche. Esse corpo-aranha
do narrador, o espião, o policial, o ciumento, o intérprete e o
reivindicador – o louco – o esquizofrênico universal vai estender um fio até Charlus, o paranóico,
um outro até Albertina, a erotômana, para fazê-los marionetes de seu próprio
delírio, potências intensivas de seu corpo sem órgãos, perfis de sua própria
loucura.”
Pode-se, finalmente, aquilatar o que este pequeno quarto, cabinet,
pequena peça, representou para Marcel Proust; foi verdadeiramente seu pequeno
mundo com as riquezas das suas descobertas, seus tesouros mentais, verdadeiros símbolos que povoavam febrilmente
sua imaginação.
Ao dizer “ Et que je venais de tirer de
moi-même”, ‘le fil de la vierge”( que significa o fio que a aranha, na
dispersão outonal, vai deixando sobre as árvores dos campos e sobre as flores
dos jardins, tecendo muitas vezes um grande emaranhado para aprisionar
insetos), “le fil d’argent sans le faire finir” ele nos faz lembrar o mito
d’Arachnée, das Metamorfoses de Ovídio, em que Arachné e todos os descendentes
terão de tirar de si mesmo o fio para tecer suas teias. Isto é, todo escritor,
poeta terá de tirar de si mesmo o fio da sua criação. ( Novamente a aranha, na
primeira, com Deleuze, é a semelhança de agir como uma aranha, enquanto a do mito refere-se a uma
metamorfose, o escritor tem de tirar tudo o que imaginar de si mesmo como a
aranha, ou nunca será um verdadeiro
escritor.)
Le fil de la
vierge que Marcel tire de lui-même après avoir vécu une métamorphose comme
celles que l’on trouve représentées sur la toile d’Arachné, c’est le fil dont
Arachné tisse sa toile, c’est l’encre métaphorique qui va laisser sur les
feuilles les traces formant le texte parfait dans lequel même l’arbitre le plus
partial ne va trouver aucune faute. Le fil que Marcel vient de trouver
« en allant tout au rebours de [s]a vie naturelle », c’est-à-dire du
présent au passé vers lequel le mène sa quête, ce fil se laisse tendre
« presque indéfiniment », il devient aussi long que le long roman que
Marcel va écrire. Marcel ne sait pas encore à quel jeu dangereux il se laisse
entraîner, mais il sent déjà que son œuvre insolente sera punie par un jugement
divin. Voilà pourquoi son fil lui semble « le fruit défendu sur l’arbre du
mal » ou même l’ultime provocation de Dieu – « le diable ». Edi Zollinger
Université de Munich
eEEntendemos que a
expressão “Le fil de la vierge” em Marcel Proust ganhou um sentido metafórico,
simbólico, servindo-se da Metamorfose de Ovídio, pela qual a tecelã Arachné, por desafiar a deusa Palas,
é transformada numa aranha, sendo obrigada a tirar tudo de si mesma. O que o
menino vê na folha do lilás – imagens de emoção –o traço prateado e longo, sem fim visível, o que representará? Mais tarde, a lembrança desse
fio entrará na própria composição da
Recherche, numa sistemática de contagem regressiva, do presente ao passado e do
passado ao presente em busca de um caminho intransponível. Por que Marcel se assusta com a descoberta do
traço, considerado fio revelador de fruto proibido sobre a árvore do mal que o
fez conhecer o prazer, contemplando, pela janela aberta, as duas colinas distantes que se assemelhavam
a dois seios (seins-collines)? E este
prazer era desconhecido, original, não
sendo substituído por nenhum outro, somente permitido no “cabinet sentant
l’iris”. A figura do diabo aparecia,
então, para ele sob a forma desse fio de prata que pendia do ramo da
árvore, aliado a um sentimento profundo de culpabilidade, que ele não conseguia
vencer, causando-lhe uma prostração e
uma angustia que o perseguia como o fantasma da morte.
Também ele ousa desafiar o todo poderoso
Saint-Beuve, pois toda sua obra é um verdadeiro desafio aos conceitos e ordenamentos
pré-estabelecidos da visão literária, sustentáculos da crítica literária de
Saint-Beuve, uma verdadeira deusa Pallas.
Captamos
no fim do mito a revelação de que
’Arachné está condenada a tirar de seu
próprio ventre o fio com o qual tece
suas telas voluptuosas, com sua cabeça, braços e pernas atrofiados, ínfimos. Em seu pequeno mundo, o escritor Marcel Proust, como a aranha do mito , impregnado de anseios
juvenis, deu início a sua vida
literária, que, mais tarde, seria enriquecida pela À la Recherche Du Temps
Perdu, quando tirando tudo dentro de si mesmo, do seu inconsciente,num mergulho
profundo nas imensidões do pensamento e impulsionado pela memória, legaria à
humanidade uma das mais extraordinárias obras literárias.
v
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