Elsa Caravana Guelman
Depois de um
longo passeio pela cidade, visitando um antiquário, quando apreciei um belo
quadro de Cézanne, invadindo a orla oceânica, onde me debrucei na amurada da
praia para seguir o retorno das ondas do mar que se despejavam na areia, uma
visita a uma loja de flores naturais, um descanso merecido num pequeno café em
que passei algumas horas, bebendo e beliscando alguns petiscos, cortando ruelas
bem estreitas onde crianças brincavam e quase impediam a minha passagem,
resolvi que era hora de voltar ao apartamento de meus primos, Raquel e Lucas,
certa de que já teriam retornado do escritório de arquitetura, onde passavam a
maior parte do seu tempo, envolvidos com projetos que lhes aguçavam a
criatividade.
Era meu último
dia de uma semana inesquecível, em que aproveitei verdadeiramente todo o meu
tempo com passeios, visitas e grandes descobertas que me fizeram refletir sobre
a beleza oculta das coisas que vamos, de pouquinho em pouquinho, encontrando. E
isso se torna mais importante quando estamos preparados emocionalmente,
impregnados por um misto de sensação e surpresa para receber e perceber
esse sentido das coisas com as quais nos
deparamos, de repente. É como se buscássemos no interior delas o cerne, a
essência do que é e vem a ser, no
impacto da visão.
A visita aos
primos não foi de surpresa, de uma hora para outra, não, foi muito bem
planejada. Achei que estava na hora de lhes fazer uma visita já que recebera,
tantas vezes, seu convite. Quando surgiram minhas férias, reservei uma semana
para eles, que me receberam, pude verificar, com a maior alegria, cumulando-me
com atenções infinitas. Também procurei,
de minha parte, demonstrar-lhes toda
minha satisfação em vê-los.
Logo que
cheguei no edifício, o elevador parecia esperar-me e me conduziu ao sexto andar. Carregava algumas lembranças que conseguira
comprar no antiquário, que, bem
embaladas para viagem, não me dariam trabalho, pois bastaria colocá-las na mala
e pronto. Ia tirar da bolsa a chave que deixaram comigo, quando percebi que a
porta estava meio aberta. E foi aí que me lembrei do comentário de Raquel sobre
não haver nenhum perigo em deixar a porta aberta. Já faziam isso há anos. Era
um fato natural. A portaria do edifício funcionava vinte e quatro horas, sempre
com um porteiro à disposição dos moradores. Ninguém entrava sem identificação. Na
certa me esperavam apesar de ter em meu poder uma cópia da chave do
apartamento. Entrei pensando encontrá-los na sala. Chamei-os e não responderam
e, então, me adiantei e fui acendendo,
uma por uma, as luzes do corredor, da saleta e da sala. Não havia ninguém em casa,
um silêncio total. Liguei a televisão e me sentei no sofá. Passado algum tempo,
fui ao meu quarto levar as compras e já iniciar a feitura da mala para, no dia
seguinte, bem cedo viajar.
Não sei o
tempo que levei na arrumação da mala,
ajeitando os presentes, misturando-os com
as roupas para melhor protegê-los, que nem estranhei que meus primos não
tivessem chegado ainda. Até bem pouco, ouvia o ruído da televisão, mas, aos
poucos, o som desapareceu. Resolvi, então, verificar o que acontecera e notei que
o corredor, a saleta e a sala de entrada estavam às escuras e a televisão
completamente desligada. Quem os teria desligado? E por que estavam
desligados? Não consegui ver nada.
Chamei por Raquel e Lucas e não obtive resposta. Assustada, corri imediatamente
para o meu quarto e tranquei a porta. Tive, então, a idéia de telefonar para a
portaria e pedir socorro, mas me lembrei que deixara o celular junto à
televisão. Nada feito. Não adiantava gritar. Eu estava certa de que, na sala,
havia alguém que, não só desligara a televisão, como as três luzes. Não fora
uma pane de energia, pois havia luz no meu quarto e no meu banheiro. Apesar de
não ouvir nenhum barulho, eu imaginava uma pessoa escondida na sala e isso me
dava a noção de um grande perigo, pois não tinha como me comunicar com ninguém.
Onde estariam os primos? À medida que o
tempo passava, mais eu me apavorava diante daquela situação. O que fazer?
Resolvi, já que estava muito assustada, trancar-me no banheiro. Foi o que fiz,
sem pensar mais. Para proteger-me, apaguei a luz e me encostei na parede porque
não tinha onde sentar. E fui ficando,
sem posição nenhuma, em pé, encostada na parede até bem tarde da noite, quando
o sono, fortemente, me derrubou e sentei-me no chão, e, ainda encostada na parede, tentava não
adormecer. Foi a pior noite da minha vida, o maior incômodo que passei naquele
desconforto gélido do banheiro. Durante a noite, visões sinistras me apareciam
na escuridão, dançavam ao meu redor .
Minha
imaginação, dominada pelo medo, fazia-me ver coisas diversas, sem formas
definidas, desestruturadas. E eu imaginava
que, na janelinha alta do banheiro, que dava para o pátio do edifício, surgiriam mãos gigantescas querendo me pegar para o festim da sala. O teto, na
escuridão, parecia estufar-se, engrandecer, e logo depois minguava, enquanto
uma fresta de luz do andar de cima, como um verdadeiro disfarce de uma figura
longa e fina, languidamente, descia pela janelinha e se perdia no banheiro, desfazendo o misterioso disfarce, compondo-se
com a escuridão. De repente, algo bateu
em mim. Sufoquei um grito. É que, sem querer, esbarrei na cesta de vime de
roupa, acho eu. Quem sabe, eu pensava,
meus primos estão mortos lá na sala, ou estão amordaçados e sofrem nas mãos de
malfeitores, pois já havia passado tanto tempo, já era noite alta e eles não
apareciam, nem vinham me procurar, o que era um péssimo sinal, uma grande
indiferença. Não podia admitir que estivessem no apartamento e pudessem agir
livremente.
Ouvi passos,
poucos passos mais ou menos distantes. Se fossem meus primos, bateriam na porta
à minha procura, tentariam me achar de qualquer jeito. Não me deixariam nesse terrível isolamento.
Que vai ser de mim? No momento em que entrei, não fechei a porta, imaginando que estavam por
vir, quando não os encontrei na sala, ao chegar. Eram tão moços, não mereciam
desaparecer desse jeito, trucidados por alguém que conseguiu vencer toda a
segurança do prédio e enganar o porteiro. Seria um inimigo, um conhecido ou
simplesmente um ladrão qualquer?
Raquel
casou-se muito cedo e toda a família comentava que eram muito felizes. Vi-me ao
lado da minha prima criança. Tínhamos saído bem cedo de casa para não pegar
sol. A lembrança daquela frescura matinal aumentou a minha angústia e eu nem
podia respirar para não produzir nenhum ruído que viesse a chamar a atenção. De
onde eu me encontrava não dava para saber se estavam ouvindo televisão.
Um dia, para
caçoar de mim, Raquel subiu muito alto na árvore e não sabia descer. Precisaram
encontrar alguém que subisse para
trazê-la ao chão. Como demorasse o socorro, ela começou a chorar. Foi também
sua primeira e ultima tentativa de subir em árvores. Nunca mais repetiu a
façanha. As árvores, ela dizia, exerciam um fascínio sobre ela, por isso queria
ir no mais alto, no seu cume, para ser,
também, uma árvore.
Com esses
pensamentos fervilhantes em minha mente,
eu tentava impedir que o sono caísse sobre mim, impedindo que eu pudesse
me defender se algo acontecesse. Procurava esticar, aumentar a noite, como quem empurra um obstáculo. Mas, sem que eu me
desse conta, lentamente, a noite se
tornou robusta, forte e imperiosa, e me abraçou como um polvo, com seus
tentáculos, e eu adormeci.
Quando
acordei, toda esmagada, com a roupa amassada e retorcida, um verdadeiro trapo,
ouvi vozes. Levantei-me rapidamente e, ainda temerosa, abri a porta do banheiro
e, já no meu quarto, tornei a ouvir vozes mais fortes. Fiquei tranquila, pois
eram vozes conhecidas, eram as vozes de meus primos, Raquel e Lucas. E, num
ímpeto intencional, como uma rajada, abri a porta do meu quarto e me deparei
com eles, sorridentes e tranquilos, que me interpelaram carinhosamente:
- Como você
dormiu, hein? Chegamos um pouco tarde e, como vimos sua porta fechada,
imaginamos que estivesse dormindo. Não a incomodamos.
- Não
aconteceu nada aqui? A porta aberta...
- Ah, sim,
aconteceu um pequeno problema com o disjuntor da caixa de luz que controla a
luz da sala, do corredor e da saleta da televisão. Quando nós chegamos estava
tudo às escuras. Notamos que havia luz no seu quarto. Providenciamos logo o
reparo. Com a peça nova, agora está funcionando muito bem. Mas isso, espero,
não lhe causou problema, não? Você já devia estar dormindo quando ocorreu o
apagão.
Eu não sabia o
que dizer, ainda assustada com os acontecimentos da noite, quando até cheguei a
imaginá-los mortos ou prisioneiros de ladrões. A minha palidez pelo desconforto
e a noite mal dormida chamou-lhes a atenção.
- Que
aconteceu com você, está tão pálida. Não dormiu bem, na certa. Venha tomar um
bom café. Que pena que você vai nos deixar hoje, como eu lamento, prima, sua
partida.
Realmente, um
bom café me faria muito bem, era disso que eu estava precisando para tentar
refazer as minhas forças, sentindo ainda
meu corpo dolorido. E foi o que fiz, tomei um café e tanto, com
biscoitos amanteigados. Que manhã
deliciosa eu começava a experimentar, já agora livre do susto por que passara e
tudo por causa de uma visão errada das coisas, da minha confusão e do meu temor
diante de nada, pois nada aconteceu, tudo foi um terrível engano de minha parte.
Se eu lhes contasse o que vivera, imaginando uma invasão, tentando vencer uma
noite de horror, presa num banheiro frio,
quando lá fora não acontecia nada, na certa ficariam preocupados com a
minha mente fantasiosa. Fiquei em silêncio e não lhes contei nada, aceitando que tudo não passara de uma situação imaginada
por mim, sem fundamento.
Eu me
perguntava, então, como é que pude imaginar, com tantos detalhes, uma invasão
noturna, em que tive de me refugiar para não ser atacada. Minha mente criou uma
ambiência de terror. Na verdade, o inimigo que eu temia estava dentro de mim,
era eu mesma, era minha mente, minhas sensações que me arrastavam para um
perigo inexistente. Eu tentava, em vão, desvencilhar-me de mim mesma, foi uma
experiência terrível. Ainda bem que ninguém ficou sabendo de nada. Nenhum
vestígio, nada para comprometer-me. Assim, Raquel e Lucas poderão sentir
saudades de mim, desejar que eu retorne outras vezes, sem lhes causar
desassossego e preocupação.
Em minha casa,
finalmente! Comecei a dar um jeito nas coisas que deixara por ocasião da
viagem. Eu me sentia ainda mal pelo que
me acontecera, teria de tomar cuidado com as fantasias mentais.
Meus primos viviam tão tranquilos naquele apartamento e eu, com as
minhas idéias, ameacei mostrar-lhes um ambiente que lhes roubaria a paz. Sim,
como é que uma pessoa, de repente, se sente ameaçada porque a luz apagou? Por
que não pensei, a luz apagou porque deve ter
acontecido alguma coisa com ela. Simples. Meu raciocínio preferiu enveredar pelo sinistro diante da
escuridão e gerou toda aquela confusão,
que ainda me aborrece muito. Preciso
reencontrar minha tranquilidade perdida.
Ainda não
fazia um mês do meu retorno quando recebi uma carta de Raquel. Na carta, ela me
contava que viveram, ela e Lucas, uma
situação terrível e angustiosa numa noite em que, tendo deixado a porta entreaberta,
chegaram tarde. As luzes, de repente, se
apagaram e eles se sentiram amordaçados e jogados ao chão por dois indivíduos
encapuzados. Foram obrigados a revelar o segredo do cofre, de onde levaram
jóias, dinheiro e documentos. Descobriram ainda peças artísticas e quadros.
Eles só não sofreram mais porque não ofereceram resistência. Quem os assaltou
conhecia o problema da luz e da porta aberta. Infelizmente, não conseguiram
identificar os assaltantes, que se foram bem tarde da noite, na hora em que os
porteiros são substituídos e há, sempre,
uma confusão de entrada e saída. Permaneceram amarrados e amordaçados até o dia
seguinte, quando a empregada Odete chegou para o serviço do dia e os encontrou.
Desgostosos, mudaram de local e, hoje, não deixam mais a porta aberta, mas
muito bem fechada. Acabou-se o mundo mágico por causa da crueldade dos homens.
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