UM PASSEIO PELA BIBLIOTECA
Conto de Elsa Caravana Guelman
Chovia torrencialmente quando
cheguei à casa de meu tio Eduardo (decidi aquela visita logo que acordei, para
não ficar protelando, vai hoje, vai amanhã), depois de vencer as mais terríveis
dificuldades no trânsito, verdadeiramente caótico, engarrafado e até com batidas decorrentes da chuva. Juntava esses
contratempos ao meu dia preocupante e
agitado. Atendi, pouco antes de sair de casa, um telefonema de Onofre, ele
cuida de um pequeno sítio nosso e foi logo traduzindo o seu amargor pela vida,
comunicando que em breve deixaria o emprego, justificando que agiria dessa
maneira porque pedira o divórcio à esposa, considerando seu casamento desfeito,
por isso iria embora. ”Vou em busca da minha felicidade”. Que desagradável,
como vou dar essa notícia a meus pais? Mas só quando voltar da casa de meu tio
é que falarei com eles. Foi aí que a
chuva começou, de fininho, e em pouco tempo engrossou, até se transformar,
quase, em tempestade. Nem sei como cheguei, mas fiquei totalmente encharcada de
tanta água. Nem meu tio e nem minha tia estavam em casa. Viajaram - ao que então fiquei sabendo - de repente, numa viagem de negócios. A culpa fora minha, deveria ter avisado de que
iria visitá-los, mas não me dei conta disso porque eles nunca saíam, era uma
dificuldade fazê-los arredar de casa. Ele sempre dizia que os degraus da entrada, que antecediam ao capacho, o punham lá dentro e não o deixavam mais sair.
Minha tia, também, ficava ouvindo música, lendo um livro ou, na maioria das
vezes, exercitando sua pintura. Esse casal maravilhoso, pois, não estava em
casa e nem voltaria logo, só depois de alguns dias. O que eu faria, então? Um
trajeto de volta, com aquela chuva, seria quase impossível. Já que trouxera uma
pequena valise, eu deveria ficar, foi o que me disse Fernanda, a dedicada senhora que os acompanhava há anos
e cuidava da casa com a ajuda de duas auxiliares e um jardineiro. A razão da
minha visita partira de um convite deles, era para conhecer a biblioteca, que
fora totalmente reformada para receber muitos volumes, grandes obras de uma
vasta coleção que o tio adquirira num leilão. Queria que eu identificasse e
relacionasse todas as obras cronologicamente, o que me faria gastar muito tempo
(será que vou conseguir, que me empenharei nisso, de verdade?). Ele pensava em fazer um estudo da civilização
nas diversas épocas históricas. Era uma tarefa apaixonante, eu sei. Concordei,
então, em vir primeiro e tomar conhecimento do que existia para sentir como
deveria proceder depois, estabelecendo um plano de estudo e pesquisa. Nem sei
se conseguiria dar conta de uma empreitada tão gratificante (eu sempre quis, é
verdade), mas tão extensa. Havia em mim,
não posso negar, uma vontade de conhecer e penetrar nessa biblioteca, pois, se
a antiga já era elogiada pelos amigos, imagine, agora, remodelada para receber tantas
obras primas!
Resolvi ficar, mas não o tempo que
ficaria se eles estivessem em casa. Ocupei
o quarto de hóspedes, que ficava no andar superior, e minha primeira
providência foi tomar um banho e mudar minhas roupas encharcadas pela
chuva. Percebi que a chuva não parou, pelo
contrário, aumentou ainda mais, assustadoramente, o que obrigou Fernanda a acender algumas velas, temendo que a luz viesse
a faltar em algum momento próximo. Parecia que estávamos num dilúvio, era uma
chuva grossa que caía em catadupas, sem parar, fazendo com que nada se enxergasse
através das janelas. A casa ficava no centro de um terreno arborizado e
florido. As folhas do arvoredo, fustigadas pelo vendaval que uivava, se elevavam como se bailassem numa composição
soturna e lúgubre. Sucediam-se os raios
e, logo após, os trovões. A gente sempre se assusta com os trovões, ainda
sabendo que o perigo, que vem com os relâmpagos,
quando eles estrondam já passou...
O jantar foi servido normalmente
no salão, embora eu protestasse não ser necessária nenhuma cerimônia comigo.
Não houve jeito, Fernanda e as outras duas empregadas nem me ouviram e tudo
fizeram para me agradar. Não sei se sabiam o porquê de eu ter vindo. Procederam
da mesma forma que procederiam se os patrões estivessem em casa e recebessem
uma visita. O que jantei? Um filé à francesa, e isso porque, com a viagem dos
patrões, não imaginavam que fossem receber alguém. Terminado o jantar, depois
da sobremesa, licores e café (acho que abusei um pouco de um licor exótico,
impregnado de uma fruta africana, com
amêndoas e damascos, estava delicioso, tinha a figura de um elefante no rótulo),
sentei-me na varanda envidraçada e acompanhei o espetáculo que o temporal oferecia
naquela noite que mal começava.
Fernanda me entregou um castiçal
com vela e uma caixa de fósforos, para usar no caso de faltar luz, e se
retirou, dizendo que eu ficasse à vontade, fizesse o que bem entendesse e, se
precisasse de alguma coisa, poderia chamá-la no quarto no fim do corredor. Como
determinadas pessoas são tão bem servidas, quase protegidas, o que lhes permite
desenvolver suas atividades sem sobressaltos, arranhões ou maiores dificuldades,
porque nada as perturba nesse mar de tranquilidade em que vivem! Assim viviam meus tios e, por isso mesmo, ele
encontrava tempo e ânimo para desenvolver tranquilamente seus temas e projetos
culturais, como esse do desenrolar das civilizações no decorrer dos séculos e
milênios.
Aproveitando a luz que ainda
existia, apesar de a chuva não ter diminuído em nada o seu volume, entrei na
biblioteca. Aquele silêncio seria muito bem vindo, agora, para identificar a
posição dos livros nas estantes. De um antigo salão de festas, meu tio fez
nascer essa biblioteca, que era, sem dúvida, mais um eloquente motivo para
retê-lo em casa. As prateleiras iam até o teto, alcançando um segundo andar,
com escadas e corredores por onde se podia andar para retirar os livros
colocados nas posições mais altas. Quanto
custa o amor à arte? Acho que não existe nada que possa se traduzir em preço
para a arte.
Depois de andar um pouco,
sentei-me numa poltrona muito fofa e confortável, convidativa a um descanso
longo. Meus olhos erraram e, de repente, numa prateleira de literatura
infantil, vislumbrei o livro de Charles Perrault, numa encadernação primorosa,
de primeira linha. Meu olhar não deixava nem a prateleira e nem o livro, ambos
me prendiam. Lembrei-me da história do
Gato de Botas, tão inteligente e esperto. E tudo aconteceu num abrir e fechar
de olhos, nem sei como explicar. Foi tudo
muito rápido, numa fração de segundo ele saiu do livro, saltou diante de mim, o
pequeno Gato de Botas, e foi aumentando de tamanho, vestido com sua roupa de cordões
encarnados, com bordados a ouro e preciosos diamantes. Pediu-me que fizesse silêncio para não
assustar seu senhor, o Marquês de Carabás, e a princesa, sua esposa. Pegou-me pela mão, dizendo que me
levaria ao reino do saber, que eu tivesse confiança nele pois tudo ia dar
certo, assim como fizera com seu senhor, que tinha sido muito pobre e fora
transformado em um verdadeiro marquês por ele, o Gato de Botas. Ele me levaria, agora, à mais fantástica das
aventuras.
O gato se fizera, num instante, ereto e me puxou pela mão. Juntos, penetramos num longo corredor em que
eu não conseguia enxergar nada e, no final, uma luz brilhante apareceu. Em
torno dela, uma claridade tão ofuscante, tão forte, que me impedia de manter os olhos abertos. O gato continuava a pedir que fizesse
silêncio e esperar, mas logo a seguir saímos dessa claridade e, antes de entrar
em outro corredor, ele me perguntou se eu gostaria de ver as coisas numa
sequência cronológica ou preferia encontrá-las ao sabor do acaso. Em ordem
cronológica daria muito trabalho, explicou, pois teríamos de ir às mais remotas
origens; ao acaso, veríamos o que
fôssemos encontrando pelas bifurcações dos caminhos.
O gato não parava de falar, queria que eu entendesse
que fora o acaso que tornara possível o nosso conhecimento e encontro na
biblioteca. Meus olhos procuravam um livro qualquer e o que encontraram? Na
prateleira da literatura infantil lá
estava ele, precisando ser achado, descoberto e ser, assim, salvo. Tinha de
confessar que não voltaria mais para o livro, nunca mais. Desse modo, como
estava me prestando esse favor, conduzindo-me aos grandes personagens das
obras, quando terminasse essa ajuda procuraria viver uma nova vida. Não mais
queria ficar encarcerado nas páginas de um livro, esperando que, para dele
sair, alguém o buscasse ou o encontrasse por acaso, como sucedera comigo.
Enquanto assim caminhava, pude
ver coisas incríveis nesse mundo dos livros, sucedendo-se como nas imagens de
um caleidoscópio. Então, o Gato de Botas
gritou, assustando-me. Abrira uma porta e eu penetrei numa estranha dimensão em
que tudo se passava simultaneamente. Fiquei tonta ao ver que passado e presente
se fundiam numa mistura eclética e, ao mesmo tempo, rompiam todos os liames, fixando-se
em espaços diferentes .
(Minha primeira aparição foi uma
mulher de beleza cândida, muito suave. Era Beatriz, que andava silenciosamente
no Paraíso, enquanto o poeta Virgílio guiava Dante no Inferno. Captei o
sofrimento de Dante, consolado por Virgílio, seu mestre. Beatriz se aproxima,
ela quer guiar Dante no Paraíso, mas ele está cheio de dúvidas. Na vida real,
Beatriz era totalmente indiferente a Virgílio,
que a amava platonicamente. Surgiam, como num teatro, quando sobe a
cortina, cenários de pureza, simbolizando o Paraíso, cenários de dúvidas, o Purgatório, e os de imenso sofrimento, característicos do
Inferno. Nessa travessia de Dante, outras sequências apareciam em planos
diferentes, de um lado Sócrates e Homero, do outro Alexandre, o Grande, e Átila,
rei dos Hunos.)
O gato me puxou, logo em seguida,
e dei adeus à Divina Comédia. Que terrível e apressado aquele gato, que não me
deixava raciocinar e nem me despedir daqueles personagens que nunca mais veria! Mostrou-me um homem em pé, olhando fixamente o
mar.
(Eis-me
diante de Gilliatt, marinheiro, trabalhador do mar, que, conhecendo o fundo do oceano como ninguém, sabendo como penetrar e
triunfar diante dos perigos das águas
profundas, salvou a peça principal do
navio a vapor. Amava o mar da Normandia
e se sentia feliz ao domar aquelas águas profundas e perigosas. Quando conheceu seu amor, Déruchette, e esse amor não foi correspondido, sentiu-se
destruído sem nenhuma esperança. Victor
Hugo estaria presente, como Dante? Não, Dante também era personagem. Encontrei
Gilliatt imerso em profunda tristeza Continuava muito triste, possuído do mesmo
sentimento que sentiu no dia em que viu o navio zarpar com a mulher que
amava, a mesma angústia que o fez penetrar nas águas, entregando-se, a buscar o fundo dos oceanos como seu eterno
leito de morte, para esquecer sua mágoa.)
Sem que o gato tivesse me
impedido, dei uma reviravolta e subi pela escada, num verdadeiro caracol, e
fiquei surpresa ao encontrar tão bela e tão querida personagem. Foi um achado
meu.
(A mulher continuava muito
bonita e enigmática, também. Era Capitu,
a ”cigana de olhar oblíquo e dissimulada”, como foi definida pelo agregado no
romance de Machado de Assis. Estava
muito discreta, mas seu olhar varava distâncias. Educadamente, não trocou
palavra, olhou, sorriu e saiu de nossa vista. Nem pude lhe perguntar sobre
Bentinho. Ou sobre Escobar? Morreria no exílio imposto por Bentinho, que a
condenara apesar de nunca a ter esquecido, a primeira e única amada de sua vida. Capitu
estava só, sem Bentinho e o filho Ezequiel, que morrera de febre tifoide e não
de lepra, como seu pai havia desejado.)
Surgiu-me então alguém que me
deixou sem poder balbuciar sequer uma palavra, muda. Como Joyce teria recriado o Ulisses homérico ?
(Leopold Bloom tinha diante de si a Odisséia, descansava
da leitura, ao lado de seu amigo Stephen
Dedalus. Um dia cheio tiveram pela frente, naquele 16 de junho de
1904. Conseguiriam vivenciar toda uma
vida num só dia, vencendo semelhante maratona de dificuldades? Onde estaria
Molly, ainda na rua Eccles, esperando pelo marido para o jantar? Simultaneamente,
eles ressurgem: Bloom como Ulisses, Molly como Penélope e Dedalus como
Telêmaco, o filho. Novo contexto ou paródia? Bloom é desajeitado e busca
desesperadamente o filho Dedalus e Molly não é a fiel Penélope.)
Eu
queria ver mais, de mais perto, poder, também, fundir-me com todos esses
personagens, mas algo incrível se passava. Apesar de vê-los, de senti-los,
havia uma camada tênue, quase invisível, que nos separava. Jamais poderia
tocá-los ou dirigir-lhes a palavra. Não pairava no ar nenhum som. Saídos dos livros, semelhavam dever a eles
retornar dentro de uma fagulha ínfima de tempo.
(Raskolnikov ainda se sentia preso
ao crime que cometera e o castigo, que deveria redimi-lo, como que contagiava-o.
Poderia explicar as verdadeiras razões que o haviam compelido a cometer um
crime tão terrível, como se tivesse sido possuído pelas forças mais nefastas do
mal? Ele não se detinha, parecia
inseguro, torturado por dúvidas e angústias. Refugiava-se num capote preto para afastar o frio das ruas, mas, na verdade,
o frio de sua própria alma era muito maior e o petrificava. Ensejava por
liberdade, mas não conseguiria vivê-la, cometera um monstruoso crime, deveria entregar-se, só assim teria uma
esperança de salvação. Não conseguia
sair ileso desse círculo vicioso e fatal.)
` A
emoção, a essa altura, começava a dominar-me.
Que felicidade poder sentir o mundo dos livros e o que ele, na verdade,
encerrava em suas páginas. Novo alento e
me senti bem perto de uma nova personagem, moldada em penumbra.
(Eugênia
Grandet, já bem envelhecida, peguei-a
apagando a iluminação da casa, como fazia seu pai, e deixando tudo no escuro para economizar a luz, e logo ela, que tanto
sofrera na mocidade com o desconforto que o velho impunha à família. A heroína
de Balzac continuará sua vidinha inútil
até o fim de seus dias. E isso se
explica porque nenhuma esperança de
salvação poderia atingi-la, sem amor e alegria viveria naquela soturna casa em
ruínas, embora pudesse viver num palácio com a riqueza acumulada, após grande decepção de um amor frustrado e um casamento em que ela fora
usada, unicamente, por sua fortuna. Era deplorável a situação de Eugênia,
viúva, sem filho e sem família, vivendo
mesquinha e miseravelmente como vivera seu pai nos seus dias, cercado de ouro.)
Como é difícil entender que a vida se escoe
dessa maneira, sem nenhuma luz ou esperança de um dia de sol, como vivia a personagem de Honoré de Balzac! Eu teria, entretanto, de continuar minha
caminhada. Esquecer o que não estava em meu alcance modificar. A mim
cabia, apenas, ver e sentir, nenhuma ajuda poderia dar, nada conseguiriam de
mim, nenhuma interferência, o que estava escrito assim permaneceria até o final
dos séculos. Continuei andando, andando, com o gato à minha frente, cada vez
mais entusiasmado, como se me dissesse que havia muita coisa para ser vista
ainda. E, de fato, havia, e eu o descobri logo que passamos por um
grande pátio aberto e entramos numa área mais suntuosa.
(Aparecia-me o Grande Hotel de
Balbec, à noite, quando as luzes se irradiavam pela grande sala de jantar. Muita
gente havia comparecido para um jantar especial. Não vi o narrador de “À la
Recherche du Temps Perdu”, Marcel (?), mas pude ver o que ele via e retratava.
Os hóspedes, todos elegantemente trajados, jantavam euforicamente no salão com
suas imensas janelas envidraçadas, abertas as cortinas e deixando transparecer
e irradiar, não só a imensa claridade como a riqueza com que a aristocracia se perpetuava,
para os jardins, onde a população operária de Balbec, os pescadores
e também as famílias dos burgueses, que
estavam invisíveis na penumbra, se comprimiam
e colavam seus rostos no vidro das
janelas para observar o que lá dentro acontecia. E o que viam?
Uma gente tão fantástica como estranhos peixes e moluscos num luxuoso
banquete. O narrador da obra de Proust
compara aquela cena a um imenso aquário, cuja parede de vidro envolvia os
participantes do jantar e, preocupado, questiona se aquela fronteira
envidraçada protegerá para sempre aquelas pessoas extravagantes, das pessoas
obscuras que as observam, quando elas decidirem
capturá-las no aquário para devorá-las.)
Depois da grande emoção causada
por essa cena que me envolveu por completo, seguimos e paramos, eu e o Gato de
Botas, diante de uma porta que lembrava um hospital e observei, pelo vidro
externo, um homem deitado numa cama, que se debatia inutilmente.
(Dahlmann, o bibliotecário de
Borges, debatia-se, com efeito, naquela cama, corroído por uma febre muito alta
que lhe causava alucinação. Debatia-se como se estivesse lutando
desesperadamente para salvar sua vida. Balbuciava palavras e emitia sons sem
nexo. Fisicamente fragilizado por uma septicemia, estava entre a vida e a morte. Tudo dependia da reação de seu organismo para
enfrentar e vencer a violenta infecção que se alastrara por todo seu corpo. Ao
que tudo indicava, morreria, ali,
naquela noite ou na noite seguinte, não poderia ir muito longe. Não
gostaria de morrer daquele jeito, mas, sim, como o avô do próprio Borges, lutando nos
pampas, como deveria lutar um verdadeiro argentino. Tenta fugir da morte comum
e sonha com a morte épica dos heróis. Para
cumprir esse destino glorioso teria de ir para o Sul. É o que mais desejava. Mas, para isso, teria de melhorar, ter alta, sair do hospital e
ir para sua estância, onde encontraria certamente um compadrito que o desafiaria e um
gaucho que lhe atiraria uma faca para que pudesse defender-se, lutando como
deve lutar um homem. E é isso que acontece com Dahlmann ao aceitar o desafio,
embora não soubesse usar a faca, e partir para a luta. Cumpre o seu destino. Que glória, não morrer em cima
de uma cama fria de hospital!)
Comoveu-me o drama do
bibliotecário borgiano e tentei compreender os seus motivos de honra oriundos
da lembrança de um passado heroico. Essa
peleja fantasmagórica, entretanto, só poderia ter lugar num sonho, num sonho que
espelhasse valentia e coragem, sonho esse que só poderia ocorrer através da
literatura.
O Gato de Botas pareceu-me um
pouco cansado, a essa altura, por tanto que já havíamos andado e visto. Chegamos
a uma vereda entrelaçada de árvores. Percebi que havia penetrado no Sertão. Ouviam-se,
a princípio, sons longínquos, a pouco e pouco mais próximos, e um barulho de luta, de bravas lutas.
(Vejo, nítido, Hermógenes e Diadorim lutarem
desesperadamente. A morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim, tinha de ser
vingada, a hora chegara, finalmente.
Entre os dois, o diabo no meio da rua. Diadorim crava e sangra
Hermógenes. Sangue e urros por todo lado. Diadorim mata quem lhe matou o pai,
mas, também, é atingida. O diabo no meio
do redemunho. Morre Diadorim, para desespero de Riobaldo, que, estarrecido,
vê, quando lavam o corpo dele, do falso
rapaz, um corpo de mulher, moça perfeita
que se escondia num corpo de homem para
poder participar do grupo de jagunços e, assim, vingar a morte do pai. A revelação do
verdadeiro corpo de Diadorim faz crescer o amor que julgara impossível. Só conseguindo matar Hermógenes é que a feminilidade
de Reinaldo-Diadorim poderia surgir e reinar no Sertão, mas, ao cumprir-se seu destino, ela também morre. Riobaldo, então, sente que sua dor é maior que sua surpresa.)
Diante de cena tão comovente, brotada
da pena de João Guimarães Rosa, até o Gato de Botas demonstrou emocionar-se.
Depois de algum tempo, chamou-me e confidenciou-me que a próxima visita seria a
última. Depois dela, iria em busca de
seu destino e eu retornaria à biblioteca. Ficamos em profundo silêncio, como se
participássemos do velório de Diadorim.
(Havia um mar infinito.
Mergulhamos silenciosos e chegamos ao fundo do oceano. Tivemos um encontro
notável com o capitão Nemo que, sentado na cabine do Nautilus, sua primorosa
embarcação, com sua barba espessa, rodeado de aparelhos náuticos, cartografias,
bússolas, nos convidava para partir com ele numa viagem infindável para desvendar, uma vez por todas, os
segredos que se ocultavam nos confins dos oceanos. Só ele poderia nos levar aos
meandros mais recônditos das águas profundas, aos monumentos e às grutas de
pedra que se escondem por debaixo das águas, pois conhecia toda a imensidão
oceânica. Voltaríamos à terra - se é que
haveríamos de querer voltar - quando nada mais existisse para ser
desvendado no mar. Aprenderíamos, eu e o gato, a comer as gulodices marítimas,
infindáveis e apetitosas, e aprenderíamos, também, a conversar e conviver com
os habitantes daquele mundo submerso, peixes, crustáceos, moluscos das mais
diversas espécies. Apreciaríamos a arquitetura do mundo oceânico, com seus
castelos e tesouros, seus recantos misteriosos. A água nos daria tudo, viveríamos dela. O
Capitão Nemo lamentou profundamente que estivéssemos tão presos à terra e
informou que em breve partiria. Deu-nos
adeus.)
O gato não se fez de rogado e me
disse que sua missão estava cumprida e terminada, nada mais eu deveria esperar
dele. Cabia-me voltar para a biblioteca enquanto ele iria viver sua nova vida, longe
dos livros. Enfaticamente, falou-me:
“Vou em busca da minha felicidade”.
Quando retornei à biblioteca,
percebi que tudo estava às escuras. A luz se apagara e eu não sabia agora onde
tinha deixado o castiçal. Tateando, cheguei à poltrona e nela me sentei para aguardar a volta da luz e então ir para
o meu quarto dormir. Nem tinha noção de que hora seria, nem poderia consultar o
relógio. Que noite! Entre um sonho e um pesadelo!
O que me aconteceu depois de
tudo isso, não sei, na verdade, lembro-me de que fui acordada por Fernanda,
pois devo ter adormecido à espera de que a luz chegasse. Notei que havia sol,
um sol ainda fraco, que chegava
devagarzinho, temendo que a chuva torrencial retornasse e o expulsasse do céu
vazio de estrelas. E foi esse sol fraco
que me fez retornar a minha casa, assim que terminei o café, fartamente servido
por Fernanda.
Meu tio me telefonou, algumas
semanas depois, estava aborrecido e estarrecido com o que acontecera, um fato
estranho. Imagine só, ele recebeu a visita de um neto muito querido, que levou
alguns de seus livros para ler. Dentre os livros que leu, o neto devolveu um, dizendo que não
encontrara o gato, quando o título era “O Gato de Botas”. Realmente, não havia
nesse livro nenhuma indicação, nenhum indício de onde se encontraria esse gato.
Fechado, o livro parecia perfeito; aberto, nenhuma página sequer mencionava que
gato seria esse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário