sexta-feira, 1 de agosto de 2014

UMA LONGA VIAGEM

                                                                    UMA LONGA VIAGEM
                                                                                                              Conto de Elsa Caravana Guelman
                Alan sentou-se diante da janela e esticou as pernas, como se pretendesse evadir-se do mundo, buscando, naquela tranqüilidade, não pensar em nada que o envolvesse, como se viajasse para dentro de si mesmo.
 Trabalhava, há alguns anos, numa empresa de projeção nacional e nunca imaginou  (a mente efervescente, por mais que vivencie,  não consegue se manifestar e nem dá a ninguém a pretensão e a certeza de adivinhar o futuro) que, um dia, seria designado para viajar e trabalhar numa pesquisa do interesse do escritório. Não que ele não tivesse capacidade, sabia que tinha, seu trabalho era excelente, mas sim porque elaborava suas teses muito discretamente, diferente dos colegas que se exibiam o mais que podiam, buscando ser escolhidos para futuras e possíveis viagens.  Sabia o quão difícil é viver no mundo da competição, que não dá tréguas a ninguém.
                 Quando o  diretor lhe comunicou a escolha, ainda estava absorto e preso aos pensamentos que lhe acudiram, empoleirando-se em sua mente.  Apanhado de surpresa, o que viu primeiro foi a calvície acentuada daquele homem à sua frente;  o diretor não parava de dizer que confiava nas suas observações porque o julgava com muita experiência e sensibilidade para pesquisar  sobre o  tema para o qual fora escolhido. A sua participação seria totalmente sigilosa, ninguém poderia tomar conhecimento do que ele iria  descobrir.  Não poderia discutir as dúvidas com ninguém, teria de tomar as decisões sozinho e só voltar quando chegasse a uma definitiva conclusão. Era uma grande responsabilidade a que teria pela frente, confiavam-lhe um mundo de escolhas por causa de sua maneira discreta de trabalhar.
Uma missão solitária e sigilosa cria muitas dificuldades para quem a executa.  Por que solitária e sigilosa? Por que ninguém poderia conhecer o assunto antes de sua criação e divulgação?  E isso viria com um grande sucesso. Por enquanto, ele teria de proceder com muita cautela, como se fosse um mergulhador que desce até o fundo do oceano em busca de um tesouro, examinar cuidadosamente as peças encontradas, selecionar as que, verdadeiramente, mostrarem seu fulgor e, lentamente, voltar triunfante à superfície,  carregando apenas o que, de fato, tivesse importância.  Aceitaria a missão, correndo riscos e vivendo algum tempo no silêncio, sem o convívio dos amigos? Teria de pensar que, no final, receberia uma grande compensação da própria vida, em razão do seu sucesso, abrindo-lhe todas as portas.  Mas, afinal, que missão seria essa, tão prodigiosa? E os riscos?  Havia, ainda, uma condição a ser respeitada, ele teria somente a ajuda de um auxiliar, que lhe serviria em todos os momentos, mas somente como motorista.  Mais ainda:  só receberia a documentação e tudo o mais que fosse necessário, com a orientação inicial do que fazer, nas vésperas da viagem.  Aguardasse!
                Naquela noite cancelou todos os compromissos com os amigos. Sabia o quanto seria difícil para ele afastar-se das pessoas e ficar sem ter com quem  conversar, discutir problemas, selecionar músicas. Saiu de mansinho e voltou cedo para casa, pretendendo organizar suas idéias e rever as posições e  atitudes para poder equacionar a viagem. Realmente, sentia-se, apesar de assustado com o inesperado,  motivado e interessado. Teria de pensar que aquela oportunidade poderia representar  seu futuro profissional, era isso  que estava em jogo. Nem jantou direito e foi logo para o quarto. Assim, deveria pensar no mais absoluto silêncio e acreditava que,  deitado,  seria impulsionado  para os pontos duvidosos e para os pontos positivos sem que nada o perturbasse. A vida é assim, traz vantagem e desvantagem numa só questão, como uma estrada que desembocasse em dois caminhos, numa noite escura e sombria. Em qual deles continuaria sua caminhada? Por onde a começaria?  Tinha muitos planos, mas nada podia fazer enquanto não tomasse conhecimento do que iria e poderia realizar, aí, sim, é que precisaria agir rápido e pensar no que fosse mais conveniente a fim de conseguir, no tempo previsto, consolidar o êxito de sua viagem. Não atinava, e nem conseguiria decifrar o mistério,  com os motivos que teriam levado o diretor a cogitar de seu nome.
                Sentiu que o sono rondava,  nem trocou de roupa, adormeceu imaginando a viagem. No meio da noite, ouviu vozes. Pensou que viessem da rua, mas elas ficaram mais fortes, como numa festa em que todos falam ao mesmo tempo. Sentiu-as muito próximas. Como era possível?  A janela, que dava para a rua, tinha grades, ninguém poderia entrar no quarto. O apartamento fora completamente fechado, como em todas as noites. Do lado da cortina da janela, avistou um vulto que se adiantava, mais outro, um terceiro e...
                --Quem são vocês, o que fazem no meu quarto? – perguntou, assustado. Como entraram?
                Ao mesmo tempo em que falava, na ânsia de entender o que estava acontecendo no quarto, ainda meio cambaleante, estremeceu ao ver, num raio de um segundo, pela luz da rua que entrava pela janela,  que todos se pareciam com ele, ou melhor, que todos eram suas cópias.   Era ele neles.
.              - Eu sou o Alan detetive, ajudei o Isidoro a resolver o problema de um assalto;  eu, sou o Alan advogado e padrinho do casamento de Melina;  eu, o Alan estudante que ajudou a Heloisa a achar o seu amor;  eu,  o Alan que forneceu à Raquel os tecidos importados para o seu manequim;  eu, o Alan do restaurante Pérola, que  presenciou a decepção do Marcelo quando sentiu que perdia Gabriela para sempre.  Fizemos, todos, parte de sua multifacetada história, estávamos vivendo intensamente enquanto você, nosso modelo e matriz, permanecia estático, ficava aqui, existindo apenas, imerso na tranquilidade de sua vida, enquanto nós outros trabalhávamos, agíamos, vencíamos.  Nós existimos!  Estamos vivos!  Somos você, Alan. Nós todos somos Alan, somos representações, emanações suas! Você se dividiu em várias histórias, multiplicou-se.
                - Não é possível, estou sonhando, tudo isso é irreal...  Vocês não podem existir, eu sou o único Alan e não vou permitir que usurpem o meu lugar, usando o meu nome. Saiam, desapareçam! – gritou.          Sentiu que tentava ficar bem longe deles, como se buscasse uma proteção inexistente e temesse que eles o cercassem, já que não pareciam amigos, falavam de uma forma estranha, áspera, que não denotava qualquer simpatia.
                - Impossível – retrucaram todos em uníssono. Fizemos parte de várias histórias, tivemos participação ativa nelas, temos nossa vida própria.  Seremos lidos por muitas pessoas, ninguém vai retirar nosso nome das páginas em que estão.  Você, sim, nunca fez nada, por isso nunca existiu.  Vamos retornar, sim,  ao nosso mundo e cada um de nós vai  entrar na  história em que vive e aguardar que outras pessoas se interessem pelo que fizemos, pois, quanto mais formos lidos, mais estaremos garantindo nossa eternidade.  Não se iluda, Alan:  você só terá uma existência marcante se vencermos, se nós também permanecermos vivos;  nossa derrota, nossa morte, levará você para o  mais inexorável dos esquecimentos, o do anonimato.
De súbito, tão de repente quanto haviam surgido, todos desapareceram. Alan levantou-se da cama, num salto. Teria sonhado ?  Parecera tão real tudo o que se passara, mas era um absurdo admitir a existência de tais indivíduos. Que fenômeno poderia ser esse?  Alucinação? Distúrbio mental?  Estaria doente?!  Foi-se lembrando, aos poucos, de um quadro de que gostava muito, de Edward Hopper, Chop Suey, que mostrava uma mulher numa mesa de um restaurante chinês, tendo, frente a ela, outra mulher, idêntica, um clone, seu duplo. (Onde teria visto essa pintura? Numa exposição no Grand Palais?)  Procurara ler muito a respeito desse quadro, soube que o pintor se havia inspirado numa lenda germânica, a do doppelgänger, que é o duplo andante, um ser fantástico que se converte numa cópia idêntica da pessoa que ele escolhe. Achou, porém, que admitir isso seria pura fantasia, espelhada numa ficção e não na realidade. Tinha de ter os pés bem calcados no chão para não perder o controle de si mesmo, o senso do real.
  Procuraria, no dia seguinte,  os amigos, mencionados pelas fantasmagóricas criaturas, para saber se, realmente, tinham enfrentado alguma dificuldade.  Acabou convencido (era mais fácil...) de que, na verdade, sonhara. Há, com efeito, sonhos bizarros, conflitantes. A preocupação com a viagem, tudo muito confuso, difícil, deve ter mexido com sua cabeça, deixando-o nervoso, conduzindo-o a esse estranho sonho.  Não era fácil aceitar, de uma hora para outra,  uma viagem inteiramente sigilosa e que não poderia, sequer, ser conhecida pelos colegas, pelos amigos.  E ele no controle de tudo, como se fosse um agente secreto.  Jamais ninguém suspeitaria de que fora procurado pelo diretor para dele receber a proposta de uma viagem assim misteriosa, uma viagem  que, se tivesse sucesso,  poderia mudar o rumo de vida de todos, patrões e empregados, dando à empresa, dantes bisonha,  projeção internacional. Por que ele e não outro, ou outros, com mais vivência, com mais capacidade, com mais competência?    
 Admitia, sim, que sonhara e que aquele sonho revelava a sua preocupação interior, seu receio de se meter pelo mundo sem saber o que encontraria e o que resolver com o que encontrasse. Mas, por outro lado, sabia que seu  trabalho era bom, que era correto e não dava margem à preocupação.  Redigia bem, sabia como formular as questões e as apresentava com bastante clareza.  Quando mais jovem, pensara em fazer teatro. Parecia até que estava diante da sua verdadeira vocação. Assistia e acompanhava as representações teatrais com um interesse redobrado. Alguns amigos, os mais íntimos, que lhe ouviam as confidências,  lhe arrumaram uma apresentação, uma vez, para um grupo de teatro amador, que levaria à cena uma comédia, mas ele acabou desistindo sem comparecer ao encontro marcado.  Imaginava-se, no entanto, com frequência, numa representação de “Romeu e Julieta”, uma história trágica de amor, ou em “Macbeth”, uma  história de poder e violência. Lia e relia William Shakespeare, por noites e noites. Como se sentiria feliz se pudesse representar, nem que fosse uma única vez, em sua vida.  De outra feita, a idéia do teatro voltou, arrumou outro grupo amador, chegou a comparecer a alguns ensaios mas acabou desanimando. Talvez devesse, pensou, frequentar uma academia de teatro, mas faltava-lhe tempo e precisava trabalhar, dar duro para terminar a faculdade. Como é difícil conseguir um lugar ao sol!  
 Procurou, então, naquele exato momento, esquecer o estranho sonho que o transportava para tal dimensão fantasmagórica, provocando-lhe  angústia por não  conseguir dominar essa sensação desagradável, e voltou para a cama, na esperança de que o sono retornasse. Mas ele não retornou e ficou se virando de um lado para o outro, como se metralhado por receios e dúvidas infindáveis, exaurindo-se em perguntas sem repostas até que o dia nascente surgiu, obrigando-o a levantar-se para enfrentar os desafios daquela realidade nova que teria, doravante, que enfrentar.
                Naquela noite, evitou dormir em seu apartamento, temendo o eclodir de um novo  sonho similar, com seus outros eus a brotar do nada.  Evitando explicar a si próprio o motivo pelo qual  não queria dormir  em casa, foi ficando, num jogo interminável,  até altas horas, no apartamento de um colega, que acabou por convidá-lo a dormir ali, por já ser muito tarde e esta longe de casa. Dormiu tranquilo, dessa vez, sem receber mirabolantes visitas inesperadas.  Acordou mais cedo e, passando primeiro no apartamento, para tomar um banho e trocar de roupa, chegou ao trabalho esperançoso de que seu chefe imediato, que - assim imaginou - deveria estar a par da idéia do diretor, lhe dissesse alguma coisa sobre a misteriosa missão. Tudo em vão, não recebeu uma palavra, nenhum comentário a respeito desse assunto, e também não fez nenhuma pergunta para não comprometer ninguém.  O chefe, todavia, perguntou-lhe, surpreendentemente:
                - Alan,  por que não me falou dessas férias inesperadas que você precisa tirar?
                - Férias?
                - Por que as pediu diretamente ao diretor? Eu não me teria negado a conceder-lhe essas férias, se houvesse mesmo uma necessidade vital.
                Alan ficou em silêncio por instantes, tentando entender o que ouvia, constrangido, sem saber o que dizer, quando a entrada repentina do diretor na sala o salvou:
                - Já comuniquei ao seu chefe que concordei com  suas férias inesperadas.  Vamos sentir sua falta, pois há muito trabalho a realizar, mas também não podemos ficar indiferentes aos problemas particulares de nossos servidores. Depois, passe na minha sala, tenho um presente para sua mãe.
                Alan entendeu que deveria ir à sala do diretor para receber mais recomendações  sobre sua missão e assim o fez.  Sua expectativa foi, porém, em vão, o diretor o recebeu amavelmente mas nada acrescentou ao pouco que ele já sabia.   Quanto às férias,   esclareceu que achou melhor que todos da empresa, quando não mais o vissem, pensassem que ele estava de férias e, assim, sua saída repentina não despertaria nenhuma suspeita.
                Quando saiu do gabinete do diretor, voltou a seu posto de trabalho e fez o que tinha a fazer até que chegou a hora do final do expediente.  Decidiu que não mais se afastaria  de seu quarto e de seu apartamento, voltaria a dormir lá, como sempre fizera, era simplesmente absurdo arranjar pretextos para dormir em ambientes estranhos por medo a criaturas bizarras  de sonhos mal resolvidos.  E assim fez, chegou em casa como de costume, ouviu música, leu um pouco e, quando o sono chegou, foi direto para o quarto, tendo antes o cuidado de fechar a janela e as cortinas, o que o impediria de ver as luzes da rua, durante a noite, e a claridade do nascer do dia.  Acordou bem mais tarde, inquietou-se um pouco por isso, pois não queria chegar ao trabalho, de jeito nenhum, com atraso. Sob sua responsabilidade, havia ainda um bom número de questões a serem resolvidas.  Não gostaria de que outros colegas assumissem o que ele não conseguisse terminar, não dando margem, assim, a nenhuma especulação.  Sabia que aquelas férias antecipadas, quando divulgadas, seriam objeto de comentários invejosos, outros poderiam querer também antecipar as suas, criticar o que pareceria um privilégio.  E isso aconteceu, de fato, tão logo suas férias foram anunciadas, uma colega ficou bastante irritada porque não conseguira tirar as dela, nem sequer para acompanhar a doença séria de seu pai.  O diretor, sabiamente, resolveu então também conceder essas férias que ela reivindicava, reconsiderando a decisão anterior, calando, assim, a boca de todos.  Era por esse motivo que ele queria terminar todas as suas tarefas em tempo hábil, diminuindo sua hora de almoço e saindo até mais tarde, se preciso fosse, para conseguir dar conta de tudo sem apelar para a colaboração alheia.
Em casa, organizou suas coisas pessoais, selecionando o que deveria ou poderia carregar, porque não lhe agradava levar uma mala muito grande, tinha receio de que alguma coisa, inesperada, pudesse ocorrer e ele, na certa, teria maior mobilidade com uma mala pequena. Essa idéia lhe surgira, nem sabia por que razão, nada do que lhe dissera o diretor deixava transparecer alguma preocupação nesse sentido, mas mala grande dificultaria sua locomoção, por isso conviria diminuir o volume das coisas que costumava levar quando viajava.
Telefonou para seus pais, que viviam no interior, e lhes contou por alto sobre a viagem, pedindo-lhes, apenas, que mantivessem segredo, sem explicar o motivo.  Só iria poder vê-los quando regressasse. Não participou nada aos amigos, não sabendo o que lhes dizer, ou fazia a viagem nesses termos ou não fazia, ainda podia desistir, deixar que outro assumisse seu lugar, ele não estava sendo obrigado a aceitar, mas, examinando seus dias até então, achou-os vazios de aventura e concluiu que não desistiria, haveria sempre uma ponta de surpresa, uma novidade, uma mudança, nessa viagem, quem sabe lhe permitiria abrir novos horizontes, descortinar um brilhante e inesperado futuro.
Vera, a moça que cuidava da limpeza de seu apartamento, observadora demais, também o preocupava, no momento, pois acharia estranho ele ter de viajar daquele jeito, pouco habitual, ainda mais dizendo estar de férias repentinas.  Teria de tranquilizá-la, pois seria  a única pessoa  a cuidar de tudo o que deixava, até sua volta.  De toda sorte, ele não era uma pessoa só no mundo, tinha seus pais, seus amigos, a própria Vera, que já lhe cuidava da casa havia anos, não poderia desaparecer assim, de uma hora para outra, sem uma explicação convincente.  Mas será que, até viajar, teria essa explicação? Ou a explicação só viria com a sua volta?
Então o diretor, por um telefonema, o fez saber que tudo já estava organizado quanto à viagem, a documentação completa lhe seria entregue, bem como a reserva do hotel, antecipadamente pago.  Confirmou que sua locomoção, como já fora informado, seria de carro, não necessitando de avião, pois não teria de se ausentar do país.  Marcou dia e hora para se encontrarem, num local que indicou, onde também carro e motorista o estariam esperando, avisando que levasse a mala, de táxi, pois daquele local partiria, imediatamente.
O táxi percorreu diversas ruas até atingir o local marcado. Não desejava ocupar sua mente com nenhuma idéia, agora, que estava perto de iniciar sua rota.  Deixou, por isso, que seus olhos errassem indefinidamente pelo que se ia descortinando pela janela do veículo em movimento. Entretanto, o que via não fazia o menor sentido para ele, seu olhar como que era descontínuo,  sem qualquer fixação ou nexo.  Ansiava apenas por chegar, porque chegar significaria conhecer.  De longe, avistou um carro escuro, ao lado estava o diretor, com uma pasta preta.
Pagou o táxi, desceu, com a mala, encaminhou-se para o homem da pasta preta.
- Meu filho, desejo-lhe o maior sucesso na missão – disse o diretor.  Saiba que seu sucesso será o nosso sucesso e, então, poderemos competir com as grandes empresas internacionais. Esse momento é muito importante para mim, para você, para nossa firma. Cuide-se bem, Alan!
E prosseguiu:
 - Não lhe pedirei  mais nada. Fará o que entender melhor para você e para nós.  Pode entrar, agora, no carro.  O motorista já o espera.  Boa viagem!
Abraçaram-se e, ainda emocionado pela confiança que lhe fora depositada, Alan fez menção de entrar no carro, mas se deteve. Acompanhou com o olhar o diretor que, tendo também entrado em seu próprio carro, partiu em seguida, deixando uma aragem úmida que Alan recordou, certa vez, já ter sentido numa ocasião em que estivera, menino, de férias no campo, sentindo aquela mesma aragem e, ao olhar ao redor, vendo que as árvores se cobriam  de pequeninos fios brancos, parecendo pedaços de renda recobrindo a folhagem.  Explicaram-lhe, um dia, que se tratava de uma movimentação coletiva de aranhas, em certa época do ano, e que, dependendo do lugar em que apareciam esses filamentos, as teias das aranhas eram conhecidas como fios da virgem ou babas do diabo. Quantas recordações agora o rodeavam,  com os  perfumes silvestres de sua infância,  e uma saudade imensa desse passado o envolveu por completo. Viu-se criança, correndo pelos campos, a acompanhar o voo dos pássaros. Outras crianças, que ele não conseguia agora identificar, também corriam, em sua memória, livres e contentes (aquela aragem, seria a madalena de Proust, tantas vezes citada e repetida?), e ele reviu, num segundo, os dias, as horas e os minutos que tinham formado  sua existência até então. Transbordando como numa cascata, as recordações incontidas  irrompiam e gritavam:  Ah, pequenos fios brancos, quase invisíveis, venham povoar novamente a minha vida!
Entrou no carro, sentou-se atrás, não por vaidade, mas para ter maior conforto numa viagem que pressupunha cansativa.  Na frente,  já estava o motorista.  E, entre a lembrança dos fios da virgem ou babas do diabo,  sem que tivesse tido tempo para dizer sequer um cumprimento, ouviu uma voz, que se irradiou antes de o carro iniciar a partida,  era o motorista, que se apresentava, com um sorriso estampado no rosto:
- Eu sou Alan,  seu motorista, doutor, conte comigo.  Faremos uma longa viagem!

                 
               


                

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