UMA LONGA VIAGEM
Conto
de Elsa Caravana Guelman
Alan sentou-se diante da janela
e esticou as pernas, como se pretendesse evadir-se do mundo, buscando, naquela tranqüilidade,
não pensar em nada que o envolvesse, como se viajasse para dentro de si mesmo.
Trabalhava, há alguns anos, numa empresa
de projeção nacional e nunca imaginou (a
mente efervescente, por mais que vivencie,
não consegue se manifestar e nem dá a ninguém a pretensão e a certeza de
adivinhar o futuro) que, um dia, seria designado para viajar e trabalhar numa
pesquisa do interesse do escritório. Não que ele não tivesse capacidade, sabia
que tinha, seu trabalho era excelente, mas sim porque elaborava suas teses
muito discretamente, diferente dos colegas que se exibiam o mais que podiam,
buscando ser escolhidos para futuras e possíveis viagens. Sabia o quão difícil é viver no mundo da
competição, que não dá tréguas a ninguém.
Quando o
diretor lhe comunicou a escolha, ainda estava absorto e preso aos
pensamentos que lhe acudiram, empoleirando-se em sua mente. Apanhado de surpresa, o que viu primeiro foi a
calvície acentuada daquele homem à sua frente;
o diretor não parava de dizer que confiava nas suas observações porque o
julgava com muita experiência e sensibilidade para pesquisar sobre o
tema para o qual fora escolhido. A sua participação seria totalmente
sigilosa, ninguém poderia tomar conhecimento do que ele iria descobrir. Não poderia discutir as dúvidas com ninguém,
teria de tomar as decisões sozinho e só voltar quando chegasse a uma definitiva
conclusão. Era uma grande responsabilidade a que teria pela frente,
confiavam-lhe um mundo de escolhas por causa de sua maneira discreta de
trabalhar.
Uma missão solitária e sigilosa cria muitas dificuldades para quem a
executa. Por que solitária e sigilosa?
Por que ninguém poderia conhecer o assunto antes de sua criação e divulgação? E isso viria com um grande sucesso. Por
enquanto, ele teria de proceder com muita cautela, como se fosse um mergulhador
que desce até o fundo do oceano em busca de um tesouro, examinar cuidadosamente
as peças encontradas, selecionar as que, verdadeiramente, mostrarem seu fulgor
e, lentamente, voltar triunfante à superfície,
carregando apenas o que, de fato, tivesse importância. Aceitaria a missão, correndo riscos e vivendo
algum tempo no silêncio, sem o convívio dos amigos? Teria de pensar que, no
final, receberia uma grande compensação da própria vida, em razão do seu
sucesso, abrindo-lhe todas as portas. Mas,
afinal, que missão seria essa, tão prodigiosa? E os riscos? Havia, ainda, uma condição a ser respeitada,
ele teria somente a ajuda de um auxiliar, que lhe serviria em todos os
momentos, mas somente como motorista.
Mais ainda: só receberia a
documentação e tudo o mais que fosse necessário, com a orientação inicial do
que fazer, nas vésperas da viagem. Aguardasse!
Naquela noite cancelou todos os
compromissos com os amigos. Sabia o quanto seria difícil para ele afastar-se
das pessoas e ficar sem ter com quem
conversar, discutir problemas, selecionar músicas. Saiu de mansinho e voltou
cedo para casa, pretendendo organizar suas idéias e rever as posições e atitudes para poder equacionar a viagem.
Realmente, sentia-se, apesar de assustado com o inesperado, motivado e interessado. Teria de pensar que
aquela oportunidade poderia representar seu futuro profissional, era isso que estava em jogo. Nem jantou direito e foi logo
para o quarto. Assim, deveria pensar no mais absoluto silêncio e acreditava
que, deitado, seria impulsionado para os pontos duvidosos e para os pontos
positivos sem que nada o perturbasse. A vida é assim, traz vantagem e
desvantagem numa só questão, como uma estrada que desembocasse em dois caminhos,
numa noite escura e sombria. Em qual deles continuaria sua caminhada? Por onde a
começaria? Tinha muitos planos, mas nada
podia fazer enquanto não tomasse conhecimento do que iria e poderia realizar,
aí, sim, é que precisaria agir rápido e pensar no que fosse mais conveniente a
fim de conseguir, no tempo previsto, consolidar o êxito de sua viagem. Não
atinava, e nem conseguiria decifrar o mistério,
com os motivos que teriam levado o diretor a cogitar de seu nome.
Sentiu que o sono rondava, nem trocou de roupa, adormeceu imaginando a
viagem. No meio da noite, ouviu vozes. Pensou que viessem da rua, mas elas
ficaram mais fortes, como numa festa em que todos falam ao mesmo tempo.
Sentiu-as muito próximas. Como era possível? A janela, que dava para a rua, tinha grades,
ninguém poderia entrar no quarto. O apartamento fora completamente fechado,
como em todas as noites. Do lado da cortina da janela, avistou um vulto que se
adiantava, mais outro, um terceiro e...
--Quem são vocês, o que fazem no
meu quarto? – perguntou, assustado. Como entraram?
Ao mesmo tempo em que falava, na
ânsia de entender o que estava acontecendo no quarto, ainda meio cambaleante,
estremeceu ao ver, num raio de um segundo, pela luz da rua que entrava pela
janela, que todos se pareciam com ele,
ou melhor, que todos eram suas cópias.
Era ele neles.
. - Eu sou o Alan detetive, ajudei o
Isidoro a resolver o problema de um assalto; eu, sou o Alan advogado e padrinho do
casamento de Melina; eu, o Alan estudante
que ajudou a Heloisa a achar o seu amor; eu, o
Alan que forneceu à Raquel os tecidos importados para o seu manequim; eu, o Alan do restaurante Pérola, que presenciou a decepção do Marcelo quando sentiu
que perdia Gabriela para sempre. Fizemos,
todos, parte de sua multifacetada história, estávamos vivendo intensamente
enquanto você, nosso modelo e matriz, permanecia estático, ficava aqui,
existindo apenas, imerso na tranquilidade de sua vida, enquanto nós outros
trabalhávamos, agíamos, vencíamos. Nós
existimos! Estamos vivos! Somos você, Alan. Nós todos somos Alan, somos
representações, emanações suas! Você se dividiu em várias histórias,
multiplicou-se.
- Não é possível, estou
sonhando, tudo isso é irreal... Vocês
não podem existir, eu sou o único Alan e não vou permitir que usurpem o meu
lugar, usando o meu nome. Saiam, desapareçam! – gritou. Sentiu que tentava ficar bem longe deles, como se buscasse
uma proteção inexistente e temesse que eles o cercassem, já que não pareciam
amigos, falavam de uma forma estranha, áspera, que não denotava qualquer
simpatia.
- Impossível – retrucaram todos em
uníssono. Fizemos parte de várias histórias, tivemos participação ativa nelas,
temos nossa vida própria. Seremos lidos
por muitas pessoas, ninguém vai retirar nosso nome das páginas em que
estão. Você, sim, nunca fez nada, por
isso nunca existiu. Vamos retornar, sim,
ao nosso mundo e cada um de nós vai entrar na
história em que vive e aguardar que outras pessoas se interessem pelo
que fizemos, pois, quanto mais formos lidos, mais estaremos garantindo nossa
eternidade. Não se iluda, Alan: você só terá uma existência marcante se
vencermos, se nós também permanecermos vivos;
nossa derrota, nossa morte, levará você para o mais inexorável dos esquecimentos, o do
anonimato.
De súbito, tão de repente quanto haviam surgido, todos desapareceram. Alan
levantou-se da cama, num salto. Teria sonhado ?
Parecera tão real tudo o que se passara, mas era um absurdo admitir a
existência de tais indivíduos. Que fenômeno poderia ser esse? Alucinação? Distúrbio mental? Estaria doente?! Foi-se lembrando, aos poucos, de um quadro de
que gostava muito, de Edward Hopper, Chop
Suey, que mostrava uma mulher numa mesa de um restaurante chinês, tendo, frente
a ela, outra mulher, idêntica, um clone, seu duplo. (Onde teria visto essa
pintura? Numa exposição no Grand Palais?) Procurara ler muito a respeito desse quadro, soube
que o pintor se havia inspirado numa lenda germânica, a do doppelgänger, que é o duplo andante, um ser fantástico que se converte
numa cópia idêntica da pessoa que ele escolhe. Achou, porém, que admitir isso
seria pura fantasia, espelhada numa ficção e não na realidade. Tinha de ter os
pés bem calcados no chão para não perder o controle de si mesmo, o senso do
real.
Procuraria, no dia seguinte, os amigos, mencionados pelas fantasmagóricas
criaturas, para saber se, realmente, tinham enfrentado alguma dificuldade. Acabou convencido (era mais fácil...) de que, na
verdade, sonhara. Há, com efeito, sonhos bizarros, conflitantes. A preocupação
com a viagem, tudo muito confuso, difícil, deve ter mexido com sua cabeça,
deixando-o nervoso, conduzindo-o a esse estranho sonho. Não era fácil aceitar, de uma hora para
outra, uma viagem inteiramente sigilosa
e que não poderia, sequer, ser conhecida pelos colegas, pelos amigos. E ele no controle de tudo, como se fosse um
agente secreto. Jamais ninguém
suspeitaria de que fora procurado pelo diretor para dele receber a proposta de
uma viagem assim misteriosa, uma viagem que, se tivesse sucesso, poderia mudar o rumo de vida de todos, patrões
e empregados, dando à empresa, dantes bisonha,
projeção internacional. Por que ele e não outro, ou outros, com mais
vivência, com mais capacidade, com mais competência?
Admitia, sim, que sonhara e que aquele
sonho revelava a sua preocupação interior, seu receio de se meter pelo mundo
sem saber o que encontraria e o que resolver com o que encontrasse. Mas, por
outro lado, sabia que seu trabalho era
bom, que era correto e não dava margem à preocupação. Redigia bem, sabia como formular as questões e
as apresentava com bastante clareza. Quando mais jovem, pensara em fazer teatro. Parecia
até que estava diante da sua verdadeira vocação. Assistia e acompanhava as
representações teatrais com um interesse redobrado. Alguns amigos, os mais
íntimos, que lhe ouviam as confidências, lhe arrumaram uma apresentação, uma vez, para
um grupo de teatro amador, que levaria à cena uma comédia, mas ele acabou
desistindo sem comparecer ao encontro marcado. Imaginava-se, no entanto, com frequência, numa
representação de “Romeu e Julieta”, uma história trágica de amor, ou em
“Macbeth”, uma história de poder e
violência. Lia e relia William Shakespeare, por noites e noites. Como se sentiria
feliz se pudesse representar, nem que fosse uma única vez, em sua vida. De outra feita, a idéia do teatro voltou,
arrumou outro grupo amador, chegou a comparecer a alguns ensaios mas acabou
desanimando. Talvez devesse, pensou, frequentar uma academia de teatro, mas
faltava-lhe tempo e precisava trabalhar, dar duro para terminar a faculdade.
Como é difícil conseguir um lugar ao sol!
Procurou, então, naquele exato
momento, esquecer o estranho sonho que o transportava para tal dimensão
fantasmagórica, provocando-lhe angústia
por não conseguir dominar essa sensação
desagradável, e voltou para a cama, na esperança de que o sono retornasse. Mas ele
não retornou e ficou se virando de um lado para o outro, como se metralhado por
receios e dúvidas infindáveis, exaurindo-se em perguntas sem repostas até que o
dia nascente surgiu, obrigando-o a levantar-se para enfrentar os desafios daquela
realidade nova que teria, doravante, que enfrentar.
Naquela noite, evitou dormir em
seu apartamento, temendo o eclodir de um novo sonho similar, com seus outros eus a brotar do
nada. Evitando explicar a si próprio o
motivo pelo qual não queria dormir em casa, foi ficando, num jogo
interminável, até altas horas, no
apartamento de um colega, que acabou por convidá-lo a dormir ali, por já ser
muito tarde e esta longe de casa. Dormiu tranquilo, dessa vez, sem receber
mirabolantes visitas inesperadas.
Acordou mais cedo e, passando primeiro no apartamento, para tomar um
banho e trocar de roupa, chegou ao trabalho esperançoso de que seu chefe
imediato, que - assim imaginou - deveria estar a par da idéia do diretor, lhe
dissesse alguma coisa sobre a misteriosa missão. Tudo em vão, não recebeu uma
palavra, nenhum comentário a respeito desse assunto, e também não fez nenhuma
pergunta para não comprometer ninguém. O
chefe, todavia, perguntou-lhe, surpreendentemente:
- Alan, por que não me falou dessas férias inesperadas
que você precisa tirar?
- Férias?
- Por que as pediu diretamente ao
diretor? Eu não me teria negado a conceder-lhe essas férias, se houvesse mesmo uma
necessidade vital.
Alan ficou em silêncio por
instantes, tentando entender o que ouvia, constrangido, sem saber o que dizer, quando
a entrada repentina do diretor na sala o salvou:
- Já comuniquei ao seu chefe que
concordei com suas férias inesperadas. Vamos sentir sua falta, pois há muito trabalho
a realizar, mas também não podemos ficar indiferentes aos problemas
particulares de nossos servidores. Depois, passe na minha sala, tenho um
presente para sua mãe.
Alan entendeu que deveria ir à
sala do diretor para receber mais recomendações sobre sua missão e assim o fez. Sua expectativa foi, porém, em vão, o diretor
o recebeu amavelmente mas nada acrescentou ao pouco que ele já sabia. Quanto
às férias, esclareceu que achou melhor que todos da
empresa, quando não mais o vissem, pensassem que ele estava de férias e, assim,
sua saída repentina não despertaria nenhuma suspeita.
Quando saiu do gabinete do
diretor, voltou a seu posto de trabalho e fez o que tinha a fazer até que
chegou a hora do final do expediente.
Decidiu que não mais se afastaria de seu quarto e de seu apartamento, voltaria a
dormir lá, como sempre fizera, era simplesmente absurdo arranjar pretextos para
dormir em ambientes estranhos por medo a criaturas bizarras de sonhos mal resolvidos. E assim fez, chegou em casa como de costume,
ouviu música, leu um pouco e, quando o sono chegou, foi direto para o quarto,
tendo antes o cuidado de fechar a janela e as cortinas, o que o impediria de
ver as luzes da rua, durante a noite, e a claridade do nascer do dia. Acordou bem mais tarde, inquietou-se um pouco
por isso, pois não queria chegar ao trabalho, de jeito nenhum, com atraso. Sob
sua responsabilidade, havia ainda um bom número de questões a serem resolvidas.
Não gostaria de que outros colegas
assumissem o que ele não conseguisse terminar, não dando margem, assim, a
nenhuma especulação. Sabia que aquelas
férias antecipadas, quando divulgadas, seriam objeto de comentários invejosos,
outros poderiam querer também antecipar as suas, criticar o que pareceria um
privilégio. E isso aconteceu, de fato,
tão logo suas férias foram anunciadas, uma colega ficou bastante irritada
porque não conseguira tirar as dela, nem sequer para acompanhar a doença séria
de seu pai. O diretor, sabiamente, resolveu
então também conceder essas férias que ela reivindicava, reconsiderando a
decisão anterior, calando, assim, a boca de todos. Era por esse motivo que ele queria terminar todas
as suas tarefas em tempo hábil, diminuindo sua hora de almoço e saindo até mais
tarde, se preciso fosse, para conseguir dar conta de tudo sem apelar para a
colaboração alheia.
Em casa, organizou suas coisas pessoais, selecionando o que deveria ou
poderia carregar, porque não lhe agradava levar uma mala muito grande, tinha
receio de que alguma coisa, inesperada, pudesse ocorrer e ele, na certa, teria
maior mobilidade com uma mala pequena. Essa idéia lhe surgira, nem sabia por que
razão, nada do que lhe dissera o diretor deixava transparecer alguma
preocupação nesse sentido, mas mala grande dificultaria sua locomoção, por isso
conviria diminuir o volume das coisas que costumava levar quando viajava.
Telefonou para seus pais, que viviam no interior, e lhes contou por alto
sobre a viagem, pedindo-lhes, apenas, que mantivessem segredo, sem explicar o
motivo. Só iria poder vê-los quando
regressasse. Não participou nada aos amigos, não sabendo o que lhes dizer, ou
fazia a viagem nesses termos ou não fazia, ainda podia desistir, deixar que
outro assumisse seu lugar, ele não estava sendo obrigado a aceitar, mas,
examinando seus dias até então, achou-os vazios de aventura e concluiu que não
desistiria, haveria sempre uma ponta de surpresa, uma novidade, uma mudança,
nessa viagem, quem sabe lhe permitiria abrir novos horizontes, descortinar um
brilhante e inesperado futuro.
Vera, a moça que cuidava da limpeza de seu apartamento, observadora
demais, também o preocupava, no momento, pois acharia estranho ele ter de viajar
daquele jeito, pouco habitual, ainda mais dizendo estar de férias repentinas. Teria de tranquilizá-la, pois seria a única pessoa a cuidar de tudo o que deixava, até sua volta.
De toda sorte, ele não era uma pessoa só
no mundo, tinha seus pais, seus amigos, a própria Vera, que já lhe cuidava da
casa havia anos, não poderia desaparecer assim, de uma hora para outra, sem uma
explicação convincente. Mas será que,
até viajar, teria essa explicação? Ou a explicação só viria com a sua volta?
Então o diretor, por um telefonema, o fez saber que tudo já estava
organizado quanto à viagem, a documentação completa lhe seria entregue, bem
como a reserva do hotel, antecipadamente pago.
Confirmou que sua locomoção, como já fora informado, seria de carro, não
necessitando de avião, pois não teria de se ausentar do país. Marcou dia e hora para se encontrarem, num
local que indicou, onde também carro e motorista o estariam esperando, avisando
que levasse a mala, de táxi, pois daquele local partiria, imediatamente.
O táxi percorreu diversas ruas até atingir o local marcado. Não desejava
ocupar sua mente com nenhuma idéia, agora, que estava perto de iniciar sua
rota. Deixou, por isso, que seus olhos
errassem indefinidamente pelo que se ia descortinando pela janela do veículo em
movimento. Entretanto, o que via não fazia o menor sentido para ele, seu olhar como
que era descontínuo, sem qualquer
fixação ou nexo. Ansiava apenas por
chegar, porque chegar significaria conhecer. De longe, avistou um carro escuro, ao lado
estava o diretor, com uma pasta preta.
Pagou o táxi, desceu, com a mala, encaminhou-se para o homem da pasta
preta.
- Meu filho, desejo-lhe o maior sucesso na missão – disse o diretor. Saiba que seu sucesso será o nosso sucesso e,
então, poderemos competir com as grandes empresas internacionais. Esse momento
é muito importante para mim, para você, para nossa firma. Cuide-se bem, Alan!
E prosseguiu:
- Não lhe pedirei mais nada. Fará o que entender melhor para
você e para nós. Pode entrar, agora, no
carro. O motorista já o espera. Boa viagem!
Abraçaram-se e, ainda emocionado pela confiança que lhe fora depositada,
Alan fez menção de entrar no carro, mas se deteve. Acompanhou com o olhar o diretor
que, tendo também entrado em seu próprio carro, partiu em seguida, deixando uma
aragem úmida que Alan recordou, certa vez, já ter sentido numa ocasião em que
estivera, menino, de férias no campo, sentindo aquela mesma aragem e, ao olhar
ao redor, vendo que as árvores se cobriam
de pequeninos fios brancos, parecendo pedaços de renda recobrindo a
folhagem. Explicaram-lhe, um dia, que se
tratava de uma movimentação coletiva de aranhas, em certa época do ano, e que,
dependendo do lugar em que apareciam esses filamentos, as teias das aranhas
eram conhecidas como fios da virgem ou babas do diabo. Quantas recordações
agora o rodeavam, com os perfumes silvestres de sua infância, e uma saudade imensa desse passado o envolveu
por completo. Viu-se criança, correndo pelos campos, a acompanhar o voo dos
pássaros. Outras crianças, que ele não conseguia agora identificar, também
corriam, em sua memória, livres e contentes (aquela aragem, seria a madalena de
Proust, tantas vezes citada e repetida?), e ele reviu, num segundo, os dias, as
horas e os minutos que tinham formado sua existência até então. Transbordando como
numa cascata, as recordações incontidas irrompiam e gritavam: Ah, pequenos fios brancos, quase invisíveis,
venham povoar novamente a minha vida!
Entrou no carro, sentou-se atrás, não por vaidade, mas para ter maior conforto
numa viagem que pressupunha cansativa.
Na frente, já estava o motorista.
E, entre a lembrança dos fios da virgem
ou babas do diabo, sem que tivesse tido
tempo para dizer sequer um cumprimento, ouviu uma voz, que se irradiou antes de
o carro iniciar a partida, era o
motorista, que se apresentava, com um sorriso estampado no rosto:
- Eu sou Alan, seu motorista, doutor,
conte comigo. Faremos uma longa viagem!
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