AS
BABAS DO DIABO, conto de Julio Cortázar.
De Elsa Caravana Guelman
Acompanhar os
passos aleatórios do fotógrafo Roberto-Michel do seu apartamento, número 11 da
rua Monsieur-le-Prince até a Ilha de Saint-Louis, em que ele se deixa levar
pelo fascínio secreto das ruas como um verdadeiro e insaciável flâneur, até então, sem nenhuma intenção do que um
simples caminhar, não nos leva a adivinhar o emaranhado dramático que ele
enfrentaria, naquela manhã amena e um pouco ensolarada, banhada pelo vento, de um domingo de outubro, usando sua máquina
fotográfica para registrar uma cena insólita na ponta da Ilha de Saint-Louis,
quando pretendia tirar fotos da Conciergerie
e da Saint-Chapelle.
Trata-se
do conto “As babas do diabo”( Las babas del diablo) de Julio Cortázar, que
oscila entre o real e o fantástico,
proporcionado por uma visão ambígua que é sustentada pela conceituação alegórica e simbólica na narrativa,
contada, alternadamente, na primeira
pessoa, critério subjetivo, e na terceira
pessoa, critério objetivo, deixando o leitor um tanto desnorteado e confuso, obrigando-o a buscar no duplo sentido dos
itinerários a coerência da história apresentada pela fotografia e pelo relato.
Ao chegar no término do seu destino, nessa
manhã, na ponta da ilha, depois de passar pelo Quai de Bourbon, onde existe uma
pracinha romântica “que dá o peito inteiro ao rio e ao céu”, o fotógrafo se instala no parapeito e, ainda,
muito distraído, acende um cigarro e
deixa seu olhar vagar por todo aquele espaço aberto, em direção à luz do sol
(saíra de casa desejando encontrar um sol radiante), quando, de repente, avista um jovem, um
“muchachito”, acompanhado de uma mulher loira, muito mais velha do que ele,
podendo ser sua mãe. A diferença de
idade o atraiu, de imediato, naquele casal, notando um jeito muito estranho e
envergonhado no jovem, tentando se esquivar, enquanto a mulher, de olhos negros, num
contraste com sua pele branca, delgada
e esbelta, insinuava-se e procurava atraí-lo, como uma ave de rapina, em
atitudes cada vez mais suspeitas,
tentando colocar o rapazinho entre ela e o parapeito, esmagando-o.
Michel
acabava de descobrir uma pessoa dentro de um automóvel, no local da cena. “Gostaria
de saber o que pensava o homem do chapéu cinza
sentado ao volante do automóvel no cais que levava à passarela, e que
lia o jornal ou dormia”. Nem cogitou dele para sua foto, era um simples detalhe
no espaço que se descortinava à sua frente.
O
fotógrafo levantou a câmara e fingiu
estudar uma posição que não incluía os dois, mas ficou na espreita para os
surpreender num gesto revelador. E, quando a mulher tentava subjugar os
últimos restos de liberdade do menino,
numa lenta tortura deliciosa, Roberto-Michel, numa sequência, já fora dali, os
imaginou aos beijos brincalhões até ele tentar
despi-la numa cama de edredom lilás. O menino, adolescente, vivia uma
transformação física e mental. Dava para sentir a sua ansiedade diante da
insinuação da mulher. Armou tudo no
visor, compreendendo a árvore, o parapeito e o os raios do sol das onze horas e
tirou a foto. Os dois, surpreendidos, olharam o fotógrafo, sabendo-se
fotografados em cena chocante.
A
mulher ficou muito irritada , exigindo que lhe entregasse o rolo do filme,
argumentando que ninguém pode tirar foto sem permissão. Sua voz seca e clara,
com sotaque de Paris, subia de cor e de tom. Enquanto isso, o menino caia na
realidade, dava meia-volta e começava a correr, passando ao lado de um
automóvel e perdendo-se como um “fio da Virgem no ar da manhã”. O próprio autor
adverte que os fios da Virgem também são chamados de babas do diabo.
Em
meio à confusão, ouviu-se a porta do
automóvel batendo. “O homem de chapéu cinza estava ali, olhando para nós. Só
então compreendi que ele desempenhava um papel na comédia.” Estavam juntos na
operacão que visava a aprisionar o menino se o fotógrafo não tivesse aparecido
e não os fotografasse, desarmando-os.
O
homem, levando na mão o jornal que fingia ler, caminhava cautelosamente e cuidadosamente, ostentando sapatos de verniz, de sola fina, na direção da mulher loira que discutia com o
fotógrafo e, com quem ele, agora, vindo em sua defesa, demonstrava íntima ligação.
Aquele homem
estranho , de feição repugnante era o
mentor diabólico daquele plano de corrupção do menor , daí a expressão babas do diabo. Aquele homem
não tinha aparência humana, ocultando algo diabólico. O fotógrafo riu na cara deles e começou a andar, fugindo
do local um pouco mais devagar que o garoto.
Quando o fotógrafo olhou para trás, viu que eles não
se moviam e que o homem havia deixado o jornal cair.
O
que existe na primeira parte da trama é a preocupação com a fotografia, de como
e onde tirar uma foto. A segunda parte da trama gira em torno da revelação das
fotos tiradas pelo fotógrafo naquela manhã, já tendo ocorrido vários dias, num quarto de um quinto andar. A única foto que lhe interessava era a instantânea do casal na ponta da ilha,
revelou-a e a ampliou, pregando a
ampliação dessa foto numa parede do
quarto para olhar e recordar a cena petrificada da mulher, do menino, da
árvore, do céu azul, do parapeito, em que nuvens e pedras se confundiam numa só
matéria.
Olhando
a ampliação, sentia-se satisfeito por ter ajudado o menino a escapar a tempo de
uma armadilha, embora sentisse que sua partida, como fotógrafo
intrometido, não tinha sido brilhante,
sem sequer aludir aos privilégios, prerrogativas e direitos do cidadão.
Primeiro
foi um tremor quase furtivo das folhas da árvore naquela ampliação de oitenta
por setenta, depois foram as mãos da mulher, fechando devagar, dedo a dedo. O garoto, parecendo um
prisioneiro, abaixara a cabeça e a mulher falava junto ao seu ouvido, enquanto com
a mão acariciava sua face. O que a mulher lhe explicava fazia-o olhar para o
automóvel com o homem de chapéu cinza, descartado da foto e refletido nos olhos
do garoto. Viu o homem sair do carro e parar perto deles, “não era o primeiro
que mandava uma mulher na frente para trazer-lhe os prisioneiros atados com
flores”. Como aceitar que a cena que
aparecia na ampliação, que ele fotografara, congelando tudo naquele momento, começasse a se mover, num desenvolvimento
totalmente natural dentro daquele quarto, iniciado com o estremecimento das
folhas da árvore? A narrativa enveredou,
então, pelos labirintos do fantástico, onde o petrificado adquire vida e
movimento.
O
resto imaginou diante da ampliação: “o automóvel, uma casa qualquer, as
bebidas, as lâminas excitantes, as
lágrimas tarde demais, o despertar
no inferno”. E ele não podia fazer mais nada porque a fotografia já havia sido
tirada. Enquanto eles estavam livres, vivos no rumo de um futuro, ele, o
fotógrafo, era prisioneiro de um outro
tempo, num espaço restrito a um quarto de um quinto andar, enquanto os outros
estavam na Ilha de Saint-Louis entre as árvores e os pássaros. Precisava gritar
ou fazer algo que desmontasse “os andaimes de baba e perfume”. Gritou
intensamente, um grito de terror, tentativa de uma nova intervenção do fotógrafo, que o
aproximou do primeiro plano da imagem, sem perder a mulher de vista e do homem
que o olhava raivoso com os buracos negros
que tinha no lugar dos olhos, quando um pássaro fora de foco passa num
voo diante da imagem e, então, o menino reage e consegue escapar deles, fugindo com os cabelos ao
vento, como uma jovem aranha que é levada em suas descobertas, “aprendendo enfim a voar sobre a ilha, a
chegar à passarela, a se virar para a cidade”, deixando o fotógrafo sozinho,
diante do homem e da mulher, sequiosos de vingança.
O
homem, com sua língua negra, levantava
lentamente a mão, aproximando-as do primeiro plano, “um instante ainda em
perfeito foco, e depois ele todo um vulto que apagava a ilha, a árvore, e eu
fechei os olhos e não quis olhar mais, e
cobri o rosto e desandei a chorar feito um idiota”, enquanto passava uma grande
nuvem branca. E, ao abrir os olhos e secá-los com os dedos, Michel viu: “o céu
limpo, e depois uma nuvem que entrava pela esquerda, passeava lentamente sua
graça e se perdia pela direita”.
O
que acontece, realmente, ao fotógrafo? Na segunda parte da narrativa, toda ela
impregnada pelo fantástico ao introduzir vida e movimento à ampliação da foto, tirada no domingo, e revelada, vários dias
depois, num quarto de um quinto andar,
mostra o movimento das mãos do homem que se aproxima do primeiro plano, após a
segunda fuga do menino. Na primeira
parte da narrativa é dito que, ao se
aproximar de Michel, na Ilha,o homem deixa cair o jornal. Por que deixou cair o
jornal? O que ocuparia, então, sua mão ? Seria o assassinato do fotógrafo, em
plena ilha, quando se recusou a entregar o rolo do filme? Entretanto, em nenhuma das narrativas se diz
claramente, apesar de sutilmente sugerido, que ele foi assassinado; na segunda
ficou evidenciado que, ao fechar os olhos, ele não quer ver mais, quando passa,
então, uma grande nuvem branca e, quando
os abre, ele vê o céu limpo e depois
uma nuvem que entrava pela direita, dava
um passeio e se perdia pela esquerda; na primeira, na descrição da cena final,
o fotógrafo, imprensado pelo homem e pela mulher, num triângulo insuportável,
riu na cara deles e começou a andar um pouco mais devagar que o menino ao fugir e, ao se virar para olhar para eles, notou que
não se moviam, mas o homem havia deixado cair o jornal.
Há,
para contar a história do fotógrafo Michel,
as expressões metafóricas “hilos de la Virgen e babas del diablo” , que,
apesar de sinônimos, pelo autor,
representam valores contraditórios. A metáfora “fios da Virgem”
significa o vôo ínicial das jovens
aranhas nos campos, ainda inseguras,
como se estivessem numa puberdade e fossem jogadas no mundo, num
desenvolvimento natural até atingir a
maturidade. Em sua passagem pelos campos,no mês de outubro, elas deixam nas
árvores uma infinidade de fios brancos
que, muitas vezes, são levados pelo vento e se espalham pela natureza. Esta
metáfora foi, igualmente, utilizada por Cortázar no poema “Réquiem”, em
homenagem a Bosie, amante de Oscar Wilde.
Ao
descrever a fuga do menino, Cortázar pensa
na aranha jovem, em sua fuga pelo campo, arriscando-se quando é levada
pelo vento, ao afirmar “o coitado achando que caminhava e na realidade fugindo
às carreiras, passando ao lado do automóvel, perdendo-se como um fio da Virgem
no ar da manhã”. O menino, na puberdade, arriscava-se, como a aranha, no seu
vôo inicial, quase interrompendo seu caminhar à maturidade, naquela manhã. E,
logo a seguir. “Mas os fios da Virgem também são chamados de babas do diabo”,
referindo-se ao homem de chapéu cinza
que saltara do carro e enfrentava o fotógrafo, outra metáfora que enriquece a
narrativa, pois, além de simbolizar,
também, em diversas regiões, o aparecimento avassalador e dominante dos fios brancos nos campos em épocas de flagelos,
misérias e desgraças, por obra de um ser maligno, um verdadeiro arquétipo do mal, ganha o título do conto de Julio Cortázar.