Existe obra de arte perfeita? Alguma obra artística atingiu à sua plenitude, atingiu à perfeição? Para os românticos de Iéna, não. Para eles, a obra de arte é incompleta e, assim, não conseguirá ser compreendida, podendo ser apenas desfrutada. Toda obra, pois, é incompleta diante do absoluto da arte, sendo, no mesmo sentido, incompleta diante de sua própria Idéia absoluta. Para Novalis, uma crítica completadora obedeceria a princípios que exporiam o caráter puro e completo da obra de arte individual, fornecendo-nos o Ideal da obra de arte e não a obra de arte efetiva. Ele, por sua vez, não acreditava que pudesse existir nenhum modelo total dessa obra de arte. Encontram-se, em algumas críticas, vestígios claros, mas, para a efetivação desse modelo, é necessário que haja uma cabeça “na qual o espírito poético e o espírito filosófico tenham se penetrado no todo de sua plenitude”.
O Romantismo Alemão de Iéna foi classificado por Walter Benjamin como messiânico, pois o messianismo, eivado de religião e história, seria o coração desse movimento. Considerava-se o mundo messiânico de total e integral atualidade e, somente nele, se poderia sentir a história universal. Comentando o movimento, Benjamin adiantou: “A posse integral do passado está reservada a uma humanidade restituída e salva. Apenas esta sociedade restabelecida poderá evocar não importa qual instante do seu passado.”
Entendiam os românticos que o misticismo, vinculado a uma fantasia romântica, poderia suscitar algo excitante num símbolo de mistério. Só com uma terminologia mística é que se poderia chegar a uma revelação ou a uma iluminação. Para os primeiros românticos, essa revelação se daria pelo “Witz” que, no sentido místico, teria o efeito de um relâmpago (“é a aparição, o relâmpago externo da fantasia”). Nesse sentido místico revelador, Walter Benjamin assim o definiu, após entendê-lo como uma síntese (tudo a mesma coisa): "um contexto medial contínuo, de um medium-de-reflexão dos conceitos, isto é, um conceito místico individual com contextos sistemáticos incluídos. No Witz este medium conceitual aparece, como termo místico, como um relâmpago". Ainda sobre o Witz, pode-se dizer que, para os românticos, ele seria a ordem oculta presente nas palavras, promovendo uma compreensão maior de si mesmo do que a ordem comunicativa. Seria também designado como um fenômeno sincrônico que é a conexão. O Witz está relacionado ao conceito de ironia, da ironia romântica, é o caso. Além de relâmpago, ele pode ser entendido ainda como aparição imediata, faculdade profética e perspicácia.
Para Katia Muricy: "A tarefa da filosofia é a de constituir uma linguagem verdadeiramente filosófica, uma arte combinatória de palavras." Essa "arte combinatória" é o Witz. Ainda segundo ela, "o Witz põe em cena a afinidade secreta entre as palavras filosóficas". E cita Schlegel: "Frequentemente as palavras se compreendem melhor a si mesmas do que aqueles que as usam." E complementa: "Muitos achados do Witz são como reencontros, depois de longa separação de dois pensamentos amigos." Esse "reencontro depois de longa separação" é a base do conceito de conexão, caro a Benjamin e a Jung, e que pressupõe fragmento, sincronicidade, afinidade e configuração. Essa configuração é o que Leibniz, citado por Jung, chamou de "simulacra" (imagens desprovidas de sujeito).
A ironia dos românticos deve ser entendida como uma forma de autoconhecimento, pressupondo a distância da realidade externa e a busca de uma liberdade de conhecimento. A ironia, como a crítica, deve ser exposta na reflexão. Na explicação de Benjamin, entende-se que o caráter reflexivo da ironia é particularmente claro nos dramas de Tieck. Como se sabe, em todas as comédias literárias os espectadores, o autor e o pessoal do teatro também tomam parte na ação. Pulver, numa passagem, demonstra uma reflexão quádrupla. O “prazer de quem usufrui” define o primeiro reflexo, o “espectador na cena”o segundo; então, “o ator começa (a refletir) sobre si mesmo em sua qualidade de mimo”, e, por último, ele “mergulha na autocontemplação irônica”.
O conceito de reflexão apareceu por volta de 1804 a 1806 com as lições de Schlegel, como tipo de pensamento sem fim, pois deve-se entender que o pensamento com fim não encerra reflexão. A infinitude do processo de reflexão permite que se faça de cada reflexão anterior objeto de nova reflexão. A reflexão constitui o absoluto e ela o institui como um médium. Agora, se, por um lado, a reflexão é um medium, por outro lado, o medium é a reflexão, que se move nele e se movimenta, como o absoluto, em si mesma, levando Novalis a afirmar que a reflexão é, ao mesmo tempo, “o início de uma verdadeira autopenetração do espírito que nunca acaba”, e concluir que “a reflexão é a forma do pensar, este logicamente, por mais que ela se reflita no mesmo, não é possível sem ela. Apenas com a reflexão nasce o pensamento, sobre o qual se reflete”.
A intensificação da consciência na crítica, para Walter Benjamin, é infinita, porque a crítica é o medium no qual “a limitação da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmente, é transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto medium-de-reflexão”. Para Schlegel a reflexão cria o absoluto e ela o cria como um medium. E esse absoluto seria entendido como o medium-de-reflexão. O tradutor, no rodapé, complementa: “ por um lado, a reflexão mesma é um medium – graças ao seu constante conectar; por outro lado, o medium em questão é tal que a reflexão move-se nele – pois essa, como o absoluto, movimenta-se em si mesma.”
Como deverá proceder, então, o leitor diante de uma obra artística? O verdadeiro leitor se transformará num autor ampliado. Ele estará, desse modo, numa instância superior, como quem recebe da instância inferior, pré-elaborado, o objeto para seu conhecimento e julgament. Se o leitor elaborar o livro segundo sua idéia dará, consequentemente, margem a que outro leitor apure ainda mais o que foi feito, e assim sucessivamente, até o infinito. Walter Benjamin complementou essa argumentação de Novalis: “...a obra de arte singular deve ser dissolvida no medium da arte, mas este processo só pode ser representado de maneira coerente através de uma pluralidade de críticos que se substituem, se estes forem não intelectos empíricos, mas graus de reflexão personificados."
Para que uma obra se torne verdadeiramente absoluta, cumpre descobrir os planos ocultos que a corporificam ,executando suas veladas intenções, e, no mesmo sentido da obra, estabelecer sua reflexão para um caminhar bem mais longe dela mesma.
Os românticos criaram a crítica poética, superando a diferença entre crítica e poesia. Afirmaram que “A poesia só pode ser criticada pela poesia. Um juízo de arte que não é ao mesmo tempo uma obra de arte, (...) como exposição de uma impressão necessária em seu devir (ou seja, como desdobramento da reflexão imanente à obra de arte), (...) não possui nenhum direito de cidadania no reino da arte”. Entende-se, pois, que essa crítica poética completará a obra, rejuvenescendo-a ao configurá-la novamente. Explica o tradutor, no rodapé, que esta crítica poética só pode ser coisa de “poetas e artistas”, como a do próprio Schlegel.
A crítica de arte inclui, necessariamente, o conhecimento de seu objeto para sua fundamentação numa perpectiva precisa e coerente, como salientou Walter Benjamin: “A teoria do conhecimento do objeto é determinada pelo desdobramento do conceito de reflexão em seu significado para o objeto.O objeto, assim como tudo que é efetivo, repousa no medium-de-reflexão. O medium-de-reflexão é, no entanto, de um ponto de vista metodológico ou gnosiológico, o medium do pensar, pois ele é formado segundo o esquema da reflexão do pensar, da reflexão canônica. Esta reflexão do pensar torna-se reflexão canônica porque nela estão cunhados da maneira mais evidente os dois momentos básicos de toda reflexão: auto-atividade e conhecimento. Pois nela é refletido, pensado, aquilo que com certeza é a única coisa que pode refletir: o pensar. Ele é pensado então como auto-ativo. E porque ele é pensado como refletindo a si mesmo, é pensado como conhecendo imediatamente a si mesmo. Neste conhecimento do pensar através de si mesmo, como já observamos, está encerrado todo o conhecimento em geral.”
É sabido que todo conhecimento parte apenas de si-mesmo. Pensamentos estão plenos de pensamentos, as funções das visões são os olhos. O entendimento apenas entendimento, almas almas, razão razão, sentidos sentidos. Assim, cada essência só pode conhecer a si mesma, conhece aquilo que lhe é igual. As coisas também podem estender seu conhecimento na reflexão, irradiando sobre as essências seu autoconhecimento originário, quando aumenta a reflexão em si mesma. A coisa ou a essência se limita a um mero ser-conhecido apenas através de si. E só no medium-de-reflexão a coisa e a essência se integram.
No tocante ao objeto que é observado, Walter Benjamin salientou: “Observar uma coisa significa apenas impeli-la para seu conhecimento. Que o experimento tenha sucesso, isto depende de quanto o sujeito do experimento está em condições de, via aumento da própria consciência, via observação mágica, como se poderia dizer, se aproximar do objeto e, finalmente,incluí-lo em si. Neste sentido, Novalis fala do autêntico sujeito do experimento: A natureza “revela-se tanto mais perfeitamente através dele quanto mais sua constituição é harmônica com ela”; o experimento é “o simples alargamento, divisão, multiplicação, reforço do objeto”.
O que se espera, nesse sentido, de um livro que é publicado e está ao alcance de todos ? Que ele seja, de acordo com a sistemática de Iéna, desfrutado pelos leitores ou que siga seu caminho pela reflexão infinita deles, na sistemática do medium-de-reflexão ? A leitura de um livro de Walter Benjamin, por exemplo, exigirá uma participação ativa inteligente de quem o lerá, não caindo nunca na categoria de “desfrutável”.
Obra consultada:
"O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão", de Walter Benjamin (Tradução de Márcio Seligmann-Silva, Editora Iluminuras Ltda., 3a. edição)
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