sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

CORNIGLIA - CINQUE TERRE - ITÁLIA



CORNIGLIA - CINQUE TERRE  - ITÁLIA 



É mencionada em uma passagem do Decamerão de Boccaccio, exatamente na novela que narra as desventuras do abade de Cluny: feito prisioneiro de Ghino di Tacco e sofrendo de doença do estômago, o prelado foi curado pelo seu carcereiro com um remédio que não seria desagradável a muitos: duas fatias de pão, servidas numa travessa branquíssima e acompanhada de um bom copo de vinho Vernaccia de Corrniglia.
A origem da localidade remonta à época romana; o nome da vila deriva provavelmente da "Gens Cornelia", família proprietária do território. Durante a idade média, analogamente às vilas vizinhas, ficou sob domínio dos condes de Lavagna, dos senhores de Carpena, de Luni. Em 1254, o papa Inocêncio IV cedeu sua posse a Nicolò Fieschi, até quando, em 1276, o poder passou a Gênova
Corniglia está em posição central em relação às outras localidades de Cinque Terre, situada a oeste da sede comunal, Vernazza (com a qual se une por um caminho construído na costa entre o topo e o mar) e de Monterosso, e a leste de Manarola e Riomaggiore. Se diferencia das outras localidades de Cinque Terre pois é a única que não está diretamente em frente ao mar, mas se encontra sobre um promontório de cerca de cem metros de altura, circundado de vinhedos plantados sobre característicos terraços no lado voltado para o mar. Para chegar a Corniglia é necessário subir una longa escada chamada Lardarina, constituída de 33 rampas com 377 degraus ou percorrer a estrada que a liga à estação ferroviária.”












                                  CORNIGLIA: CINQUE TERRE - ITÁLIA


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012


OS TRABALHADORES DO MAR -  Victor Hugo.   Tradução de Machado de Assis.


Victor Hugo, em seu romance “Os trabalhadores do mar”,  diz que quando uma rocha é próxima da costa ela pode ser visitada pelos homens, sem problemas, com facilidade. Porém quando essa rocha  fica em alto mar, não há como visitá-la.  E isso é compreensível porque não há nada que interesse ao homem para ser visto. Não há árvores, nem animais, nem fontes. É uma nudeza  numa solidão. É uma rocha, simplesmente uma rocha, com declives fora da água e pontas debaixo da água.  Só há o mar. O mar tem ali o seu domínio absoluto, sem  nenhuma conotação terrestre.
Assim a define “ Nessa montanha, que lhe pertence o mar faz para si antros,  santuários,  palácios; tem uma vegetação hedionda e esplêndida; compõe-se  de ervas flutuantes que mordem e monstros que se  enraízam ; mete na sombra da água essa horrível magnificência. O mar desenvolve ali  a gosto seu lado  misterioso e inacessível ao homem. Depõe ali as secreções vivas e  horríveis. Acha-se ali todo o ignorado do mar.”
Para o autor, os elementos que compõem o rochedo, formam verdadeiras construções, vendo um verdadeiro estilo arquitetônico nessa formação oceânica, que se lhe apresentam com “o embaraçado do pólipo,  a sublimidade da catedral,  a extravagância do pagode, a amplidão  da montanha, a delicadeza da jóia, o horror do sepulcro. Tem alvéolos como uma colméia, latíbulos como pátio de bichos, túneis como  um combro de toupeiras, cárceres  como uma bastilha, emboscadas como um campo. Têm portas , mas tapadas,  colunas, mas truncadas, torres, mas inclinadas, pontes, mas despedaçadas.”
Continua : “ A figura arquitetural transforma, desconcerta-se , afirma  e nega a estática, quebra-se, detém-se, começa em arquivolta, acaba em arquitrave;  seixo sobre seixo. Terríveis  abóbodas pendentes ameaçam cair, mas não caem. Ninguém sabe como se seguram esses edifícios vertiginosos. Declives, lacunas,  suspensões insensatas; desconhece-se  a lei desse babelismo.”
O autor considera o rochedo  Douvres como uma verdadeira obra prima da arquitetura oceânica. Sua construção  e aperfeiçoamento obedeceu aos ímpetos do mar, tornando-o hediondo, pérfido, obsscuro, cheio de cavas. Tinha um sistema  de veias  que eram fendas submarinas, ramificando-se  em profundezas insondáveis.  Muitos orifícios desse rasgão inextrincável ficavam a seco nas vazantes.
Acentua : “Há quarenta anos, duas rochas  de forma extraordinária assinalavam de longe o rochedo Douvres. Eram duas pontas verticais agudas e recurvadas, tocando-se quase no cume. Parecia  ver-se irrompendo do mar dois dentes de um elefante engolido. Mas eram dentes de tamanhos de  que só poderiam  pertencer a elefantes de tamanhos de uma montanha.  Essas duas torres naturais da obscura cidade dos monstros não deixavam entre si  mais que uma passagem estreita onde a vaga se  atirava. Essa passagem , tortuosa e de alguns côvados de comprimento, parecia um pedaço de rua entre duas paredes. A essas duas rochas gêmeas  chamava-se  as  duas Douvres.  Havia a grande Douvre e a pequena Douvre;  uma tinha 60 pés de altura e outra tinha 40. O vaivém  das ondas  fez na  base  dessas torres um aspecto da serra, e o violento equinócio de 26 de outubro de 1859 derrubou uma delas. A que ficou, a pequena, está mutilada e gasta.  Um dos mais estranhos rochedos do grupo Douvres chama-se o Homem.  Esse ainda existe.  No século passado  alguns pescadores, perdidos naqueles rochedos, acharam um cadáver .  Ao pé do cadáver havia uma porção  de conchas vazias. Tinha  naufragado ali um homem, refugiou-se naqueles rochedos, alimentou-se algum tempo de conchas, até que morreu. Veio daí chamar-se Homem ao rochedo. São singulares as solidões da água.  É o túmulo e o silêncio. O que aí se faz  já nada tem com o gênero humano.  É a utilidade desconhecida. Tal é o isolamento do rochedo Douvres. Em derredor, a perder de vista, o imenso tormento das vagas.”

O  romance  “Os Trabalhadores do Mar” narra a vida de um marinheiro,  Gilliatt, que, apaixonado pela jovem Déruchette, trava, em um local considerado extremamente perigoso por navegadores de todo o mundo (o rochedo Douvres), verdadeira luta contra as poderosas forças da natureza, ao tentar impedir que a máquina essencial de uma embarcação a vapor se perca  no fundo do mar.
O escritor dedica seu livro “ ao rochedo de hospitalidade e de liberdade, a este canto da velha terra normanda onde vive o nobre e pequeno povo do mar, à ilha de Guernesey (ou Guernsey), severa e branda, meu atual asilo, meu provável túmulo.”.

O polvo (aquarela de Victor Hugo) (1866)
 O editor, à guisa de apresentação, escreve na primeira página:
“A religião, a sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três lutas são ao mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o templo; precisa criar, daí a cidade; precisa viver, daí a charrua e o navio. Mas há três guerras nessas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da vida. O homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma superstição, sob a forma preconceito e sob a forma elemento. Tríplice 'ananke' pesa sobre nós, o 'ananke' dos dogmas, o 'ananke' das leis, o 'ananke' das coisas. Na Notre-Dame de Paris, o autor denunciou o primeiro; em 'Os Miseráveis', mostrou o segundo; neste livro indica o terceiro. A essas três fatalidades que envolvem o homem, junta-se a fatalidade interior, o 'ananke' supremo, o coração humano. (Obs.: 'ananke': palavra grega para fatalidade).” (Wikipedia).
É belíssima a descrição de um edifício debaixo do mar:
“A grota, donde ele saíra, ia ter a mesma saliência estreita e viscosa, espécie de vulcão na muralha a pique. Gilliat  encostou-se à muralha  e olhou.
Estava numa grande cava. Tinha acima de si  alguma coisa semelhante ao interior de um crânio  dissecado.  E parecia dissecado ao fresco. As nervuras gotejantes das estrias do rochedo imitavam  na abóbada as fibras e as suturas  dentadas de uma caixa óssea. Por teto, a pedra;  por assoalho, o mar, as on das apertadas entre as quatro paredes da grota pareciam vastos ladrilhos flutuantes. A grota estava fechada por todos os lados.  Nenhuma trapeira, nenhum respiradouro, nenhuma fenda na parede, nenhuma racha na abóboda. A luz vinha de baixo, através da água.  Era um resplendor tenebroso.” (...) “Gilliat  via diante dele, debaixo da vaga, uma espécie de arcada afogada.  Essa arcada, ogiva  natural, trabalhada pela onda,  era brilhante  entre as duas colunas profundas e negras. Era por aquele pórtico submergido que entrava na caverna a  claridade do alto mar. Luz estranha que vinha por um buraco na água.
Essa claridade esvazia-se debaixo da água como um largo  leque e repercutia no rochedo. Os raios  retilíneos, cortados em longas fitas retas,  sobree a opacidade do fundo, clareando ou escurecendo de uma anfratuosidade a outra, imitavam  interposições de lâminas de vidro. Havia luz, mas luz desconhecida. Já não era a nossa luz. Podia-se crer que se estava em outro planeta. A luz era um enigma; dissera-se o verde clarão da pupila de uma esfinge. A cava figurava  o interior de uma cabeça enorme; a esplêndida abóboda era o crânio, e a arcada era a boca; não havia buraco dos olhos. A boca engolindo e vomitando o fluxo e o refluxo, aberta em  pleno meio-dia exterior, bebia a luz e vomitava o amargor.
A abóboda, com seus lóbulos quase cerebrais e as suas ramificações semelhantes a nervos, tinha um fraco reflexo de  crisópraso. O chamalote da onda, reverberado no teto, decompunha-se e recompunha-se constantemente, alargando e estreitando as suas rodas de ouro com um movimento de dança misteriosa.  Saía dali uma impressão espectral; o espírito podia perguntar que presa ou que espera era aquela que fazia tão alegremente aquele magnífico filete de fogo vivo.  Nos relevos da abóboda e e nas asperidades da rocha pendiam longas e finas vegetações banhando provavelmente as raízes através do granito em alguma toalha de água superior, e desbagando, nas pontas, uma  gota de água, uma pérola. Essas pérolas caiam no golfão com um pequeno rumor, Todo esse conjunto era inexprimível. Não se podia imaginar nada mais lindo nem mais lúgubre.
Era o palácio da Morte, alegre.” 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012


A receita para Sachertorte
Ingredientes:
200 g de chocolate escuro, cortadas ou quebradas em pequenos pedaços,
8 gemas de ovos
120 g de manteiga derretida
1 colher de chá de essência de baunilha
10 ovos brancos
pitada de sal
180 g de açúcar
120 g de farinha peneirada
1/3 tigela de geléia de damasco peneirada ou chinês.

Glacé
90 gramas de chocolate de cozimento sem açúcar, picados ou cortados em pedaços pequenos
1/4 litro de natas
240 g de açúcar
1 colher de chá de glicose de cristal
1 ovo
1 extrato de baunilha.

Pré-aqueça o forno a 180 graus. Espalhe bolo de manteiga dois moldes de 22 cm de diâmetro e 4 cm de profundidade, e forre o fundo com papel pergaminho arruelas; polvilhe farinha recente e remover o excesso. Derreta o chocolate em banho-maria, mexendo de vez em quando com uma colher de pau.
Em seguida, bata as gemas com um garfo em uma tigela e adicione o chocolate, manteiga e essência de baunilha.
Bata as claras com o sal até que a espuma que, em seguida, adicione o açúcar, 1 colher de sopa de cada vez, continuando a bater até formar picos os brancos empresa bastante neve quando você levanta o batedor fora da bacia.
Mix cerca de 1/3 das claras batidas à mistura de chocolate, em seguida, despeje a mistura de chocolate aos brancos restantes. Polvilhe a superfície da farinha. Com uma espátula de borracha, levante a mistura em vez de virada, e mexa até que não há qualquer vestígio de que o branco. Tenha cuidado para não agitar demasiado longo.
Despeje essa massa em panelas, dividindo de forma igual. Cozinhe 25 a 30 minutos ou até a massa folhada e seco e que um pedaço de pau, mergulhou no meio saia limpo. Retire do forno. Separar as bordas das paredes dos moldes bolos, utilizando uma lâmina de faca. inverter em uma gradinha. Desenforme. Remover os discos de papel. Cool.
Cobertura: Em uma panela pequena e pesada, combinar o cristal de chocolate, creme, açúcar e glicose. Cozinhe em fogo baixo, mexendo sempre com uma colher de pau, até que o açúcar eo chocolate são derretidos. Em seguida, em fogo médio, cozinhe por 5 minutos sem mexer até que uma crosta de gelo ou pouco, jogado em um copo de água fria, forma uma bola macia.
Em uma tigela, bata ligeiramente os ovos, adicione 3 colheres de sopa da mistura de chocolate. Misturar, em seguida, despejar o conteúdo do recipiente dentro da panela, onde o restante do chocolate.
Em seguida, misture vigorosamente. Em fogo baixo, cozinhe, continuando a mexer até que a mistura bem com uma toalha de mesa colher, anexando. retire do fogo. Adicione a essência de baunilha. Deixe esfriar 2 camadas do bolo são completamente resfriado, escovar a um deles com geléia de damasco. Colocar a outra acima. Coloque o rack no qual são colocadas as duas camadas do bolo acima de uma panela rocambole. Levante a frigideira com o esmalte a 5 cm acima do bolo e despeje sobre esmaltes e distribuir mais uniformemente possível. Endireitar a superfície da cobertura, com uma espátula de metal. E deixe descansar até que o esmalte pára de fluir, então, com a ajuda de duas espátulas de metal, coloque-o sobre um prato de servir e colocar na geladeira 3 horas, para que a cobertura endureça. Retirar da geladeira 30 minutos antes de servir.

domingo, 18 de novembro de 2012

O Pequeno Mundo de Marcel Proust de ELSA CARAVANA GUELMAN


O PEQUENO MUNDO DE MARCEL PROUST
De Elsa Caravana Guelman



         A literatura de Marcel  Proust é de uma riqueza inimaginável pelas significações  mágicas e simbólicas que se entrelaçam entre as palavras em sua narrativa que,  de  início,   se apresenta numa aparência e sequência  de leveza na condução dos acontecimentos que vão surgindo no crescimento e na bifurcação de suas longas frases quando,   então, crescem emocionalmente e, numa transformação, nos conduzem a um verdadeiro labirinto.  E essas infiltrações são invisíveis numa primeira vista, não aparecem,  como se dormissem dentro das palavras, necessitando de uma ordem do leitor para o seu despertar ou, como sonâmbulas, necessitam de quem as despertem. São muitos também os signos que fogem das coisas onde estão como se escapassem de vasos fechados e se identificam em verdadeiros círculos, cruzando-se, inicialmente, com  mundanismo, amor, sensibilidade, antes de  convergirem, finalmente,  todos esses signos,  para a vivência absoluta da arte.  Se persistirmos na descoberta desses signos descobriremos que   as frases desabrocham como flores em dia de sol nos jardins e as sentiremos revividas e incorporadas de novas sensações, quando despertarão para uma vida própria no enriquecimento do texto. As palavras, de estáticas, passam a ser dinâmicas e, recriadas em seu novo reino, se ajustam em harmonia ao dar seguimento às novas visões do pensamento. Entendemos, então, que, num processo duplo, o leitor e as palavras do escritor se encontram e se completam verdadeiramente para uma viagem de encantamento nos domínios da escrita. É o que acontece quando se lê Marcel Proust.  Abrimos o livro e começamos a ler: as palavras parecem nos esperar para esta viagem. Mas, na verdade, querem é ser decifradas, pois muitas delas não estão no texto com o seu sentido lógico, do dicionário, não. Quando encontramos a primeira dificuldade e o entendimento é dúbio, vamos, então, tateando, mexendo, remexendo em tudo na tentativa de encontrar um sentido figurativo ou analógico para não perder o rumo e despencar nos seus longos parênteses, verdadeiros recheios de conhecimentos filosóficos e literários, um alerta ao leitor para se preparar a uma conclusão surpreendente, uma espécie de “avant goût”, uma pequena amostra da beleza e da grandiosidade que ele nos prepara  com a certeza de que não  pararíamos, que iríamos até o fim. Finalmente nos envolvemos com o uso constante de metáforas que, ampliando e avivando os trechos  das reminiscências e descobertas com infinitas feições, enriquecem e eternizam sua literatura.
       Sobre a literatura proustiana, André Gide, que se  recusara a publicar “Du côté de chez Swann” pela Gallimard, assim se expressou sobre essa obra, mais tarde, após o sucesso do lançamento: “Que livros curiosos! Penetramos neles como em uma floresta encantada; desde as primeiras páginas nos perdemos, e ficamos felizes de nos perder; logo não sabemos mais por onde  entramos nem a que distância nos encontramos da margem; em alguns momentos, parece que caminhamos sem avançar, e, em outros, que avançamos sem caminhar, vamos olhando tudo de passagem; não sabemos mais onde estamos, para onde vamos.” (André Gide, Incidences, Paris, Gallimard, 1948.)
        Marcel Proust é uma fonte inesgotável, que se estrutura e se recria a todo instante, proporcionando-nos prazeres renovados da amplidão transbordante de suas rememorações, porque nada para ele se apresentava concluído,  tendo de  evoluir, crescer e se modificar no jogo sutil das emoções que sua memória prodigiosa arrancava dos abismos da mente. Ler Marcel é contar sempre  com surpresas e descobertas, surpresas que podem até modificar o sentido original que se deu à leitura e descobertas pela duplicidade de ideia que cada palavra pode sugerir em sua movimentação.  O próprio Proust se perdia nessa tentativa de aprimoramento de seu estilo, sempre impulsionado pelo que lhe ditava o subconsciente, o seu interior mais profundo.  Para ele, tudo estava aprisionado como  em caixas à espera de um olhar, ou de um empurrão, para ganhar existência no mundo real.
       A preocupação de Proust com seus romances foi imensa, ocupando-lhe todo o tempo de que dispunha, quando se isolou em  seu apartamento e passou a viver inteiramente para a arte,  com o auxílio de Celeste Albaret, que cuidava da casa. Ela, inclusive, o ajudava a pregar pedaços de papel escritos, nos seus cadernos, com novas idéias que surgiam à noite (pois nas páginas, já abarrotadas de frases, nada mais cabia), nas sucessivas revisões dos textos que efetuava, revisões essas que se constituíam em verdadeira compulsão. Deixou setenta e cinco cadernos com observações, modificações de sua obra, escritas nervosamente pela noite afora. Corria contra o tempo, pois temia que a morte o tragasse antes de terminar seu trabalho definitivo. Esses  cadernos  manuscritos, que ficaram, após seu falecimento, em poder da família,  foram adquiridos, tempos depois, pela Biblioteca Nacional da França e lá se encontram à disposição dos estudiosos e decifradores da obra de Marcel, havendo, inclusive, um grupo de pesquisadores franceses, japoneses e brasileiros trabalhando para a organização de uma edição que conterá a transcrição integral das páginas, com notas e comentários dos textos, reproduções em fac-símile, que darão ao leitor a possibilidade de cotejar a transcrição com o manuscrito proustiano.
        Faremos, então, uma viagem literária ao universo de Marcel Proust. Escolhemos, para isso, seu  romance “Du coté de chez Swann”, na parte referente a Combray, por ressaltar as lembranças de uma época em que seus sonhos e anseios eram mais fecundos que suas dúvidas.
 Escreveu Proust:        
        “Desse modo, por bastante tempo, quando acordava de noite e me vinha a recordação de Combray, nunca consegui rever mais que aquela espécie de traço ou lanço luminoso (pan lumineux), que era recortado no meio de trevas indiferenciadas, semelhante aos que o acender de um fogo de artifício ou certa projeção elétrica iluminam e seccionam em um prédio cujas outras partes permanecem escuras e  mergulhadas dentro da noite: na base, muito larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda escura por onde  surgiria o Sr. Swann, inconsciente  autor das minhas tristezas, o vestíbulo  por onde me levaria para o primeiro degrau da escada, tão difícil de subir, que, por si só, constituía  o tronco bastante estreito daquela pirâmide irregular; e, o meu quarto,  no alto,  com o pequeno corredor de porta envidraçada por onde  mamãe entrava; em resumo, sempre visto à mesma hora, isolado de tudo  o que pudesse ter em torno, aparecendo sozinho na escuridão, o cenário  estritamente necessário ( como os que são vistos indicados em cima das velhas peças para as representações na província), ao drama do meu deitar: como se Combray se resumisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se nunca  fosse  mais  que sete horas da noite. Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray ainda  compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Todavia como o que então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da Inteligência, e como as  informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria ocorrido de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim. Morto para sempre? Era possível ?”
       E prossegue:
       “Há muito de acaso em tudo isso, e um segundo acaso, que é o de nossa morte, não nos permite muitas vezes aguardar por muito tempo os favorecimentos do primeiro.
       Acho que é razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas em algum ser inferior, num animal, um vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdida para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos permite passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão.  Então elas palpitam, chamando-nos, e, logo que as reconhecemos, está desfeito o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.
       Assim é com o nosso passado. Trabalho perdido tentar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência  mostram-se inúteis. Está ele oculto, longe do seu domínio e do seu alcance, em algum objeto material ( na sensação que nos daria tal objeto material) que nós nem suspeitamos.  Esse objeto, só  do acaso depende que seja localizado antes de morrer, ou que não o localizemos nunca.”
       Nessa recordação de Combray, Marcel Proust, ou o narrador, se esqueceu de um lugar que lhe era muito caro: uma pequena peça que cheirava a íris (uma planta perfumada e suspensa por galhos) e onde também havia um cassis silvestre e perfumado, na parte de cima da casa  e perto do local onde sua avó sempre dava seus passeios pelo jardim. Mas o próprio narrador adverte: “Na verdade, poderia responder a quem me perguntasse que Combray comprendia outras coisas mais e existia em outras horas.” Na ocasião, suas recordações a respeito de Combray eram trazidas unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, cuja informação sobre o passado  não conservava nada dele, e nem lhe teria feito lembrar-se do restante de Combray, ainda que nesse restante estivesse um  cantinho  com tantas recordações de seu   passado. Essa recordação da memória voluntária de Combray difere da outra recordação de Combray em razão da madeleine que é evocada pela memória involuntária,  quando Combray aparece em um passado puro, nada tendo com o  presente atual e o  passado que foi presente, por ser uma essência “do tempo em estado puro”. Voltando ao esquecimento de Marcel:   o que representava  esse cantinho ? O que representou, verdadeiramente, em sua infância e adolescência.?
       “Quando tinha 12 anos eu me isolei pela primeira vez no quartinho  que ficava no alto de nossa casa em Combray onde existiam colares de grãos de íris suspensos, procurando nessa fuga um prazer desconhecido, original, que não poderia ser substituído por outro. Era uma peça grande, que podia ser fechada à chave, mas a janela estava sempre aberta dando passagem a uma flor lilás que vinha do muro exterior e conseguira passar pela fresta sua extremidade perfumada. Tão alto (dans les combles du château), no sótão,  eu me sentia absolutamente só, mas esta aparência de estar em pleno ar somava  uma  sensação deliciosa ao sentimento de segurança que sólidas fechaduras davam à minha solidão. A exploração que eu fiz então em mim mesmo, em busca de um prazer que eu não conhecia, não me teria dado mais emoção, mais pavor, se eu tivesse agido por mim ao praticar uma intervenção cirúrgica em minha medula e meu cérebro. A todo momento eu acreditava que ia morrer. Mas que me importava, meu pensamento exaltado pelo prazer sentia que ele era mais vasto, mais possante que  este universo que eu percebia ao longe pela janela na imensidão e na eternidade da qual eu pensava habitualmente com tristeza  não ser  senão uma efêmera  parcela. Nesse momento também, ainda longe de as nuvens cobrirem a floresta, eu sentia que meu espírito ia um pouco mais longe que a extremidade das coisas, não estava  tomado por elas, deixava  uma pequena margem ainda. Eu sentia  meu olhar potente nas minhas pupilas trazer como simples reflexos sem realidade as belas colinas curvas  que se elevavam como seios dos dois lados do rio. Tudo isso  repousava sobre mim,  eu era mais que tudo isso, eu não podia morrer. (...) Nesse momento  eu senti uma ternura que me envolvia, era o odor do lilás que em minha exaltação eu tinha deixado de perceber. Mas um odor acre, um odor de seiva ali se misturava  como se eu tivesse quebrado o galho; eu tinha somente deixado sobre a folha um traço prateado e natural como faz o fio da virgem ou o caracol. Mas sobre este  galho ele me aparecia como o fruto proibido sobre a árvore do mal.  E como os povos que dão às suas divindades formas inorganizadas, foi sob a aparência desse fio de prata que se podia esticar quase indefinidamente sem o terminar e que eu vinha de tirar de mim mesmo, indo tudo ao avesso de minha vida natural, que eu reapresentava  para mim desde então  e para algum tempo o diabo.” (Traduzido de “Du coté de chez Swann – Esquisse III”, pag. 646/647, volume I, Bibliothèque de la Pléiade).
       Esse texto,  que constou somente do rascunho de “Du coté de chez Swann” (mas não em sua versão publicada), foi aproveitado por Proust na obra “Contre Saint-Beuve”, capítulo “Sommeils”, e é  revelador da  importância do seu pequeno mundo de Combray.
       Daremos ênfase, portanto, ao que constou de seu livro “Du coté de chez Swann” a respeito do “cabinet”, em suas férias em Illiers, e o que realmente foi publicado.
       Em alguns dias, para fugir das discussões de seus avós sobre bebida, motivada por sua tia-avó, que dava ao seu avô algumas gotas para beber e, ao mesmo tempo, gritava para sua avó o que ele bebia, causando-lhe sofrimentos, o narrador ia soluçar lá no alto da casa, “ao lado da sala de estudos, sob os telhados, numa pequena peça que cheirava a íris (dans une  petite pièce sentant l’iris), também perfumada por um cassis selvagem que crescera fora entre as pedras da muralha e passava ramo florido pela janela entreaberta. Destinada a um uso mais especial e mais vulgar, aquela peça, de onde se tinha vista, de dia, até o torreão de Roussainville-de-Pin, me serviu muito tempo de refúgio, sem dúvida por ser a única que me era permitido fechar a chave para todas as minhas ocupações que demandavam uma inviolável solidão: a leitura, o devaneio, as lágrimas e a volúpia.”
        Nesse diminuto ambiente em que  se refugiava,  como a  desafiar o universo, às portas fechadas,  na criação do seu pequeno mundo imaginário, levado pela vibrante  imaginação que já   se deixava impulsionar pelas sensações, o que no futuro seria o déjà vu de suas rememorações, Marcel viu brotar as primeiras experiências de sua vida. Na certa, leu, avidamente, “François Le Champi”, um prazer divino, leitura de férias, interrompida, às vezes, por um obstáculo vulgar como quando um amigo vinha visitá-lo ou um sol impertinente o forçava a levantar os olhos da página ou a mudar de lugar.  É possível que tenha lido, também, “Vingt Mille lieues sous les mers”, de Jules Verne, pois, para demonstrar  a curiosidade de Aimé, o maître do hotel de Balbec, Proust afirma ter ele o ar, ao mesmo tempo,  atento e agitado de uma criança que leu um romance de Jules Verne. Isso levou Michel Butor a concluir que Marcel Proust tenha sido essa criança que leu o romance de Jules Verne.
      Em sua obra, Marcel Proust dá mais outra pista ao escrever sobre o assunto: “A idéia que se poderia voluntariamente renunciar a cem jantares ou almoços na cidade, ao duplo de chás, ao triplo de acontecimentos  noturnos, às mais brilhantes segundas-feiras da Ópera e terças-feiras do Francês para visitar os Fjords da Noruega não pareceu  aos Courvoisier mais explicável que Vingt Mille lieues sous les mers”. Seria ou teria achado o romance tão extraordinário assim ?
       Em sua enumeração, após a leitura,  vêm os devaneios a que se permitia  e que davam certo sabor aos seus dias de férias em Combray, nas alegrias da solidão e do silêncio que ele procurava esconder, quando seu olhar alcançava pela janela Roussainville, em cujos muros jamais penetrou, embora fosse uma aldeia que havia tanto tempo desejava conhecer, sentir as árvores do seu bosque, admirar as torres de sua igreja antecipando os passeios do lado de Méséglise, de Tansonville e de Mountjouvain.
       Pela janela de seu pequeno gabinete, sempre aberta, Marcel contemplava a natureza esculpida por folhagens que, ao lado das que cresciam normalmente, formavam um conjunto que parecia, na verdade, uma obra de arte.  E, então, surgia diante dele,  ao longe, uma vista de Roussainville, como um petit pan de couleur,  deixando-o imerso em seus devaneios: “...terra prometida ou maldita, Roussainville, em cujos muros jamais penetrei, Roussainville que, quando a chuva já se acabara  para nós, continuava a receber castigo como uma aldeia da Bíblia por todos os transbordamentos da tempestade que flagelavam obliquamente as casas  de seus moradores...” Diante de um horizonte desértico à sua frente, Marcel continuava seu devaneio: “ Mas era em vão, debalde, que eu implorava  o torreão de Roussainville, que lhe suplicava me mandasse alguma menina da sua aldeia, como  ao único confidente que eu podia conseguir dos meus primeiros desejos, quando, nos altos de nossa casa em Combray, no pequeno gabinete cheirando a íris, só avistava a sua torre no quadrado da janela, enquanto, com as heróicas hesitações do viajante que se embrenha numa exploração ou do desesperado que se suicida, eu fazia surgir desfalecente em mim mesmo um caminho  desconhecido e que julgava mortal  até o momento em que sentia o rastro natural de um caracol que vinha  juntar-se às folhas da groselheira silvestre inclinadas até a mim. Em vão eu lhe suplicava agora. Totalmente em vão, compreendendo  toda aquela extensão no meu campo visual, drenando-a com os meus olhares que gostariam de trazer dali uma mulher.” (...) “O horizonte continuava deserto, enquanto a noite caía sem dar esperança  ao meu desejo, naquele solo estéril de terra esgotada;  e não era mais de alegria, era de raiva que eu batia às árvores do bosque de  Roussainville, de onde não saía nem um ente vivo, como se as árvores fossem  uma pintura, não árvores verdadeiras,  sobre a tela de um panorama.”
       Era  nesse pequeno ambiente que Marcel dava vazão às suas lágrimas quando  dissabores o acometiam. Mais tarde ficou sabendo que sua avó vivia se martirizando por causa da sua falta de vontade, sua saúde precária que projetavam muita incerteza sobre seu futuro. (Nessa época o único consolo de Marcel era esperar toda noite que sua mãe fosse beijá-lo, quando já estivesse na cama, preparando-se para dormir. Apesar de durar tão pouco, pois sua mãe descia rapidamente após o beijo noturno, ele a aguardava. Era uma verdadeira tortura diária e quanto mais cedo ela vinha, mas depressa ia embora. Desejava, então,  que ela viesse o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que ela ainda não subira. Nas noites em que havia um convidado para jantar, Sr. Swann, a situação se complicava, pois sua mãe podia nem subir para lhe dar boa noite, o que o deixava desesperado e infeliz.)
       A última finalidade do seu esconderijo, seu pequeno mundo,  era poder, seguramente, entregar-se à volúpia, no descobrimento de seus desejos íntimos e secretos ao  despertar de sua sexualidade. Esse pequeno mundo de leituras, devaneios, lágrimas e volúpias, inicialmente, lhe abriu as portas para a criação de sua Recherche, incutindo-lhe prazerosamente os fundamentos necessários a fim de incrementar e solidificar os alicerces fecundos de uma obra de arte extraordinária, reflexo de uma vida verdadeiramente vivida no mergulho insondável do interior do ser na busca das verdades eternas através da memória afetiva ou involuntária.
       Para Giles Deleuze, a Recherche não foi construída como uma catedral, nem como um vestido - metáforas utilizadas pelo escritor -  mas como uma teia. O narrador  é uma aranha. Acontece que a  aranha nada vê, nada percebe, de nada se lembra e somente em uma das extremidades de sua teia “ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em  ondas de grande intensidade e que a faz, de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde  unicamente aos signos e é atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo como uma onda e a faz pular sobre a presa.” (...) “O narrador-aranha, cuja teia é a Recherche que se faz, que se tece com cada fio movimentado por este ou aquele signo:  a teia e a aranha, a teia e o corpo são uma mesma máquina. O narrador pode ser dotado de uma extrema sensibilidade, de uma prodigiosa memória: ele não possui órgãos no sentido em que é privado  de todo uso voluntário e organizado de suas faculdades. Em contrapartida, uma faculdade se exerce nele quando é coagida e forçada a fazê-lo; e o órgão correspondente vem situar-se nele, mas como  um esboço “intensivo” despertado pelas ondas  que lhe provocam  o uso involuntário. Sensibilidade involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos  de diversas naturezas. Esse corpo-teia-de-aranha se agita para entreabrir ou fechar cada uma das pequenas caixas que vêm deparar-se  com um fio viscoso da Recherche. Esse corpo-aranha  do narrador, o espião, o policial, o ciumento, o intérprete e o reivindicador – o louco – o esquizofrênico universal  vai estender um fio até Charlus, o paranoico, um outro até Albertina, a erotômana, para fazê-los marionetes de seu próprio delírio, potências intensivas de seu corpo sem órgãos, perfis de sua própria loucura.”
       Pode-se, finalmente,  aquilatar o que este pequeno quarto, cabinet, pequena peça, representou para Marcel Proust: foi verdadeiramente seu pequeno mundo com as riquezas das suas descobertas, seus tesouros mentais,  verdadeiros símbolos que povoavam febrilmente sua imaginação.
       Ao dizer  Et que je venais de tirer de moi-même, e le fil de la vierge ( que significa o fio que a aranha, na dispersão outonal, vai deixando sobre as árvores dos campos e sobre as flores dos jardins, tecendo muitas vezes um grande emaranhado para aprisionar insetos), bem como ao mencionar le fil d’argent sans  le faire finir, ele nos faz lembrar o mito d’Arachnée, das “Metamorfoses” de Ovídio, em que Arachnée e todos os descendentes terão de tirar de si mesmos o fio para tecer suas teias.  Em última análise, todo escritor, ou poeta, terá de tirar de si mesmo o fio da sua criação. Novamente a imagem da aranha: na primeira, com Deleuze, cogita-se da mera semelhança de agir como uma aranha,  enquanto, já agora, no mito, ocorre uma metamorfose, pois o escritor (ele próprio transformado numa aranha) tem de tirar tudo o que imaginar de dentro de si mesmo.
      Entendemos que  a expressão le fil de la vierge (em Marcel Proust) ganhou um sentido metafórico, simbólico, servindo-se de “Metamorfoses”, de Ovídio, pela qual  a tecelã Arachnée, por desafiar a deusa Palas, é transformada numa aranha, sendo obrigada a tirar tudo de si mesma.
      O fio que o menino vê na folha do lilás - imagem de emoção na primeira versão - o traço prateado e longo,  sem fim visível, o que  representará? Mais tarde, a lembrança desse fio entrará na própria  composição da Recherche, numa sistemática de contagem regressiva e, alternadamente, sucessiva, do presente ao passado e do passado ao presente, em busca de um caminho intransponível.  Por que Marcel se assusta com a descoberta do traço prateado, considerado fio revelador do fruto proibido na árvore do mal, que o fez conhecer o prazer, contemplando, pela janela aberta,  as duas colinas distantes que se assemelhavam a dois seios (seins-collines)?  E este prazer era  desconhecido, original, não sendo substituído por nenhum outro, somente permitido no cabinet sentant l’iris. A  figura do diabo aparecia, então,  para ele, sob a forma  desse fio de prata que pendia do ramo da árvore, aliado a um sentimento profundo de culpabilidade, que ele não conseguia vencer,  causando-lhe  prostração e  angústia, que o perseguiam como o fantasma da morte.
        Toda a obra de Proust é um verdadeiro desafio aos conceitos e ordenamentos estabelecidos da crítica literária, sustentados por aquele que, na época, era o expoente maior dessa crítica, Saint-Beuve, encarado então como uma verdadeira deusa Pallas, dona da verdade.
Em seu pequeno mundo,  o cabinet , o escritor Marcel Proust,  como a aranha do mito, impregnado de anseios juvenis,  deu início à sua vida literária,  tirando tudo de seu inconsciente, do âmago do ser, num mergulho profundo na imensidão do pensamento  impulsionado pela memória.  Legaria assim, à humanidade, uma das mais extraordinárias obras da Literatura universal, de todos os tempos.




 de ELSA CARAVANA GUELMAN

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

62 MODELO PARA ARMAR - Julio Cortázar - de ELSA CARAVANA GUELMAN


Quando Juan, personagem de “ 62 Modelo para Armar”,de Julio Cortázar, cujo livro fora esboçado no final do capítulo 62 de “ O jogo da amarelinha”, perambulava em Paris por Saint Germain des Près, antes de chegar na esquina da rua Monsieur Le Prince com a rua de Vaugirard, de onde se avistava um pedaço de céu avermelhado, com um cheiro de umidade, um portal de mofo, que lhe recordava uma amiga, a condessa em Viena, na sua solitária noite de Natal; viu na vitrine de uma livraria um livro que imediatamente comprou. Era um livro de Michel Butor sobre o autor de Atala e René,  François-René de Chateaubriand. Entrou na livraria, viu o livro e comprou-o, imaginando que provavelmente não o leria, pois sempre comprava livros que se  perdiam em sua biblioteca sem nunca serem lidos.  Com o livro na mão, numa verdadeira sequência, seguindo pela rua Monsieur Le Prince, chegou ao restaurante Polidor. Sem se dar conta do que conscientemente estava fazendo, entrou no restaurante. E o porquê dessa atitude iria atormentá-lo durante a noite. Após um empurrão na porta, viu-se dentro do restaurante, quando um garçom apareceu e o levou à pior mesa existente, pois não fizera nenhuma reserva antecipada, “ a mesa falsa de cara com a parede, com a parede fantasiada de espelho”. Concordara em se sentar numa mesa, de costas para a sala, com o espelho lhe mostrando toda a entrada do restaurante. Sentiu-se de costas para o mundo. A verdade é que, como não tivera a intenção de comprar o livro, também não tivera a intenção de jantar no Polidor.Tudo aconteceu de repente, por um momento de desalento.  Pediu imediatamente uma garrafa de Sylvaner (variedade de vinho  proveniente da Alsácia e da Alemanha). Bebeu um copo, mais outro, talvez para tentar  esquecer o vazio em que se encontrava em Paris numa noite de Natal. Abriu o livro comprado e, desinteressadamente, leu que o visconde de Chateaubriand havia contemplado as cataratas do Niágara, escrevendo, sobre elas, um célebre trabalho.

E foi nesse momento, em que estava começando a fechar o livro, porque a luz era péssima e não tinha vontade de ler, ainda com Chateaubriand sob seus olhos, que viu no espelho um comensal gordo, sentado na segunda mesa, de costas para ele, gritar:

- Je voudrais un château saignant.

O comensal gordo mutilara o nome do autor de Atala. Deveria ter pedido :

 - Je voudrais un chateaubriand saignant.

              Juan  sabia que se tratava de um prato de carne, um bife grosso  mal passado, por isso sentiu imediatamente a mutilação no pedido  feito pelo homem. Não sabia se no cardápio o nome do prato também sofrera mutilação. ( Acredita-se que esse prato tenha sido criado em Paris por Pierre de Montmirail, cozinheiro do grande escritor francês François-René-Auguste de Chateaubriand, visconde de Chateaubriand  - 1768/1848 - que inventou uma variação de filé com o nome do patrão.)
                   Na verdade, o comensal pedira:

               - Eu queria um castelo sangrento.

               E esse pedido se deu justamente quando Juan bebia o primeiro gole de vinho gelado, esperando que lhe trouxessem uma coquille Saint-Jacques que, na verdade,  não lhe apetecia no momento. A voz do homem despertou-o, tirou-o do marasmo e das indecisões por ter diante de si o livro que falava de Chateaubriand. Se Juan não estivesse diante do livro, que mencionava  expressamente Chateaubriand, não teria prestado atenção ao pedido feito pelo homem gordo e sua voz se teria perdido no salão do restaurante.

               Sentado em sua mesa, no fundo da sala, impregnado ainda pela voz que lhe chegara pelas costas, Juan interpretou o pedido do comensal, em seu duplo sentido, concluindo que  ele pedira um castelo sangrento. Ele se perguntava: Por que entrara no restaurante Polidor, por que comprara o livro e o abrira ao acaso e lera também ao acaso uma simples frase  apenas um segundo antes que o comensal gordo pedisse um bife quase cru?

          Juan, ainda de costas para o mundo, carregando aquele vazio intenso, pensava em seus amigos, em tantas e tantas ocasiões na mesa do bar Cluny, na esquina de Boul´Mich com Boulevard Saint-Germain. Sentia-se um estranho no ambiente do Polidor, mas, na certa, quando pudesse se reunir com os amigos no Cluny, teria muitas coisas para contar. E eles  estariam interessados  nos seus relatos. As reminiscências mergulhavam em sua mente, fervilhando  à medida que ele ia sorvendo os goles do Sylvaner. Onde estariam Hélène, a condessa, Calac, Tell, Polanco e Nicole? Surgia, então, a Cidade, como uma metáfora,  que estaria vinculada a qualquer lugar ou qualquer coisa e tinha um sentido privilegiado, sempre em oposição às cidades habituais.A cidade não tinha explicação, ela, simplesmente, era. Existia.  Tanto podia ser em Paris, numa cervejaria de Oslo ou em Barcelona. Transcendia à geografia.

 Na cidade, os hotéis tinham varandas tropicais, as ruas eram cobertas e havia uma praça com bondes. Muitas coisas da cidade eram aceitas sem discussão ainda que fosse difícil saber quem as havia trazido pela primeira vez. Havia sempre a lembrança de estarem  reunidos em torno da mesa do Cluny, rindo das ilusões, quando um deles, na condução dos assuntos,  se fazia de superior, mentor do grupo ou paredro.

Juan, naquela fria noite de Natal, sentiu-se, no  seu evoluir,  dominado por dois espelhos, o do espaço, refletindo o restaurante, com sua trepidação, seus pratos, seus fregueses, o comensal gordo diante de seu  “château saignant” na movimentação constante da noite .O Outro, o espelho do tempo lhe trazia a condessa  que se definira na esquina  da rua Monsieur Le Prince com a rua Vaugirard, Hélène  e Frau Marta em Viena e todos os amigos, numa animada conversa no bar Cluny. Os lugares e as pessoas se misturavam e o envolviam num torpor que lhe era realçado pelo sabor do vinho, em meio às conversas no restaurante.

Juan, já bem longe do restaurante Polidor e antes de se deixar levar até  o bairro do canal de Saint-Martin, andou sozinho pelas ruas, totalmente embriagado de Sylvaner e cansaço, tentando recompor-se, despojando-se do entorpecimento que naquela noite o envolvera na pequena mesa que o obrigara a dar as costas ao mundo.

E ele, assim, foi definido: “ Mais tarde, com o gosto de borra de um café ruim, caminhou sob o chuvisco em direção ao bairro do Panthéon, fumou refugiado num portal, embriagado de Sylvaner e cansaço,  obstinando-se  ainda vagamente em reavivar aquela matéria que cada vez mais se tornava linguagem, arte combinatória de lembranças e circunstâncias, sabendo que naquela mesma noite ou no dia seguinte na zona,   tudo o que contasse seria irremissivelmente desvirtuado, posto em ordem, proposto como enigma de roda de conversa, charada de amigos."

No livro “Uma Literatura nos Trópicos”, Silviano Santiago, analisando o personagem de Cortázar, às fls. 21/22,  enfoca a seguinte questão:

“ Durante o processo de tradução, o imaginário do escritor está sempre no  palco, como  neste  belo exemplo  pedido  de   empréstimo a Julio Cortázar."

E prossegue:

"O personagem principal de “ 62 Modelo para armar”, de nacionalidade argentina, vê desenhada no espelho do restaurante parisiense em que entrou para jantar esta frase mágica: “ Je voudrais um château saignant.” Mas, em lugar de reproduzir a frase na língua original, ele a traduz imediatamente para o espanhol: “Quisiera um castillo sangriento.”  Escrito no espelho e apropriado pelo campo visual do personagem latino-americano, château sai do contexto gastronômico e se inscreve no contexto feudal, colonialista, a casa onde mora o senhor, el castillo. E o adjetivo, saignant,  que significava apenas a preferência ou o gosto do cliente pelo bife mal passado, na pena do escritor argentino, sangriento, torna-se a marca evidente de um ataque, de uma rebelião, o desejo de ver o château, o castillo sacrificado, de derrubá-lo, a fogo e sangue.  A tradução do significante  avança um novo significado – e, além disso, o signo lingüístico nuclear (château) abriga o nome daquele que melhor compreendeu o Novo Mundo no século XIX: René de Chateaubriand. Não é por coincidência que o personagem de Cortázar, antes de entrar no restaurante, tinha  comprado o livro de um outro viajante infatigável, Michel Butor, livro em que  este fala do autor de René e de Atala. E a frase do freguês, pronunciada em toda a inocência gastronômica, “je voudrais un château saignant”, é percebida na superfície do espelho, do dicionário, por uma imaginação posta em trabalho pela leitura de Butor, pela situação do sul-americano em Paris, “ quisiera um castillo sangriento”.”

                Segundo a opinião do grande romancista e contista argentino (que nasceu na Bélgica e viveu em Paris durante boa parte de sua vida, sendo-lhe outorgada, inclusive, a nacionalidade francesa), o que, verdadeiramente, se poderia tentar captar no mundo?  Cortázar afirma que o que há  é uma “ inquietude, um desassossego, um desarraigo contínuo, um território onde a causalidade psicológica cederia desconcertada.”

                 Em última análise, portanto, para ele, forças desconhecidas se movem em torno do homem, mas este é incapaz de entendê-las.

Obras consultadas: 62 Modelo Para Armar - Tradução de Glória Rodriguez - Civilização Brasileira - 2000;
Uma Literatura Nos Trópicos - Silviano Santiago - Roccco - 2000



         

sábado, 27 de outubro de 2012


COMO ACEITAR O QUE NÃO SE CONHECE ?
Elsa Caravana Guelman.

Quando se faz uma viagem para um lugar totalmente desconhecido, pode-se ter uma grande satisfação ou uma completa insatisfação. E isso pode ocorrer por quê? Porque há pessoas que, quando vão conhecer o desconhecido, dão asas a sua imaginação. E o que vai fazer essa imaginação? Vai simplesmente transmitir ou traduzir os anseios e as preferências da pessoa para o local a ser visitado...Raramente. dá certo. Não se pode encontrar o barroco numa cidade essencialmente moderna. Daí, há frases assim: “Ëu esperava mais, fiquei decepcionada”.. O que a pessoa não entendeu é que cada lugar já está pronto, pertence e obedece a um contexto cultural, histórico, dentro de uma estrutura própria, com uma visão “em si”, independente 
do desejo e da vontade do visitante. Assim, as cidades são o que são. Mas para admirá-las, realmente, deve-se encontrar nelas o fio magnético que as conduzirá à nossa emoção e aceitação. A arte, bem o sabemos, é eterna e é múltipla, satisfaz a todos os desejos e cabe em todas as manifestações culturais do mundo.. 
Como fazer, então? O ideal seria procurar o roteiro certo, aquele que pudesse canalizar os anseios e os desejos do visitante que está interessado em ver o que realmente gosta e não pretende ampliar a sua visão pessoal. .
Há também um outro tipo de visitante, aquele que gosta de inovar, de se defrontar com o desconhecido, nele se fundir e, numa atitude dialética, cristalizar sua vivência cultural em novos caminhos e interesses do existir.
Para este último, haverá, por descobrir, tesouros perdidos nos confins dos continentes, pois, na verdade, muita coisa existe para surpreender os que estão ávidos por descobertas.
A aceitação do que não se conhece está, portanto, intimamente ligada à personalidade e aos objetivos do viajante, ao que ele deseja ver e, em última análise, à sua percepção do universo e à sua aceitação, ou repulsa, do que lhe é estranho ou desconhecido.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

ELSA CARAVANA GUELMAN - Marcel Proust Lanterna Mágica



ELSA CARAVANA GUELMAN       - Marcel Proust   -  LANTERNA MÁGICA




LANTERNA MÁGICA: Marcel Proust Du Côté de Chez Swann


"Em Combray, todos os dias desde o fim da tarde, muito antes do momento em que seria preciso me deitar e ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir se tornava o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Para me distrair nas noites em que me julgavam muito infeliz, haviam inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto esperávamos a hora de jantar; e, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições sobrenaturais multicores, onde eram pintadas legendas como num vitral vacilante e instantâneo. Porém isso fazia aumentar ainda mais a minha tristeza, pois a mudança de iluminação destruía o hábito do meu quarto, graças ao qual, salvo o suplício de me deitar, ele se me tornava suportável. Agora, não o reconhecia mais e sentia-me inquieto, como num quarto de hotel ou de um chalé, ao qual tivesse chegado pela primeira vez ao descer de um trem. Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, cheio de um desígnio atroz, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a encosta de uma colina, e avançava, aos solavancos, para o castelo da infeliz Geneviève de Brabant.

Esse castelo era recortado conforme uma linha curva que era apenas o limite de uma das ovais de vidro inseridas no caixilho que deslizava à frente da lanterna. Não passava de um muro de castelo e tinha diante dele um campo aberto onde meditava Geneviève, que usava um cinto azul. O castelo e o campo eram amarelos e eu não esperava o momento de vê-los para saber a sua cor, pois, antes dos vidros do caixilho, a sonoridade vermelho-dourada do nome de Brabant mostrara-o em toda a sua evidência. Golo parava um instante para ouvir com tristeza a arenga lida em voz alta por minha tia-avó e que dava a impressão de compreender muito bem, adequando sua atitude, com uma brandura não isenta de certa majestade, às indicações do texto; depois se afastava no mesmo passo sacudido. E nada poderia deter sua lenta cavalgada. Se mexiam na lanterna, eu distinguia o cavalo de Golo que continuava a avançar sobre as cortinas da janela, inflando-se nas suas dobras, afundando-se nas suas fendas. Mesmo o corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como o da sua montaria, aproveitava todo obstáculo material, todo objeto incômodo que aparecesse, para tomá-lo como ossatura e torná-lo interior, ainda que se tratasse da maçaneta da porta, à qual se adaptava logo, e onde sobrenadava invencivelmente o seu manto vermelho ou seu rosto pálido sempre tão nobre e tão melancólico, mas que não deixava transparecer qualquer inquietude por essa transverberação.

É claro que eu achava um encanto todo especial nessas brilhantes projeções que pareciam emanar de um passado merovíngio e faziam passear a meu redor tão remotos reflexos de história. No entanto, não poderia descrever que mal-estar me provocava essa irrupção de mistério e de beleza no meu quarto que eu acabara de preencher com o meu eu a ponto de não dar mais atenção a ele do que a mim mesmo. A influência anestesiante do hábito passara, e eu me punha a pensar e a sentir - coisas tão tristes. A maçaneta da porta, que para mim era diferente de todas as outras maçanetas do mundo, nisto que parecia abrir sozinha, sem que tivesse necessidade de girá-la, de tal modo se me tornara inconsciente o seu manuseio, eis que servia agora de corpo astral para Golo. E logo que chamavam para jantar, sentia pressa de correr para o refeitório onde a grande lâmpada do teto, sem saber de Golo ou de Barba-Azul, e que conhecia meus pais e o bife à caçarola, espalhava a sua luz de todas as noites; e de cair nos braços de mamãe, que as desgraças de Geneviève de Brabant me tornavam mais querida, ao passo que os crimes de Golo me faziam examinar minha própria consciência com maior escrúpulo.

Infelizmente, depois do jantar eu era logo obrigado a deixar mamãe, que ficava conversando com os outros, no jardim, se fazia bom tempo, ou na saleta onde todos se abrigavam se chovia. Todos, menos minha avó, que achava que "é uma pena ficar a gente encerrada, no campo" e que tinha discussões intermináveis com meu pai, nos dias em que chovia forte, porque ele me mandava ler no quarto ao invés de ficar de fora. "Não é assim que você vai fazê-lo robusto e enérgico", dizia ela tristemente, "principalmente este menino que precisa tanto de forças e de vontade." Meu pai dava de ombros e examinava o barômetro, pois gostava de meteorologia, enquanto minha mãe, evitando fazer barulhos para não perturbá-lo, olhava-o com respeito carinhoso, mas não fixamente para não dar a entender que buscava devassar o mistério da sua superioridade.

Quanto à minha avó, em qualquer tempo, mesmo quando a chuva caía com força e Françoise entrava com precipitação recolhendo as poltronas preciosas de vime para que não se molhassem, era vista no jardim vazio e fustigado pelo aguaceiro, levantando as mechas grisalhas e desordenadas para que sua testa melhor se embebesse da salubridade do vento e da chuva. Costumava dizer: "Enfim, respira-se!", e percorria as aléias encharcadas do jardim, muito simetricamente alinhadas para seu gosto, pelo novo jardineiro destituído do sentimento da natureza e ao qual meu pai havia perguntado desde a manhã cedinho se o tempo iria se firmar - com seu passo entusiasmado e brusco, regulado pelos diversos impulsos que em sua alma excitavam a embriaguez da tempestade, o poder da higiene, a estupidez da minha educação e a simetria dos jardins, mais que pelo desejo, que desconhecia, de evitar as manchas de lama na saia cor de ameixa e que a cobriam até uma altura que sempre faziam o desespero e o problema de sua criada de quarto.

Quando os passeios de minha avó pelo jardim aconteciam depois do jantar, uma coisa tinha o poder de fazê-la voltar logo: era - num desses momentos em que as voltas do seu passeio a levavam periodicamente, como um inseto, na direção das luzes da saleta, onde eram servidos os licores na mesinha de jogo - quando minha tia-avó lhe gritava: "Bathilde! vem ver se impedes que o teu marido beba conhaque!" Para aborrecê-la, de fato (ela trouxera à família de meu pai um espírito tão diverso que todos zombavam dela e a atormentavam), visto que os licores eram proibidos a meu avô, minha tia-avó fazia-o beber algumas gotas. Minha pobre avó entrava, implorava ao marido com ardor que não bebesse conhaque; ele se zangava, bebia apesar de tudo o seu gole, e minha avó tornava a sair, triste, desanimada, no entanto risonha, pois tinha o coração tão humilde e era tão doce que sua ternura pelos outros e a pouca importância que atribuía à própria pessoa e a seus sofrimentos conciliavam-se no seu olhar com um sorriso onde, contrariamente ao que se vê no rosto de muita gente, só era irônica consigo mesma, e era para todos nós como um beijo de seus olhos, que não podiam ver os que ela amava sem os acariciar apaixonadamente com o olhar.

Este suplício que lhe infligia a minha tia-avó, o espetáculo das súplicas baldadas de minha avó e de sua franqueza, de antemão vencida, tentando em vão tirar de meu avô o cálice de licor, era dessas coisas a cuja vista a gente se habitua mais tarde até a considerarem risos e a tomar o partido do perseguidor, resoluta e alegremente, para se persuadir que não se trata de perseguição; na ocasião, causavam-me um tal horror que me dava vontade de bater na minha tia-avó.

Porém quando ouvia: "Bathilde! vem ver se impedes que o teu marido beba conhaque!", já adulto pela covardia, eu fazia o que todos fazemos, quando somos grandes, e há diante de nós sofrimentos e injustiças: não queria vê-los; subia para soluçar lá no alto da casa, numa peça ao lado da sala de estudos, sob os telhados, uma salinha que cheirava a íris, também aromada por uma groselheira silvestre que crescia do lado de fora entre as pedras do muro e passava um ramo florido pela janela entreaberta. Destinada a uma utilidade mais especial e mais vulgar, essa peça, de onde, durante o dia, se enxergava até o torreão de Roussainville-Pin, serviu por muito tempo de refúgio para mim, sem dúvida por ser a única que me permitiam fechasse à chave, para todas as minhas ocupações que exigissem solidão inviolável: a leitura, o devaneio, as lágrimas e a volúpia. Infelizmente, eu não sabia então que, muito mais tristemente que as pequenas infrações ao regime do marido, era a minha falta de vontade, minha saúde delicada, a incerteza que elas projetavam sobre o meu futuro que preocupavam a minha avó no decurso das deambulações incessantes, de tarde e de noite, quando se via passar e repassar, obliquamente erguido contra o céu, seu belo rosto de faces morenas e enrugadas, que, com o passar do tempo, se haviam tornado quase cor de malva como as lavouras pelo outono, e que ela cobria, ao sair, com um pequeno véu semi-erguido, e nas quais, trazidas pelo frio ou algum pensamento triste, estavam sempre secando lágrimas involuntárias.

Ao subir para me deitar, meu consolo único era que mamãe fosse me beijar quando já estivesse na cama. Mas durava tão pouco isso, e ela descia tão depressa, que o momento em que a ouvia subir, e depois quando ela passava pelo corredor de porta dupla o ruído ligeiro de seu vestido de jardim, de musselina azul, com pequenos tirantes de palha trançada, era um momento doloroso.

Anunciava o que ia ocorrer a seguir, quando ela me teria deixado, quando voltasse a descer. De modo que essas boas-noites que eu amava tanto, chegava a desejar que viessem o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que mamãe ainda não chegara. Às vezes, quando, depois de me haver beijado, ela abria a porta para ir embora, eu queria chamá-la, dizer-lhe "beija-me mais uma vez", mas sabia que ela logo se mostraria zangada, pois a concessão que fazia à minha tristeza e à minha agitação ao subir para me beijar, levando-me aquele beijo de paz, irritava meu pai, que julgava absurdo esse ritual, e ela, que punha tanto empenho em me fazer perder esse hábito, estava longe de deixar que adquirisse o de lhe pedir um novo beijo quando já estava à porta. Vê-la aborrecida, assim, destruía todo o sossego que ela me trouxera um momento antes, quando inclinara sobre o meu leito o rosto amoroso, ofertando-o como uma hóstia para uma comunhão de paz, em que meus lábios saboreariam a sua presença real e o poder de adormecer. Mas essas noites em que mamãe, enfim, se demorava tão pouco tempo no meu quarto eram ainda suaves em comparação com aquelas em que havia convidados para jantar, e nas quais, por causa disso, ela não subia para me dar boa-noite."

"À Combray, tous les jours dès la fin de l'après-midi, longtemps avant le moment où il faudrait me mettre au lit et rester, sans dormir, loin de ma mère et de ma grand-mère, ma chambre à coucher redevenait le point fixe et douloureux de mes préoccupations. On avait bien inventé, pour me distraire les soirs où on me trouvait l'air trop malheureux, de me donner une lanterne magique dont, en attendant l'heure du dîner, on coiffait ma lampe ; et, à l'instar des premiers architectes et maîtres verriers de l'âge gothique, elle substituait à l'opacité des murs d'impalpables irisations, de surnaturelles apparitions multicolores, où des légendes étaient dépeintes comme dans un vitrail vacillant et momentané. Mais ma tristesse n'en était qu'accrue, parce que rien que le changement d'éclairage détruisait l'habitude que j'avais de ma chambre et grâce à quoi, sauf le supplice du coucher, elle m'était devenue supportable. Maintenant je ne la reconnaissais plus et j'y étais inquiet, comme dans une chambre d'hôtel ou de « chalet », où je fusse arrivé pour la première fois en descendant de chemin de fer.
Au pas saccadé de son cheval, Golo, plein d'un affreux dessein, sortait de la petite forêt triangulaire qui veloutait d'un vert sombre la pente d'une colline, et s'avançait en tressautant vers le château de la pauvre Geneviève de Brabant. Ce château était coupé selon une ligne courbe qui n'était autre que la limite d'un des ovales de verre ménagés dans le châssis qu'on glissait entre les coulisses de la lanterne. Ce n'était qu'un pan de château et il avait devant lui une lande où rêvait Geneviève qui portait une ceinture bleue. Le château et la lande étaient jaunes et je n'avais pas attendu de les voir pour connaître leur couleur car, avant les verres du châssis, la sonorité mordorée du nom de Brabant me l'avait montrée avec évidence. Golo s'arrêtait un instant pour écouter avec tristesse le boniment lu à haute voix par ma grand-tante et qu'il avait l'air de comprendre parfaitement, conformant son attitude avec une docilité qui n'excluait pas une certaine majesté, aux indications du texte ; puis il s'éloignait du même pas saccadé. Et rien ne pouvait arrêter sa lente chevauchée. Si on bougeait la lanterne, je distinguais le cheval de Golo qui continuait à s'avancer sur les rideaux de la fenêtre, se bombant de leurs plis, descendant dans leurs fentes. Le corps de Golo lui-même, d'une essence aussi surnaturelle que celui de sa monture, s'arrangeait de tout obstacle matériel, de tout objet gênant qu'il rencontrait en le prenant comme ossature et en se le rendant intérieur, fût-ce le bouton de la porte sur lequel s'adaptait aussitôt et surnageait invinciblement sa robe rouge ou sa figure pâle toujours aussi noble et aussi mélancolique, mais qui ne laissait paraître aucun trouble de cette transvertébration.
Certes je leur trouvais du charme à ces brillantes projections qui semblaient émaner d'un passé mérovingien et promenaient autour de moi des reflets d'histoire si anciens. Mais je ne peux dire quel malaise me causait pourtant cette intrusion du mystère et de la beauté dans une chambre que j'avais fini par remplir de mon moi au point de ne pas faire plus attention à elle qu'à lui-même. L'influence anesthésiante de l'habitude ayant cessé, je me mettais à penser, à sentir, choses si tristes. Ce bouton de la porte de ma chambre, qui différait pour moi de tous les autres boutons de porte du monde en ceci qu'il semblait ouvrir tout seul, sans que j'eusse besoin de le tourner, tant le maniement m'en était devenu inconscient, le voilà qui servait maintenant de corps astral à Golo. Et dès qu'on sonnait le dîner, j'avais hâte de courir à la salle à manger où la grosse lampe de la suspension, ignorante de Golo et de Barbe-Bleue, et qui connaissait mes parents et le boeuf à la casserole, donnait sa lumière de tous les soirs ; et de tomber dans les bras de maman que les malheurs de Geneviève de Brabant me rendaient plus chère, tandis que les crimes de Golo me faisaient examiner ma propre conscience avec plus de scrupules."
h