quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O Reflexo do Medo

                         O REFLEXO DO MEDO
                                  Conto de  Elsa Caravana Guelman
Depois de um longo passeio pela cidade, visitando um antiquário, quando apreciei um belo quadro de Cézanne, invadindo a orla oceânica, onde me debrucei na amurada da praia para seguir o retorno das ondas do mar que se despejavam na areia, uma visita a uma loja de flores naturais, um descanso merecido num pequeno café em que passei algumas horas, bebendo e beliscando alguns petiscos, cortando ruelas bem estreitas onde crianças brincavam e quase impediam a minha passagem, resolvi que era hora de voltar ao apartamento de meus primos, Raquel e Lucas, certa de que já teriam retornado do escritório de arquitetura, onde passavam a maior parte do seu tempo, envolvidos com projetos que lhes aguçavam a criatividade.
              Era meu último dia de uma semana inesquecível, em que aproveitei verdadeiramente todo o meu tempo com passeios, visitas e grandes descobertas que me fizeram refletir sobre a beleza oculta das coisas que vamos, de pouquinho em pouquinho, encontrando. E isso se torna mais importante quando estamos preparados emocionalmente, impregnados por um misto de sensação e surpresa para receber e perceber esse sentido das coisas com as quais nos deparamos, de repente. É como se buscássemos no interior delas o cerne, a essência do que é e vem a ser, no impacto da visão.
              A visita aos primos não foi de surpresa, de uma hora para outra, não, foi muito bem planejada. Achei que estava na hora de lhes fazer uma visita já que recebera, tantas vezes, seu convite. Quando surgiram minhas férias, reservei uma semana para eles, que me receberam, pude verificar, com a maior alegria, cumulando-me com atenções infinitas. Também procurei, de minha parte, demonstrar-lhes toda minha satisfação em vê-los.
Logo que cheguei no edifício, o elevador parecia esperar-me e me conduziu ao sexto andar.            Carregava algumas lembranças que conseguira comprar no antiquário, que, bem embaladas para viagem, não me dariam trabalho, pois bastaria colocá-las na mala e pronto. Ia tirar da bolsa a chave que deixaram comigo, quando percebi que a porta estava meio aberta. E foi aí que me lembrei do comentário de Raquel sobre não haver nenhum perigo em deixar a porta aberta. Já faziam isso há anos. Era um fato natural. A portaria do edifício funcionava vinte e quatro horas, sempre com um porteiro à disposição dos moradores. Ninguém entrava sem identificação. Na certa me esperavam apesar de ter em meu poder uma cópia da chave do apartamento. Entrei pensando encontrá-los na sala. Chamei-os e não responderam e, então, me adiantei e fui acendendo, uma por uma, as luzes do corredor, da saleta e da sala. Não havia ninguém em casa, um silêncio total. Liguei a televisão e me sentei no sofá. Passado algum tempo, fui ao meu quarto levar as compras e já iniciar a feitura da mala para, no dia seguinte, bem cedo viajar.
                   Não sei o tempo que levei na arrumação da mala, ajeitando os presentes, misturando-os com as roupas para melhor protegê-los, que nem estranhei que meus primos não tivessem chegado ainda. Até bem pouco, ouvia o ruído da televisão, mas, aos poucos, o som desapareceu. Resolvi, então, verificar o que acontecera e notei que o corredor, a saleta e a sala de entrada estavam às escuras e a televisão completamente desligada. Quem os teria desligado? E por que estavam desligados? Não consegui ver nada. Chamei por Raquel e Lucas e não obtive resposta. Assustada, corri imediatamente para o meu quarto e tranquei a porta. Tive, então, a idéia de telefonar para a portaria e pedir socorro, mas me lembrei que deixara o celular junto à televisão. Nada feito. Não adiantava gritar. Eu estava certa de que, na sala, havia alguém que, não só desligara a televisão, como as três luzes. Não fora uma pane de energia, pois havia luz no meu quarto e no meu banheiro. Apesar de não ouvir nenhum barulho, eu imaginava uma pessoa escondida na sala e isso me dava a noção de um grande perigo, pois não tinha como me comunicar com ninguém. Onde estariam os primos? À medida que o tempo passava, mais eu me apavorava diante daquela situação. O que fazer? Resolvi, já que estava muito assustada, trancar-me no banheiro. Foi o que fiz, sem pensar mais. Para proteger-me, apaguei a luz e me encostei na parede porque não tinha onde sentar. E fui ficando, sem posição nenhuma, em pé, encostada na parede até bem tarde da noite, quando o sono, fortemente, me derrubou e sentei-me no chão, e, ainda encostada na parede, tentava não adormecer. Foi a pior noite da minha vida, o maior incômodo que passei naquele desconforto gélido do banheiro. Durante a noite, visões sinistras me apareciam na escuridão, dançavam ao meu redor .
                 Minha imaginação, dominada pelo medo, fazia-me ver coisas diversas, sem formas definidas, desestruturadas. E eu imaginava que, na janelinha alta do banheiro, que dava para o pátio do edifício, surgiriam mãos gigantescas querendo me pegar para o festim da sala. O teto, na escuridão, parecia estufar-se, engrandecer, e logo depois minguava, enquanto uma fresta de luz do andar de cima, como um verdadeiro disfarce de uma figura longa e fina, languidamente, descia pela janelinha e se perdia no banheiro, desfazendo o misterioso disfarce, compondo-se com a escuridão. De repente, algo bateu em mim. Sufoquei um grito. É que, sem querer, esbarrei na cesta de vime de roupa, acho eu. Quem sabe, eu pensava, meus primos estão mortos lá na sala, ou estão amordaçados e sofrem nas mãos de malfeitores, pois já havia passado tanto tempo, já era noite alta e eles não apareciam, nem vinham me procurar, o que era um péssimo sinal, uma grande indiferença. Não podia admitir que estivessem no apartamento e pudessem agir livremente.
                  Ouvi passos, poucos passos mais ou menos distantes. Se fossem meus primos, bateriam na porta à minha procura, tentariam me achar de qualquer jeito. Não me deixariam nesse terrível isolamento. Que vai ser de mim? No momento em que entrei, não fechei a porta, imaginando que estavam por vir, quando não os encontrei na sala, ao chegar. Eram tão moços, não mereciam desaparecer desse jeito, trucidados por alguém que conseguiu vencer toda a segurança do prédio e enganar o porteiro. Seria um inimigo, um conhecido ou simplesmente um ladrão qualquer?
                  Raquel casou-se muito cedo e toda a família comentava que eram muito felizes. Vi-me ao lado da minha prima criança. Tínhamos saído bem cedo de casa para não pegar sol. A lembrança daquela frescura matinal aumentou a minha angústia e eu nem podia respirar para não produzir nenhum ruído que viesse a chamar a atenção. De onde eu me encontrava não dava para saber se estavam ouvindo televisão.
                  Um dia, para caçoar de mim, Raquel subiu muito alto na árvore e não sabia descer. Precisaram encontrar alguém que subisse para trazê-la ao chão. Como demorasse o socorro, ela começou a chorar. Foi também sua primeira e ultima tentativa de subir em árvores. Nunca mais repetiu a façanha. As árvores, ela dizia, exerciam um fascínio sobre ela, por isso queria ir no mais alto, no seu cume, para ser, também, uma árvore.
Com esses pensamentos fervilhantes em minha mente, eu tentava impedir que o sono caísse sobre mim, impedindo que eu pudesse me defender se algo acontecesse. Procurava esticar, aumentar a noite, como quem empurra um obstáculo. Mas, sem que eu me desse conta, lentamente, a noite se tornou robusta, forte e imperiosa, e me abraçou como um polvo, com seus tentáculos, e eu adormeci.
                    Quando acordei, toda esmagada, com a roupa amassada e retorcida, um verdadeiro trapo, ouvi vozes. Levantei-me rapidamente e, ainda temerosa, abri a porta do banheiro e, já no meu quarto, tornei a ouvir vozes mais fortes. Fiquei tranquila, pois eram vozes conhecidas, eram as vozes de meus primos, Raquel e Lucas. E, num ímpeto intencional, como uma rajada, abri a porta do meu quarto e me deparei com eles, sorridentes e tranquilos, que me interpelaram carinhosamente:
                  -Como você dormiu, hein? Chegamos um pouco tarde e, como vimos sua porta fechada, imaginamos que estivesse dormindo. Não a incomodamos.
                  -Não aconteceu nada aqui? A porta aberta...
                  - Ah, sim, aconteceu um pequeno problema com o disjuntor da caixa de luz que controla a luz da sala, do corredor e da saleta da televisão. Quando nós chegamos estava tudo às escuras. Notamos que havia luz no seu quarto. Providenciamos logo o reparo. Com a peça nova, agora está funcionando muito bem. Mas isso, espero, não lhe causou problema, não? Você já devia estar dormindo quando ocorreu o apagão.
                     Eu não sabia o que dizer, ainda assustada com os acontecimentos da noite, quando até cheguei a imaginá-los mortos ou prisioneiros de ladrões. A minha palidez pelo desconforto e a noite mal dormida chamou-lhes a atenção.
                    - Que aconteceu com você, está tão pálida. Não dormiu bem, na certa. Venha tomar um bom café. Que pena que você vai nos deixar hoje, como eu lamento, prima, sua partida.
                     Realmente, um bom café me faria muito bem, era disso que eu estava precisando para tentar refazer as minhas forças, sentindo ainda meu corpo dolorido. E foi o que fiz, tomei um café e tanto, com biscoitos amanteigados. Que manhã deliciosa eu começava a experimentar, já agora livre do susto por que passara e tudo por causa de uma visão errada das coisas, da minha confusão e do meu temor diante de nada, pois nada aconteceu, tudo foi um terrível engano de minha parte. Se eu lhes contasse o que vivera, imaginando uma invasão, tentando vencer uma noite de horror, presa num banheiro frio, quando lá fora não acontecia nada, na certa ficariam preocupados com a minha mente fantasiosa. Fiquei em silêncio e não lhes contei nada, aceitando que tudo não passara de uma situação imaginada por mim, sem fundamento.
                  Eu me perguntava, então, como é que pude imaginar, com tantos detalhes, uma invasão noturna, em que tive de me refugiar para não ser atacada. Minha mente criou uma ambiência de terror. Na verdade, o inimigo que eu temia estava dentro de mim, era eu mesma, era minha mente, minhas sensações que me arrastavam para um perigo inexistente. Eu tentava, em vão, desvencilhar-me de mim mesma, foi uma experiência terrível. Ainda bem que ninguém ficou sabendo de nada. Nenhum vestígio, nada para comprometer-me. Assim, Raquel e Lucas poderão sentir saudades de mim, desejar que eu retorne outras vezes, sem lhes causar desassossego e preocupação.
               Em minha casa, finalmente! Comecei a dar um jeito nas coisas que deixara por ocasião da viagem. Eu me sentia ainda mal pelo que me acontecera, teria de tomar cuidado com as fantasias mentais. Meus primos viviam tão tranquilos naquele apartamento e eu, com as minhas idéias, ameacei mostrar-lhes um ambiente que lhes roubaria a paz. Sim, como é que uma pessoa, de repente, se sente ameaçada porque a luz apagou? Por que não pensei, a luz apagou porque deve ter acontecido alguma coisa com ela. Simples. Meu raciocínio preferiu enveredar pelo sinistro diante da escuridão e gerou toda aquela confusão, que ainda me aborrece muito. Preciso reencontrar minha tranquilidade perdida.
Ainda não fazia um mês do meu retorno quando recebi uma carta de Raquel. Na carta, ela me contava que viveram, ela e Lucas, uma situação terrível e angustiosa numa noite em que, tendo deixado a porta entreaberta, chegaram tarde. As luzes, de repente, se apagaram e eles se sentiram amordaçados e jogados ao chão por dois indivíduos encapuzados. Foram obrigados a revelar o segredo do cofre, de onde levaram jóias, dinheiro e documentos. Descobriram ainda peças artísticas e quadros. Eles só não sofreram mais porque não ofereceram resistência. Quem os assaltou conhecia o problema da luz e da porta aberta. Infelizmente, não conseguiram identificar os assaltantes, que se foram bem tarde da noite, na hora em que os porteiros são substituídos e há, sempre, uma confusão de entrada e saída. Permaneceram amarrados e amordaçados até o dia seguinte, quando a empregada Odete chegou para o serviço do dia e os encontrou. Desgostosos, mudaram de local e, hoje, não deixam mais a porta aberta, mas muito bem fechada. Raquel encerrava seu relato: "Acabou-se o mundo mágico por causa da crueldade dos homens."
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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O CAPACHO do mundo dos Guermantes.

O CAPACHO:

Elsa Caravana Guelman


Para o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis.  Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o naturalista  reconstitui populações animais a partir dos ossos, e florestas  a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se  uma nova idéia de artista.  O artista é aquele que viaja  nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo  sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E,  nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira  de uma sociedade, de um tempo,  de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.”
Para Novalis "O homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala, linguagens infinitas"..
Segundo  Rancière,  o novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado
 Mitologizar para Lacan significa incorporar numa mesma  história elementos que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia.
O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real  E é por essa apresentação mágica e viva que ele  é mitologizado no entender de Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício,  colorido e imortalizado pelo seu passado e lendas medievais.
Diante dele o herói se detém, como se muralhas gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória, quando, por um  toque mágico, o capacho não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura, de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente,  ao mundo imaginário dos Guermantes para então  ser transportado, em seguida, ao mundo da arte.
. Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante onde as pessoas, quando convidadas,  limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos Guermantes. Nada mais que isso.  Para Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que se  achava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação exóticas, o capacho gasto da margem.”

O capacho dos Guermantes, como mito,  representava a linha divisória intransponível entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul  no mapa mundi.
É através do mito que um objeto   insignificante ganha significação simbólica.. O Capacho torna-se, então,  falante, numa linguagem infinita,  e passa a  exibir  " as marcas de sua história e os signos de sua destinação." porque foi mitologizado, entregando, desse modo,  seu  segredo,  pela  incoporação do real e do imaginário..

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Marcel Proust - À Sombra das Raparigas em Flor - 22 de dezembro de 2013 às 17:42 O AQUÁRIO DO GRANDE HOTEL DE BALBEC Elsa Caravana Guelman Marcel Proust, segundo André Alain Morello, responsável pelas Notas constantes do livro À Sombra das Raparigas em Flor, num “bathyscaphe”, convida seus leitores para um mergulho profundo nas águas para explorar o mundo submarino, tal qual o capitão Nemo no Nautilus. O autor observa atentamente uma noite em que as fontes de luz iluminavam a grande sala de jantar do hotel. Comparou o que seus olhos captaram a um imenso aquário, vendo-se pela parede de vidro a população operária de Balbec, os pescadores e pequenos burgueses, que se comprimiam, invisíveis, para observar a vida luxuosa da aristocracia, tão maravilhosa para as pessoas mais humildes como eram os estranhos peixes e moluscos. Há, então, uma grande questão social exigindo resposta: será que a parede de vidro poderá proteger para sempre o festim daquelas feras extravagantes? Será que um dia as pessoas obscuras que observam tal espetáculo não virão capturá-las em seu aquário para devorá-las? Enquanto isso não acontece, quem sabe se no meio daquela multidão paralisada e surpresa haveria algum escritor, algum amante da ictiologia humana que, ao observar as mandíbulas de velhos monstros femininos se fecharem após engolirem o alimento, tentasse classificá-los pela raça, pelos caracteres inatos e adquiridos , graças aos quais uma velha dama sérvia, “cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho”, pois desde a infância vive nas águas doces do Faubourg Saint-Germain, come sua salada como uma La Rochefoucauld . Acontece que esse escritor, esse amante da ictiologia humana, interessado na parte da zoologia que cuida dos peixes, existe, sim, é Marcel Proust, que se sente distante do festim aristocrático do Grande Hotel de Balbec. E é, como crítico daquela sociedade sem escrúpulos, valores morais e artísticos, que ele penetra no bathyscaphe e , numa “descente”, vai às profundezas das águas para explorar os abissais da alma e do comportamento humano e estudá-los no ambiente dos peixes, comparando-os às extravagantes espécies marinhas. E como são ricas e simbólicas as suas reflexões, traduzidas em metáforas revolvidas nos escombros do seu inconsciente mais recôndito! Elas parecem atravessar os séculos nas profundidades oceânicas para, finalmente, emergir em verdades insofismáveis, transformadas em signos e mitos, deixando o autor completamente isolado dos aristocratas do Faubourg Saint-Germain, dos burgueses e dos outros em geral para os tempos vindouros, numa redoma impenetrável, como a redoma da Arte com destino à posteridade. Eis o trecho de Marcel Proust: "...E à noite não jantavam no hotel, onde os focos elétricos, jorrando luz no grande refeitório, transformavam-no em um imenso e maravilhoso aquário, diante de cuja parede de vidro a população operária de Balbec, os pescadores e também as famílias de pequenos burgueses, invisíveis na sombra, se comprimiam contra o vidro para olhar, lentamente embalada em remoinhos de ouro, a vida luxuosa daquela gente, tão extraordinária para os pobres como a de peixes e moluscos estranhos: ( uma grande questão social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos e se a gente obscura que olha àvidamente de dentro da noite não virá colhê-los em seu aquário e devorá-los). No entanto, em meio daquela multidão suspensa e atônita no negror da noite, talvez houvesse algum escritor ou estudioso da ictiologia humana, que ao ver como se fechavam as mandíbulas dos velhos monstros femininos para engolir algum pedaço de alimento, talvez se entretivesse em classificar tais monstros pelas suas raças, pelos caracteres inatos e também por esses caracteres adquiridos, graças aos quais uma velha dama sérvia, cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho, comendo salada como uma La Rochefoucauld, pois desde a infância vive na água doce do faubourg Saint-Germain.” (...) “Et le soir ils ne dînaient pas à l’hôtel ou, les sources électriques faisant sourdre à flots la lumière dans la grande salle à manger, celle-ci devenait comme un immense et merveilleux aquarium devant la paroi de verre duquel la population ouvrière de Balbec, les pêcheurs et aussi les familles petits bourgeois, invisibles dans l’ombre, s’écrasaient au vitrage pour apercevoir, lentement balance dans des ramous d’or, la vie luxueuse de ces gens, aussi extraordinaire pour les pauvres que celle de possons et de mollusques étranges ( une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger). En attendant peut-être parmi la foule arrêtée et confundue dans la nuit, y avait-il quelque écrivain , quelque amateur d’ichtyologie humaine, qui regardant les mâchoires de vieux monsters féminins se refermer sur un morceau de nourriture engloutie, se complaisant à classer ceux-ci par race, par caractères innés et aussi par ces caracteres acquis qui font qu’une vieille dame serbe dont l’appendice bucal est d’un grand poisson de mer, parce que depuis son enfance elle vit dans les eaux douces du faubourg Saint-Germain, mange la salade comme une La Rochefoucauld". Antes desse espetáculo noturno, o autor relata uma situação bem desagradável que teve de enfrentar na sala de almoço do hotel, mostrando o comportamento negativo de um hóspede, que o fez levantar-se, sem desculpas, da mesa que lhe fora indicada, por engano, interrompendo-lhe a refeição, pois havia uma reserva no nome dele, pedindo em voz alta ao mordomo que cuidasse para que semelhante erro não se repetisse por ser bastante desagradável que “gente que ele não conhecia” tomasse conta de sua mesa, o que constituiria, para ele, um verdadeiro insulto. Fotos: Google.

Marcel Proust - Jacques Lacan - Jacques Rancière O MITO DO CAPACHO : O Caminho de Guermantes - de Elsa Caravana Guelman. Para o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis. Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o naturalista reconstitui populações animais a partir dos ossos, e florestas a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se uma nova idéia de artista. O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E, nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.” Para Novalis "O homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala linguagens infinitas".. Segundo Rancière, o novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado Mitologizar para Lacan significa incorporar numa mesma história elementos que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia. O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real E é por essa apresentação mágica e viva que ele é mitologizado no entender de Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício, colorido e imortalizado pelo seu passado e lendas medievais.” “...O palácio de Guermantes começava para mim na porta do seu vestíbulo...” Diante do capacho o herói se detém, como se muralhas gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória, quando, por um toque mágico, num convite da duquesa de Guermantes, o capacho não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura, de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente, ao mundo imaginário dos Guermantes para então ser transportado ao mundo da arte. . Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante onde as pessoas, quando convidadas, limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos Guermantes. Nada mais que isso. Para Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que se achava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação exóticas, o capacho gasto da margem.” O capacho dos Guermantes, como mito, representava a linha divisória intransponível entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul no mapa mundi.EL PROUST

sábado, 30 de agosto de 2014

AS BABAS DO DIABO < conto de Julio Cortázar.

                AS BABAS DO DIABO, conto de Julio Cortázar.
                      De Elsa Caravana Guelman


Acompanhar os passos aleatórios do fotógrafo Roberto-Michel do seu apartamento, número 11 da rua Monsieur-le-Prince até a Ilha de Saint-Louis, em que ele se deixa levar pelo fascínio secreto das ruas como um verdadeiro e insaciável flâneur,  até então, sem nenhuma intenção do que um simples caminhar, não nos leva a adivinhar o emaranhado dramático que ele enfrentaria, naquela manhã amena e um pouco ensolarada, banhada pelo vento,  de um domingo de outubro, usando sua máquina fotográfica para registrar uma cena insólita na ponta da Ilha de Saint-Louis, quando pretendia tirar fotos da Conciergerie e da Saint-Chapelle.  
                Trata-se do conto “As babas do diabo”( Las babas del diablo) de Julio Cortázar, que oscila entre o real e o fantástico,  proporcionado por uma visão ambígua que é sustentada pela conceituação     alegórica e simbólica na narrativa, contada, alternadamente,  na primeira pessoa, critério subjetivo,  e na terceira pessoa, critério objetivo, deixando o leitor um tanto desnorteado e confuso,  obrigando-o a buscar no duplo sentido dos itinerários a coerência da história apresentada pela fotografia e pelo relato.
                 Ao chegar no término do seu destino, nessa manhã, na ponta da ilha, depois de passar pelo Quai de Bourbon, onde existe uma pracinha romântica “que dá o peito inteiro ao rio e ao céu”,  o fotógrafo se instala no parapeito e, ainda, muito distraído,  acende um cigarro e deixa seu olhar vagar por todo aquele espaço aberto, em direção à luz do sol (saíra de casa desejando encontrar um sol radiante),  quando, de repente, avista um jovem, um “muchachito”, acompanhado de uma mulher loira, muito mais velha do que ele, podendo ser sua  mãe. A diferença de idade o atraiu, de imediato, naquele casal, notando um jeito muito estranho e envergonhado no jovem, tentando se esquivar,  enquanto a mulher, de olhos negros, num contraste com sua pele branca,   delgada e esbelta, insinuava-se e procurava atraí-lo, como uma ave de rapina, em atitudes cada vez mais suspeitas,  tentando colocar o rapazinho entre ela e o parapeito, esmagando-o.
                Michel acabava de descobrir uma pessoa dentro de um automóvel, no local da cena. “Gostaria de saber o que pensava o homem do chapéu cinza  sentado ao volante do automóvel no cais que levava à passarela, e que lia o jornal ou dormia”. Nem cogitou dele para sua foto, era um simples detalhe no espaço que se descortinava à sua frente.
                O fotógrafo levantou a câmara  e fingiu estudar uma posição que não incluía os dois, mas ficou na espreita para os surpreender num gesto revelador. E, quando a mulher tentava subjugar os últimos  restos de liberdade do menino, numa lenta tortura deliciosa, Roberto-Michel, numa sequência, já fora dali, os imaginou aos  beijos brincalhões até ele tentar despi-la numa cama de edredom lilás. O menino, adolescente, vivia uma transformação física e mental. Dava para sentir a sua ansiedade diante da insinuação da mulher. Armou  tudo no visor, compreendendo a árvore, o parapeito e o os raios do sol das onze horas e tirou a foto. Os dois, surpreendidos, olharam o fotógrafo, sabendo-se fotografados em cena chocante.
                A mulher ficou muito irritada , exigindo que lhe entregasse o rolo do filme, argumentando que ninguém pode tirar foto sem permissão. Sua voz seca e clara, com sotaque de Paris, subia de cor e de tom. Enquanto isso, o menino caia na realidade, dava meia-volta e começava a correr, passando ao lado de um automóvel e perdendo-se como um “fio da Virgem no ar da manhã”. O próprio autor adverte que os fios da Virgem também são chamados de babas do diabo.
                Em meio  à confusão, ouviu-se a porta do automóvel batendo. “O homem de chapéu cinza estava ali, olhando para nós. Só então compreendi que ele desempenhava um papel na comédia.” Estavam juntos na operacão que visava a aprisionar o menino se o fotógrafo não tivesse aparecido e não os fotografasse, desarmando-os.
                O homem, levando na mão o jornal que fingia ler,  caminhava cautelosamente e cuidadosamente,  ostentando sapatos de verniz, de sola fina,  na direção da mulher loira que discutia com o fotógrafo e, com quem ele, agora, vindo em sua defesa,  demonstrava íntima ligação.
Aquele homem estranho , de feição repugnante  era o mentor diabólico daquele plano de corrupção do menor  , daí a expressão babas do diabo. Aquele homem não tinha aparência humana, ocultando algo diabólico. O fotógrafo  riu na cara deles e começou a andar, fugindo do local  um pouco mais devagar que o garoto.
                Quando  o fotógrafo olhou para trás, viu que eles não se moviam e que o homem havia deixado o jornal cair.
                O que existe na primeira parte da trama é a preocupação com a fotografia, de como e onde tirar uma foto. A segunda parte da trama gira em torno da revelação das fotos tiradas pelo fotógrafo naquela manhã, já tendo ocorrido vários dias,  num quarto de um quinto andar.  A única foto que lhe interessava era  a instantânea do casal na ponta da ilha, revelou-a e a ampliou,  pregando a ampliação dessa foto  numa parede do quarto para olhar e recordar a cena petrificada da mulher, do menino, da árvore, do céu azul, do parapeito, em que nuvens e pedras se confundiam numa só matéria.
                Olhando a ampliação, sentia-se satisfeito por ter ajudado o menino a escapar a tempo de uma armadilha, embora sentisse que sua partida, como fotógrafo intrometido,  não tinha sido brilhante, sem sequer aludir aos privilégios, prerrogativas e direitos do cidadão.
                Primeiro foi um tremor quase furtivo das folhas da árvore naquela ampliação de oitenta por setenta, depois foram as mãos da mulher, fechando  devagar, dedo a dedo. O garoto, parecendo um prisioneiro, abaixara a cabeça e a mulher falava junto ao seu ouvido, enquanto com a mão acariciava sua face. O que a mulher lhe explicava fazia-o olhar para o automóvel com o homem de chapéu cinza, descartado da foto e refletido nos olhos do garoto. Viu o homem sair do carro e parar perto deles, “não era o primeiro que mandava uma mulher na frente para trazer-lhe os prisioneiros atados com flores”. Como aceitar  que a cena que aparecia na ampliação, que ele fotografara, congelando tudo naquele momento,   começasse a se mover, num desenvolvimento totalmente natural dentro daquele quarto, iniciado com o estremecimento das folhas da árvore?  A narrativa enveredou, então, pelos labirintos do fantástico, onde o petrificado adquire vida e movimento.
                O resto imaginou diante da ampliação: “o automóvel, uma casa qualquer, as bebidas, as lâminas excitantes, as  lágrimas tarde demais,  o despertar no inferno”. E ele não podia fazer mais nada porque a fotografia já havia sido tirada. Enquanto eles estavam livres, vivos no rumo de um futuro, ele, o fotógrafo,   era prisioneiro de um outro tempo, num espaço restrito a um quarto de um quinto andar, enquanto os outros estavam na Ilha de Saint-Louis entre as árvores e os pássaros. Precisava gritar ou fazer algo que desmontasse “os andaimes de baba e perfume”. Gritou intensamente, um grito de terror, tentativa de  uma nova intervenção do fotógrafo, que o aproximou do primeiro plano da imagem, sem perder a mulher de vista e do homem que o olhava raivoso com os buracos negros  que tinha no lugar dos olhos, quando um pássaro fora de foco passa num voo diante da imagem e, então, o menino reage e consegue  escapar deles, fugindo com os cabelos ao vento, como uma jovem aranha que é levada em suas descobertas,  “aprendendo enfim a voar sobre a ilha, a chegar à passarela, a se virar para a cidade”, deixando o fotógrafo sozinho, diante do homem e da mulher, sequiosos de vingança.
                O homem, com sua língua negra,  levantava lentamente a mão, aproximando-as do primeiro plano, “um instante ainda em perfeito foco, e depois ele todo um vulto que apagava a ilha, a árvore, e eu fechei os olhos e não quis olhar mais,  e cobri o rosto e desandei a chorar feito um idiota”, enquanto passava uma grande nuvem branca. E, ao abrir os olhos e secá-los com os dedos, Michel viu: “o céu limpo, e depois uma nuvem que entrava pela esquerda, passeava lentamente sua graça  e se perdia pela direita”.
                O que acontece, realmente, ao fotógrafo? Na segunda parte da narrativa, toda ela impregnada pelo fantástico ao introduzir vida e movimento à ampliação da foto,  tirada no domingo, e revelada, vários dias depois,  num quarto de um quinto andar, mostra o movimento das mãos do homem que se aproxima do primeiro plano, após a segunda fuga do menino. Na  primeira parte da narrativa é dito que,  ao se aproximar de Michel, na Ilha,o homem deixa cair o jornal. Por que deixou cair o jornal? O que ocuparia, então, sua mão ? Seria o assassinato do fotógrafo, em plena ilha, quando se recusou a entregar o rolo do filme?  Entretanto, em nenhuma das narrativas se diz claramente, apesar de sutilmente sugerido, que ele foi assassinado; na segunda ficou evidenciado que, ao fechar os olhos, ele não quer ver mais, quando passa, então,  uma grande nuvem branca e, quando os abre,  ele vê o céu limpo e depois uma  nuvem que entrava pela direita, dava um passeio e se perdia pela esquerda; na primeira, na descrição da cena final, o fotógrafo, imprensado pelo homem e pela mulher, num triângulo insuportável, riu na cara deles e começou a andar um pouco mais devagar  que o menino ao fugir e,  ao se virar para olhar para eles, notou que não se moviam, mas o homem havia deixado cair o jornal.
                Há, para contar a história do fotógrafo Michel,  as expressões metafóricas “hilos de la Virgen e babas del diablo” , que, apesar de sinônimos, pelo autor,  representam valores contraditórios. A metáfora “fios da Virgem” significa o vôo ínicial das  jovens aranhas nos campos,  ainda inseguras, como se estivessem numa puberdade e fossem jogadas no mundo, num desenvolvimento natural até atingir  a maturidade. Em sua passagem pelos campos,no mês de outubro, elas deixam nas árvores uma infinidade de   fios brancos que, muitas vezes, são levados pelo vento e se espalham pela natureza. Esta metáfora foi, igualmente, utilizada por Cortázar no poema “Réquiem”, em homenagem a Bosie, amante de Oscar Wilde.

                Ao descrever a fuga do menino, Cortázar  pensa  na aranha jovem, em sua fuga pelo campo, arriscando-se quando é levada pelo vento, ao afirmar “o coitado achando que caminhava e na realidade fugindo às carreiras, passando ao lado do automóvel, perdendo-se como um fio da Virgem no ar da manhã”. O menino, na puberdade, arriscava-se, como a aranha, no seu vôo inicial, quase interrompendo seu caminhar à maturidade, naquela manhã. E, logo a seguir. “Mas os fios da Virgem também são chamados de babas do diabo”, referindo-se  ao homem de chapéu cinza que saltara do carro e enfrentava o fotógrafo, outra metáfora que enriquece a narrativa, pois, além de  simbolizar, também, em diversas regiões, o aparecimento avassalador e dominante dos  fios brancos nos campos em épocas de flagelos, misérias e desgraças, por obra de um ser maligno,  um verdadeiro arquétipo do mal, ganha  o título do conto de Julio Cortázar.

sábado, 23 de agosto de 2014

UM PASSEIO PELA BIBLIOTECA

UM PASSEIO PELA BIBLIOTECA
Conto de Elsa Caravana Guelman
                Chovia torrencialmente quando cheguei à casa de meu tio Eduardo (decidi aquela visita logo que acordei, para não ficar protelando, vai hoje, vai amanhã), depois de vencer as mais terríveis dificuldades no trânsito, verdadeiramente caótico, engarrafado e até com  batidas decorrentes da chuva. Juntava esses contratempos ao meu dia  preocupante e agitado. Atendi, pouco antes de sair de casa, um telefonema de Onofre, ele cuida de um pequeno sítio nosso e foi logo traduzindo o seu amargor pela vida, comunicando que em breve deixaria o emprego, justificando que agiria dessa maneira porque pedira o divórcio à esposa, considerando seu casamento desfeito, por isso iria embora. ”Vou em busca da minha felicidade”. Que desagradável, como vou dar essa notícia a meus pais? Mas só quando voltar da casa de meu tio é que falarei com eles.  Foi aí que a chuva começou, de fininho, e em pouco tempo engrossou, até se transformar, quase, em tempestade. Nem sei como cheguei, mas fiquei totalmente encharcada de tanta água. Nem meu tio e nem minha tia estavam em casa. Viajaram  - ao que então fiquei sabendo -  de repente, numa viagem de negócios.  A culpa fora minha, deveria ter avisado de que iria visitá-los, mas não me dei conta disso porque eles nunca saíam, era uma dificuldade fazê-los arredar de casa. Ele sempre dizia que os degraus  da entrada, que antecediam ao capacho,  o punham lá dentro e não o deixavam mais sair. Minha tia, também, ficava ouvindo música, lendo um livro ou, na maioria das vezes, exercitando sua pintura. Esse casal maravilhoso, pois, não estava em casa e nem voltaria logo, só depois de alguns dias. O que eu faria, então? Um trajeto de volta, com aquela chuva, seria quase impossível. Já que trouxera uma pequena valise, eu deveria ficar, foi o que me disse Fernanda,  a dedicada senhora que os acompanhava há anos e cuidava da casa com a ajuda de duas auxiliares e um jardineiro. A razão da minha visita partira de um convite deles, era para conhecer a biblioteca, que fora totalmente reformada para receber muitos volumes, grandes obras de uma vasta coleção que o tio adquirira num leilão. Queria que eu identificasse e relacionasse todas as obras cronologicamente, o que me faria gastar muito tempo (será que vou conseguir, que me empenharei nisso, de verdade?).  Ele pensava em fazer um estudo da civilização nas diversas épocas históricas. Era uma tarefa apaixonante, eu sei. Concordei, então, em vir primeiro e tomar conhecimento do que existia para sentir como deveria proceder depois, estabelecendo um plano de estudo e pesquisa. Nem sei se conseguiria dar conta de uma empreitada tão gratificante (eu sempre quis, é verdade), mas tão extensa.  Havia em mim, não posso negar, uma vontade de conhecer e penetrar nessa biblioteca, pois, se a antiga já era elogiada pelos amigos, imagine, agora, remodelada para receber tantas obras primas!
                Resolvi ficar, mas não o tempo que ficaria se eles estivessem em casa.  Ocupei o quarto de hóspedes, que ficava no andar superior, e minha primeira providência foi tomar um banho e mudar minhas roupas encharcadas pela chuva.  Percebi que a chuva não parou, pelo contrário, aumentou ainda mais, assustadoramente, o que obrigou Fernanda a  acender algumas velas, temendo que a luz viesse a faltar em algum momento próximo. Parecia que estávamos num dilúvio, era uma chuva grossa que caía em catadupas, sem parar, fazendo com que nada se enxergasse através das janelas. A casa ficava no centro de um terreno arborizado e florido. As folhas do arvoredo, fustigadas pelo vendaval que uivava,  se elevavam como se bailassem numa composição soturna e lúgubre.  Sucediam-se os raios e, logo após, os trovões. A gente sempre se assusta com os trovões, ainda sabendo que o perigo, que vem com  os relâmpagos, quando eles estrondam já passou...
                O jantar foi servido normalmente no salão, embora eu protestasse não ser necessária nenhuma cerimônia comigo. Não houve jeito, Fernanda e as outras duas empregadas nem me ouviram e tudo fizeram para me agradar. Não sei se sabiam o porquê de eu ter vindo. Procederam da mesma forma que procederiam se os patrões estivessem em casa e recebessem uma visita. O que jantei? Um filé à francesa, e isso porque, com a viagem dos patrões, não imaginavam que fossem receber alguém. Terminado o jantar, depois da sobremesa, licores e café (acho que abusei um pouco de um licor exótico, impregnado de uma  fruta africana, com amêndoas e damascos, estava delicioso, tinha a figura de um elefante no rótulo), sentei-me na varanda envidraçada e acompanhei o espetáculo que o temporal oferecia naquela noite que mal começava.
                Fernanda me entregou um castiçal com vela e uma caixa de fósforos, para usar no caso de faltar luz, e se retirou, dizendo que eu ficasse à vontade, fizesse o que bem entendesse e, se precisasse de alguma coisa, poderia chamá-la no quarto no fim do corredor. Como determinadas pessoas são tão bem servidas, quase protegidas, o que lhes permite desenvolver suas atividades sem sobressaltos, arranhões ou maiores dificuldades, porque nada as perturba nesse mar de tranquilidade em que vivem!  Assim viviam meus tios e, por isso mesmo, ele encontrava tempo e ânimo para desenvolver tranquilamente seus temas e projetos culturais, como esse do desenrolar das civilizações no decorrer dos séculos e milênios.
                Aproveitando a luz que ainda existia, apesar de a chuva não ter diminuído em nada o seu volume, entrei na biblioteca. Aquele silêncio seria muito bem vindo, agora, para identificar a posição dos livros nas estantes. De um antigo salão de festas, meu tio fez nascer essa biblioteca, que era, sem dúvida, mais um eloquente motivo para retê-lo em casa. As prateleiras iam até o teto, alcançando um segundo andar, com escadas e corredores por onde se podia andar para retirar os livros colocados nas posições mais altas.  Quanto custa o amor à arte? Acho que não existe nada que possa se traduzir em preço para a arte.
                Depois de andar um pouco, sentei-me numa poltrona muito fofa e confortável, convidativa a um descanso longo. Meus olhos erraram e, de repente, numa prateleira de literatura infantil, vislumbrei o livro de Charles Perrault, numa encadernação primorosa, de primeira linha. Meu olhar não deixava nem a prateleira e nem o livro, ambos me  prendiam. Lembrei-me da história do Gato de Botas, tão inteligente e esperto. E tudo aconteceu num abrir e fechar de olhos, nem sei como explicar.  Foi tudo muito rápido, numa fração de segundo ele saiu do livro, saltou diante de mim, o pequeno Gato de Botas, e foi aumentando de tamanho, vestido com sua roupa de cordões encarnados, com bordados a ouro e preciosos diamantes. Pediu-me que fizesse silêncio para não assustar seu senhor, o Marquês de Carabás, e a princesa,  sua esposa. Pegou-me pela mão, dizendo que me levaria ao reino do saber, que eu tivesse confiança nele pois tudo ia dar certo, assim como fizera com seu senhor, que tinha sido muito pobre e fora transformado em um verdadeiro marquês por ele, o Gato de Botas.  Ele me levaria, agora, à mais fantástica das aventuras.
                O gato se fizera, num instante,  ereto e me puxou pela mão.  Juntos, penetramos num longo corredor em que eu não conseguia enxergar nada e, no final, uma luz brilhante apareceu. Em torno dela, uma claridade tão ofuscante, tão forte, que me  impedia de manter os olhos abertos.  O gato continuava a pedir que fizesse silêncio e esperar, mas logo a seguir saímos dessa claridade e, antes de entrar em outro corredor, ele me perguntou se eu gostaria de ver as coisas numa sequência cronológica ou preferia encontrá-las ao sabor do acaso. Em ordem cronológica daria muito trabalho, explicou, pois teríamos de ir às mais remotas origens;  ao acaso, veríamos o que fôssemos encontrando pelas bifurcações dos caminhos.  
                O gato  não parava de falar, queria que eu entendesse que fora o acaso que tornara possível o nosso conhecimento e encontro na biblioteca. Meus olhos procuravam um livro qualquer e o que encontraram? Na prateleira da  literatura infantil lá estava ele, precisando ser achado, descoberto e ser, assim, salvo. Tinha de confessar que não voltaria mais para o livro, nunca mais. Desse modo, como estava me prestando esse favor, conduzindo-me aos grandes personagens das obras, quando terminasse essa ajuda procuraria viver uma nova vida. Não mais queria ficar encarcerado nas páginas de um livro, esperando que, para dele sair, alguém o buscasse ou o encontrasse por acaso,  como sucedera  comigo.
                Enquanto assim caminhava, pude ver coisas incríveis nesse mundo dos livros, sucedendo-se como nas imagens de um caleidoscópio.  Então, o Gato de Botas gritou, assustando-me. Abrira uma porta e eu penetrei numa estranha dimensão em que tudo se passava simultaneamente. Fiquei tonta ao ver que passado e presente se fundiam numa mistura eclética e, ao mesmo tempo, rompiam todos os liames, fixando-se em espaços diferentes .
                (Minha primeira aparição foi uma mulher de beleza cândida, muito suave. Era Beatriz, que andava silenciosamente no Paraíso, enquanto o poeta Virgílio guiava Dante no Inferno. Captei o sofrimento de Dante, consolado por Virgílio, seu mestre. Beatriz se aproxima, ela quer guiar Dante no Paraíso, mas ele está cheio de dúvidas. Na vida real, Beatriz era totalmente indiferente a Virgílio,  que a amava platonicamente. Surgiam, como num teatro, quando sobe a cortina, cenários de pureza, simbolizando o Paraíso,  cenários de dúvidas, o Purgatório, e os  de imenso sofrimento, característicos do Inferno. Nessa travessia de Dante, outras sequências apareciam em planos diferentes, de um lado Sócrates e Homero, do outro Alexandre, o Grande, e Átila, rei dos Hunos.)
                O gato me puxou, logo em seguida, e dei adeus à Divina Comédia. Que terrível e apressado aquele gato, que não me deixava raciocinar e nem me despedir daqueles personagens  que nunca mais  veria!   Mostrou-me um homem em pé, olhando fixamente o mar. 
(Eis-me diante de Gilliatt, marinheiro, trabalhador do mar, que, conhecendo o fundo do  oceano como ninguém, sabendo como penetrar e triunfar diante  dos perigos das águas profundas,  salvou a peça principal do navio a vapor.  Amava o mar da Normandia e se sentia feliz ao domar aquelas águas profundas e perigosas.  Quando conheceu seu amor, Déruchette,  e esse amor não foi correspondido, sentiu-se destruído sem nenhuma esperança.  Victor Hugo estaria presente, como Dante? Não, Dante também era personagem. Encontrei Gilliatt imerso em  profunda tristeza   Continuava muito triste, possuído do mesmo sentimento que  sentiu no  dia em que viu o navio zarpar com a mulher que amava, a mesma angústia que o fez penetrar nas águas, entregando-se,  a buscar o fundo dos oceanos como seu eterno leito de morte,  para esquecer sua mágoa.)
                Sem que o gato tivesse me impedido, dei uma reviravolta e subi pela escada, num verdadeiro caracol, e fiquei surpresa ao encontrar tão bela e tão querida personagem. Foi um achado meu.
                (A mulher continuava muito bonita e enigmática, também.  Era Capitu, a ”cigana de olhar oblíquo e dissimulada”, como foi definida pelo agregado no romance de Machado de Assis.  Estava muito discreta, mas seu olhar varava distâncias. Educadamente, não trocou palavra, olhou, sorriu e saiu de nossa vista. Nem pude lhe perguntar sobre Bentinho. Ou sobre Escobar? Morreria no exílio imposto por Bentinho, que a condenara apesar de nunca a ter esquecido,  a primeira e única amada de sua vida. Capitu estava só, sem Bentinho e o filho Ezequiel, que morrera de febre tifoide e não de lepra, como seu pai havia desejado.)
                Surgiu-me então alguém que me deixou sem poder balbuciar sequer uma palavra, muda.  Como Joyce teria recriado o  Ulisses homérico ?
(Leopold Bloom tinha diante de si a Odisséia, descansava da leitura, ao lado de seu  amigo Stephen Dedalus.  Um dia cheio  tiveram pela frente, naquele 16 de junho de 1904.  Conseguiriam vivenciar toda uma vida num só dia, vencendo semelhante maratona de dificuldades? Onde estaria Molly, ainda na rua Eccles, esperando pelo marido para o jantar? Simultaneamente, eles ressurgem: Bloom como Ulisses, Molly como Penélope e Dedalus como Telêmaco, o filho. Novo contexto ou paródia? Bloom é desajeitado e busca desesperadamente o filho Dedalus e Molly não é a  fiel Penélope.)
Eu queria ver mais, de mais perto, poder, também, fundir-me com todos esses personagens, mas algo incrível se passava. Apesar de vê-los, de senti-los, havia uma camada tênue, quase invisível, que nos separava. Jamais poderia tocá-los ou dirigir-lhes a palavra. Não pairava no ar nenhum som.  Saídos dos livros, semelhavam dever a eles retornar dentro de uma fagulha ínfima de tempo.
                (Raskolnikov ainda se sentia preso ao crime que cometera e o castigo, que deveria redimi-lo, como que contagiava-o. Poderia explicar as verdadeiras razões que o haviam compelido a cometer um crime tão terrível, como se tivesse sido possuído pelas forças mais nefastas do mal? Ele não se  detinha, parecia inseguro, torturado por dúvidas e angústias. Refugiava-se num capote preto  para afastar o frio das ruas, mas, na verdade, o frio de sua própria alma era muito maior e o petrificava. Ensejava por liberdade, mas não conseguiria vivê-la, cometera um monstruoso crime,  deveria entregar-se, só assim teria uma esperança de salvação.  Não conseguia sair ileso desse círculo vicioso e fatal.)
 `             A emoção, a essa altura,  começava a dominar-me. Que felicidade poder sentir o mundo dos livros e o que ele, na verdade, encerrava  em suas páginas. Novo alento e me senti bem perto de uma nova personagem, moldada em penumbra.
(Eugênia Grandet, já bem envelhecida,  peguei-a apagando a iluminação da casa, como fazia seu pai, e deixando tudo no escuro  para economizar a luz, e logo ela, que tanto sofrera na mocidade com o desconforto que o velho impunha à família. A heroína de Balzac continuará  sua vidinha inútil até o fim de seus dias.  E isso se explica porque nenhuma esperança  de salvação poderia atingi-la, sem amor e alegria viveria naquela soturna casa em ruínas, embora pudesse viver num palácio com a riqueza acumulada,  após grande decepção de um  amor frustrado e um casamento em que ela fora usada, unicamente, por sua fortuna. Era deplorável a situação de Eugênia, viúva, sem filho e sem família,  vivendo mesquinha e miseravelmente como vivera seu pai nos seus dias, cercado de ouro.)
                 Como é difícil entender que a vida se escoe dessa maneira, sem nenhuma luz ou esperança de um dia de sol, como vivia  a personagem de Honoré de Balzac!  Eu teria, entretanto, de continuar minha caminhada. Esquecer o que não estava em meu alcance modificar.  A  mim cabia, apenas, ver e sentir, nenhuma ajuda poderia dar, nada conseguiriam de mim, nenhuma interferência, o que estava escrito assim permaneceria até o final dos séculos. Continuei andando, andando, com o gato à minha frente, cada vez mais entusiasmado, como se me dissesse que havia muita coisa para ser vista ainda.  E, de fato, havia,  e eu o descobri logo que passamos por um grande pátio aberto e entramos numa área mais suntuosa.
                (Aparecia-me o Grande Hotel de Balbec, à noite, quando as luzes se irradiavam pela grande sala de jantar. Muita gente havia comparecido para um jantar especial. Não vi o narrador de “À la Recherche du Temps Perdu”, Marcel (?), mas pude ver o que ele via e retratava. Os hóspedes, todos elegantemente trajados, jantavam euforicamente no salão com suas imensas janelas envidraçadas, abertas as cortinas e deixando transparecer e irradiar, não só a imensa claridade como a riqueza com que a aristocracia se perpetuava,  para os jardins, onde  a população operária de Balbec, os pescadores e também  as famílias dos burgueses, que estavam invisíveis na penumbra,  se comprimiam e colavam seus  rostos no vidro das janelas para observar o que lá dentro acontecia.  E o que viam?  Uma gente tão fantástica como estranhos peixes e moluscos num luxuoso banquete.  O narrador da obra de Proust compara aquela cena a um imenso aquário, cuja parede de vidro envolvia os participantes do jantar e, preocupado, questiona se aquela fronteira envidraçada protegerá para sempre  aquelas pessoas extravagantes, das pessoas obscuras que as observam, quando  elas decidirem capturá-las no aquário para devorá-las.)
                Depois da grande emoção causada por essa cena que me envolveu por completo, seguimos e paramos, eu e o Gato de Botas, diante de uma porta que lembrava um hospital e observei, pelo vidro externo, um homem deitado numa cama, que se debatia inutilmente.
                (Dahlmann, o bibliotecário de Borges, debatia-se, com efeito, naquela cama, corroído por uma febre muito alta que lhe causava alucinação. Debatia-se como se estivesse lutando desesperadamente para salvar sua vida. Balbuciava palavras e emitia sons sem nexo. Fisicamente fragilizado por uma septicemia,  estava entre a vida e a morte.  Tudo dependia da reação de seu organismo para enfrentar e vencer a violenta infecção que se alastrara por todo seu corpo. Ao que tudo indicava, morreria, ali,  naquela noite ou na noite seguinte, não poderia ir muito longe. Não gostaria de morrer daquele jeito, mas, sim,  como o avô do próprio Borges, lutando nos pampas, como deveria lutar um verdadeiro argentino. Tenta fugir da morte comum e sonha com a morte épica dos heróis.  Para cumprir esse destino glorioso teria de ir para o Sul.  É o que mais desejava.  Mas, para isso,  teria de melhorar, ter alta, sair do hospital e ir para  sua estância, onde encontraria  certamente um compadrito que o desafiaria e um gaucho que lhe atiraria uma faca para que pudesse defender-se, lutando como deve lutar um homem. E é isso que acontece com Dahlmann ao aceitar o desafio, embora não soubesse usar a faca, e partir para a luta. Cumpre o  seu destino. Que glória, não morrer em cima de uma cama fria de hospital!)
                Comoveu-me o drama do bibliotecário borgiano e tentei compreender os seus motivos de honra oriundos da lembrança de um passado heroico.  Essa peleja fantasmagórica, entretanto, só poderia ter lugar num sonho, num sonho que espelhasse valentia e coragem, sonho esse que só poderia ocorrer através da literatura.
                O Gato de Botas pareceu-me um pouco cansado, a essa altura, por tanto que já havíamos andado e visto. Chegamos a uma vereda entrelaçada de árvores. Percebi que havia penetrado no Sertão. Ouviam-se, a princípio, sons longínquos, a pouco e pouco mais próximos,  e um barulho de luta, de bravas lutas.
                (Vejo, nítido,  Hermógenes e Diadorim lutarem desesperadamente. A morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim, tinha de ser vingada, a hora chegara, finalmente.  Entre os dois, o diabo no meio da rua. Diadorim crava e sangra Hermógenes. Sangue e urros por todo lado. Diadorim mata quem lhe matou o pai, mas, também, é atingida.  O diabo no meio do redemunho. Morre Diadorim, para desespero de Riobaldo, que, estarrecido, vê,  quando lavam o corpo dele, do falso rapaz, um corpo de  mulher, moça perfeita que se escondia num corpo  de homem para poder participar do grupo de jagunços e, assim,  vingar a morte do pai. A revelação do verdadeiro corpo de Diadorim faz crescer o amor que julgara impossível.  Só conseguindo matar Hermógenes é que a feminilidade de Reinaldo-Diadorim poderia surgir e reinar no Sertão, mas,  ao cumprir-se seu destino, ela  também morre.   Riobaldo, então,  sente que sua dor é maior que sua surpresa.)
                Diante de cena tão comovente, brotada da pena de João Guimarães Rosa, até o Gato de Botas demonstrou emocionar-se. Depois de algum tempo, chamou-me e confidenciou-me que a próxima visita seria a última.  Depois dela, iria em busca de seu destino e eu retornaria à biblioteca. Ficamos em profundo silêncio, como se participássemos do velório de Diadorim.
                (Havia um mar infinito. Mergulhamos silenciosos e chegamos ao fundo do oceano. Tivemos um encontro notável com o capitão Nemo que, sentado na cabine do Nautilus, sua primorosa embarcação, com sua barba espessa, rodeado de aparelhos náuticos, cartografias, bússolas, nos convidava para partir com ele numa viagem infindável  para desvendar, uma vez por todas, os segredos que se ocultavam nos confins dos oceanos. Só ele poderia nos levar aos meandros mais recônditos das águas profundas, aos monumentos e às grutas de pedra que se escondem por debaixo das águas, pois conhecia toda a imensidão oceânica. Voltaríamos à terra  - se é que haveríamos de querer  voltar -  quando nada mais existisse para ser desvendado no mar. Aprenderíamos, eu e o gato, a comer as gulodices marítimas, infindáveis e apetitosas, e aprenderíamos, também, a conversar e conviver com os habitantes daquele mundo submerso, peixes, crustáceos, moluscos das mais diversas espécies. Apreciaríamos a arquitetura do mundo oceânico, com seus castelos e tesouros, seus recantos misteriosos.  A água nos daria tudo, viveríamos dela. O Capitão Nemo lamentou profundamente que estivéssemos tão presos à terra e informou  que em breve partiria. Deu-nos adeus.)
                O gato não se fez de rogado e me disse que sua missão estava cumprida e terminada, nada mais eu deveria esperar dele.  Cabia-me voltar para a biblioteca  enquanto ele iria viver sua nova vida, longe dos livros. Enfaticamente,  falou-me: “Vou em busca da minha felicidade”.
                Quando retornei à biblioteca, percebi que tudo estava às escuras. A luz se apagara e eu não sabia agora onde tinha deixado o castiçal. Tateando, cheguei à poltrona e nela me sentei  para aguardar a volta da luz e então ir para o meu quarto dormir. Nem tinha noção de que hora seria, nem poderia consultar o relógio. Que noite! Entre um sonho e um pesadelo!
                O que me aconteceu depois de tudo isso, não sei, na verdade, lembro-me de que fui acordada por Fernanda, pois devo ter adormecido à espera de que a luz chegasse. Notei que havia sol, um sol  ainda fraco, que chegava devagarzinho, temendo que a chuva torrencial retornasse e o expulsasse do céu vazio de estrelas.  E foi esse sol fraco que me fez retornar a minha casa, assim que terminei o café, fartamente servido por Fernanda.
                Meu tio me telefonou, algumas semanas depois, estava aborrecido e estarrecido com o que acontecera, um fato estranho. Imagine só, ele recebeu a visita de um neto muito querido, que levou alguns de seus livros para ler. Dentre os livros que  leu, o neto devolveu um, dizendo que não encontrara o gato, quando o título era “O Gato de Botas”. Realmente, não havia nesse livro nenhuma indicação, nenhum indício de onde se encontraria esse gato. Fechado, o livro parecia perfeito; aberto, nenhuma página sequer mencionava que gato seria esse.

                

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

UMA LONGA VIAGEM

                                                                    UMA LONGA VIAGEM
                                                                                                              Conto de Elsa Caravana Guelman
                Alan sentou-se diante da janela e esticou as pernas, como se pretendesse evadir-se do mundo, buscando, naquela tranqüilidade, não pensar em nada que o envolvesse, como se viajasse para dentro de si mesmo.
 Trabalhava, há alguns anos, numa empresa de projeção nacional e nunca imaginou  (a mente efervescente, por mais que vivencie,  não consegue se manifestar e nem dá a ninguém a pretensão e a certeza de adivinhar o futuro) que, um dia, seria designado para viajar e trabalhar numa pesquisa do interesse do escritório. Não que ele não tivesse capacidade, sabia que tinha, seu trabalho era excelente, mas sim porque elaborava suas teses muito discretamente, diferente dos colegas que se exibiam o mais que podiam, buscando ser escolhidos para futuras e possíveis viagens.  Sabia o quão difícil é viver no mundo da competição, que não dá tréguas a ninguém.
                 Quando o  diretor lhe comunicou a escolha, ainda estava absorto e preso aos pensamentos que lhe acudiram, empoleirando-se em sua mente.  Apanhado de surpresa, o que viu primeiro foi a calvície acentuada daquele homem à sua frente;  o diretor não parava de dizer que confiava nas suas observações porque o julgava com muita experiência e sensibilidade para pesquisar  sobre o  tema para o qual fora escolhido. A sua participação seria totalmente sigilosa, ninguém poderia tomar conhecimento do que ele iria  descobrir.  Não poderia discutir as dúvidas com ninguém, teria de tomar as decisões sozinho e só voltar quando chegasse a uma definitiva conclusão. Era uma grande responsabilidade a que teria pela frente, confiavam-lhe um mundo de escolhas por causa de sua maneira discreta de trabalhar.
Uma missão solitária e sigilosa cria muitas dificuldades para quem a executa.  Por que solitária e sigilosa? Por que ninguém poderia conhecer o assunto antes de sua criação e divulgação?  E isso viria com um grande sucesso. Por enquanto, ele teria de proceder com muita cautela, como se fosse um mergulhador que desce até o fundo do oceano em busca de um tesouro, examinar cuidadosamente as peças encontradas, selecionar as que, verdadeiramente, mostrarem seu fulgor e, lentamente, voltar triunfante à superfície,  carregando apenas o que, de fato, tivesse importância.  Aceitaria a missão, correndo riscos e vivendo algum tempo no silêncio, sem o convívio dos amigos? Teria de pensar que, no final, receberia uma grande compensação da própria vida, em razão do seu sucesso, abrindo-lhe todas as portas.  Mas, afinal, que missão seria essa, tão prodigiosa? E os riscos?  Havia, ainda, uma condição a ser respeitada, ele teria somente a ajuda de um auxiliar, que lhe serviria em todos os momentos, mas somente como motorista.  Mais ainda:  só receberia a documentação e tudo o mais que fosse necessário, com a orientação inicial do que fazer, nas vésperas da viagem.  Aguardasse!
                Naquela noite cancelou todos os compromissos com os amigos. Sabia o quanto seria difícil para ele afastar-se das pessoas e ficar sem ter com quem  conversar, discutir problemas, selecionar músicas. Saiu de mansinho e voltou cedo para casa, pretendendo organizar suas idéias e rever as posições e  atitudes para poder equacionar a viagem. Realmente, sentia-se, apesar de assustado com o inesperado,  motivado e interessado. Teria de pensar que aquela oportunidade poderia representar  seu futuro profissional, era isso  que estava em jogo. Nem jantou direito e foi logo para o quarto. Assim, deveria pensar no mais absoluto silêncio e acreditava que,  deitado,  seria impulsionado  para os pontos duvidosos e para os pontos positivos sem que nada o perturbasse. A vida é assim, traz vantagem e desvantagem numa só questão, como uma estrada que desembocasse em dois caminhos, numa noite escura e sombria. Em qual deles continuaria sua caminhada? Por onde a começaria?  Tinha muitos planos, mas nada podia fazer enquanto não tomasse conhecimento do que iria e poderia realizar, aí, sim, é que precisaria agir rápido e pensar no que fosse mais conveniente a fim de conseguir, no tempo previsto, consolidar o êxito de sua viagem. Não atinava, e nem conseguiria decifrar o mistério,  com os motivos que teriam levado o diretor a cogitar de seu nome.
                Sentiu que o sono rondava,  nem trocou de roupa, adormeceu imaginando a viagem. No meio da noite, ouviu vozes. Pensou que viessem da rua, mas elas ficaram mais fortes, como numa festa em que todos falam ao mesmo tempo. Sentiu-as muito próximas. Como era possível?  A janela, que dava para a rua, tinha grades, ninguém poderia entrar no quarto. O apartamento fora completamente fechado, como em todas as noites. Do lado da cortina da janela, avistou um vulto que se adiantava, mais outro, um terceiro e...
                --Quem são vocês, o que fazem no meu quarto? – perguntou, assustado. Como entraram?
                Ao mesmo tempo em que falava, na ânsia de entender o que estava acontecendo no quarto, ainda meio cambaleante, estremeceu ao ver, num raio de um segundo, pela luz da rua que entrava pela janela,  que todos se pareciam com ele, ou melhor, que todos eram suas cópias.   Era ele neles.
.              - Eu sou o Alan detetive, ajudei o Isidoro a resolver o problema de um assalto;  eu, sou o Alan advogado e padrinho do casamento de Melina;  eu, o Alan estudante que ajudou a Heloisa a achar o seu amor;  eu,  o Alan que forneceu à Raquel os tecidos importados para o seu manequim;  eu, o Alan do restaurante Pérola, que  presenciou a decepção do Marcelo quando sentiu que perdia Gabriela para sempre.  Fizemos, todos, parte de sua multifacetada história, estávamos vivendo intensamente enquanto você, nosso modelo e matriz, permanecia estático, ficava aqui, existindo apenas, imerso na tranquilidade de sua vida, enquanto nós outros trabalhávamos, agíamos, vencíamos.  Nós existimos!  Estamos vivos!  Somos você, Alan. Nós todos somos Alan, somos representações, emanações suas! Você se dividiu em várias histórias, multiplicou-se.
                - Não é possível, estou sonhando, tudo isso é irreal...  Vocês não podem existir, eu sou o único Alan e não vou permitir que usurpem o meu lugar, usando o meu nome. Saiam, desapareçam! – gritou.          Sentiu que tentava ficar bem longe deles, como se buscasse uma proteção inexistente e temesse que eles o cercassem, já que não pareciam amigos, falavam de uma forma estranha, áspera, que não denotava qualquer simpatia.
                - Impossível – retrucaram todos em uníssono. Fizemos parte de várias histórias, tivemos participação ativa nelas, temos nossa vida própria.  Seremos lidos por muitas pessoas, ninguém vai retirar nosso nome das páginas em que estão.  Você, sim, nunca fez nada, por isso nunca existiu.  Vamos retornar, sim,  ao nosso mundo e cada um de nós vai  entrar na  história em que vive e aguardar que outras pessoas se interessem pelo que fizemos, pois, quanto mais formos lidos, mais estaremos garantindo nossa eternidade.  Não se iluda, Alan:  você só terá uma existência marcante se vencermos, se nós também permanecermos vivos;  nossa derrota, nossa morte, levará você para o  mais inexorável dos esquecimentos, o do anonimato.
De súbito, tão de repente quanto haviam surgido, todos desapareceram. Alan levantou-se da cama, num salto. Teria sonhado ?  Parecera tão real tudo o que se passara, mas era um absurdo admitir a existência de tais indivíduos. Que fenômeno poderia ser esse?  Alucinação? Distúrbio mental?  Estaria doente?!  Foi-se lembrando, aos poucos, de um quadro de que gostava muito, de Edward Hopper, Chop Suey, que mostrava uma mulher numa mesa de um restaurante chinês, tendo, frente a ela, outra mulher, idêntica, um clone, seu duplo. (Onde teria visto essa pintura? Numa exposição no Grand Palais?)  Procurara ler muito a respeito desse quadro, soube que o pintor se havia inspirado numa lenda germânica, a do doppelgänger, que é o duplo andante, um ser fantástico que se converte numa cópia idêntica da pessoa que ele escolhe. Achou, porém, que admitir isso seria pura fantasia, espelhada numa ficção e não na realidade. Tinha de ter os pés bem calcados no chão para não perder o controle de si mesmo, o senso do real.
  Procuraria, no dia seguinte,  os amigos, mencionados pelas fantasmagóricas criaturas, para saber se, realmente, tinham enfrentado alguma dificuldade.  Acabou convencido (era mais fácil...) de que, na verdade, sonhara. Há, com efeito, sonhos bizarros, conflitantes. A preocupação com a viagem, tudo muito confuso, difícil, deve ter mexido com sua cabeça, deixando-o nervoso, conduzindo-o a esse estranho sonho.  Não era fácil aceitar, de uma hora para outra,  uma viagem inteiramente sigilosa e que não poderia, sequer, ser conhecida pelos colegas, pelos amigos.  E ele no controle de tudo, como se fosse um agente secreto.  Jamais ninguém suspeitaria de que fora procurado pelo diretor para dele receber a proposta de uma viagem assim misteriosa, uma viagem  que, se tivesse sucesso,  poderia mudar o rumo de vida de todos, patrões e empregados, dando à empresa, dantes bisonha,  projeção internacional. Por que ele e não outro, ou outros, com mais vivência, com mais capacidade, com mais competência?    
 Admitia, sim, que sonhara e que aquele sonho revelava a sua preocupação interior, seu receio de se meter pelo mundo sem saber o que encontraria e o que resolver com o que encontrasse. Mas, por outro lado, sabia que seu  trabalho era bom, que era correto e não dava margem à preocupação.  Redigia bem, sabia como formular as questões e as apresentava com bastante clareza.  Quando mais jovem, pensara em fazer teatro. Parecia até que estava diante da sua verdadeira vocação. Assistia e acompanhava as representações teatrais com um interesse redobrado. Alguns amigos, os mais íntimos, que lhe ouviam as confidências,  lhe arrumaram uma apresentação, uma vez, para um grupo de teatro amador, que levaria à cena uma comédia, mas ele acabou desistindo sem comparecer ao encontro marcado.  Imaginava-se, no entanto, com frequência, numa representação de “Romeu e Julieta”, uma história trágica de amor, ou em “Macbeth”, uma  história de poder e violência. Lia e relia William Shakespeare, por noites e noites. Como se sentiria feliz se pudesse representar, nem que fosse uma única vez, em sua vida.  De outra feita, a idéia do teatro voltou, arrumou outro grupo amador, chegou a comparecer a alguns ensaios mas acabou desanimando. Talvez devesse, pensou, frequentar uma academia de teatro, mas faltava-lhe tempo e precisava trabalhar, dar duro para terminar a faculdade. Como é difícil conseguir um lugar ao sol!  
 Procurou, então, naquele exato momento, esquecer o estranho sonho que o transportava para tal dimensão fantasmagórica, provocando-lhe  angústia por não  conseguir dominar essa sensação desagradável, e voltou para a cama, na esperança de que o sono retornasse. Mas ele não retornou e ficou se virando de um lado para o outro, como se metralhado por receios e dúvidas infindáveis, exaurindo-se em perguntas sem repostas até que o dia nascente surgiu, obrigando-o a levantar-se para enfrentar os desafios daquela realidade nova que teria, doravante, que enfrentar.
                Naquela noite, evitou dormir em seu apartamento, temendo o eclodir de um novo  sonho similar, com seus outros eus a brotar do nada.  Evitando explicar a si próprio o motivo pelo qual  não queria dormir  em casa, foi ficando, num jogo interminável,  até altas horas, no apartamento de um colega, que acabou por convidá-lo a dormir ali, por já ser muito tarde e esta longe de casa. Dormiu tranquilo, dessa vez, sem receber mirabolantes visitas inesperadas.  Acordou mais cedo e, passando primeiro no apartamento, para tomar um banho e trocar de roupa, chegou ao trabalho esperançoso de que seu chefe imediato, que - assim imaginou - deveria estar a par da idéia do diretor, lhe dissesse alguma coisa sobre a misteriosa missão. Tudo em vão, não recebeu uma palavra, nenhum comentário a respeito desse assunto, e também não fez nenhuma pergunta para não comprometer ninguém.  O chefe, todavia, perguntou-lhe, surpreendentemente:
                - Alan,  por que não me falou dessas férias inesperadas que você precisa tirar?
                - Férias?
                - Por que as pediu diretamente ao diretor? Eu não me teria negado a conceder-lhe essas férias, se houvesse mesmo uma necessidade vital.
                Alan ficou em silêncio por instantes, tentando entender o que ouvia, constrangido, sem saber o que dizer, quando a entrada repentina do diretor na sala o salvou:
                - Já comuniquei ao seu chefe que concordei com  suas férias inesperadas.  Vamos sentir sua falta, pois há muito trabalho a realizar, mas também não podemos ficar indiferentes aos problemas particulares de nossos servidores. Depois, passe na minha sala, tenho um presente para sua mãe.
                Alan entendeu que deveria ir à sala do diretor para receber mais recomendações  sobre sua missão e assim o fez.  Sua expectativa foi, porém, em vão, o diretor o recebeu amavelmente mas nada acrescentou ao pouco que ele já sabia.   Quanto às férias,   esclareceu que achou melhor que todos da empresa, quando não mais o vissem, pensassem que ele estava de férias e, assim, sua saída repentina não despertaria nenhuma suspeita.
                Quando saiu do gabinete do diretor, voltou a seu posto de trabalho e fez o que tinha a fazer até que chegou a hora do final do expediente.  Decidiu que não mais se afastaria  de seu quarto e de seu apartamento, voltaria a dormir lá, como sempre fizera, era simplesmente absurdo arranjar pretextos para dormir em ambientes estranhos por medo a criaturas bizarras  de sonhos mal resolvidos.  E assim fez, chegou em casa como de costume, ouviu música, leu um pouco e, quando o sono chegou, foi direto para o quarto, tendo antes o cuidado de fechar a janela e as cortinas, o que o impediria de ver as luzes da rua, durante a noite, e a claridade do nascer do dia.  Acordou bem mais tarde, inquietou-se um pouco por isso, pois não queria chegar ao trabalho, de jeito nenhum, com atraso. Sob sua responsabilidade, havia ainda um bom número de questões a serem resolvidas.  Não gostaria de que outros colegas assumissem o que ele não conseguisse terminar, não dando margem, assim, a nenhuma especulação.  Sabia que aquelas férias antecipadas, quando divulgadas, seriam objeto de comentários invejosos, outros poderiam querer também antecipar as suas, criticar o que pareceria um privilégio.  E isso aconteceu, de fato, tão logo suas férias foram anunciadas, uma colega ficou bastante irritada porque não conseguira tirar as dela, nem sequer para acompanhar a doença séria de seu pai.  O diretor, sabiamente, resolveu então também conceder essas férias que ela reivindicava, reconsiderando a decisão anterior, calando, assim, a boca de todos.  Era por esse motivo que ele queria terminar todas as suas tarefas em tempo hábil, diminuindo sua hora de almoço e saindo até mais tarde, se preciso fosse, para conseguir dar conta de tudo sem apelar para a colaboração alheia.
Em casa, organizou suas coisas pessoais, selecionando o que deveria ou poderia carregar, porque não lhe agradava levar uma mala muito grande, tinha receio de que alguma coisa, inesperada, pudesse ocorrer e ele, na certa, teria maior mobilidade com uma mala pequena. Essa idéia lhe surgira, nem sabia por que razão, nada do que lhe dissera o diretor deixava transparecer alguma preocupação nesse sentido, mas mala grande dificultaria sua locomoção, por isso conviria diminuir o volume das coisas que costumava levar quando viajava.
Telefonou para seus pais, que viviam no interior, e lhes contou por alto sobre a viagem, pedindo-lhes, apenas, que mantivessem segredo, sem explicar o motivo.  Só iria poder vê-los quando regressasse. Não participou nada aos amigos, não sabendo o que lhes dizer, ou fazia a viagem nesses termos ou não fazia, ainda podia desistir, deixar que outro assumisse seu lugar, ele não estava sendo obrigado a aceitar, mas, examinando seus dias até então, achou-os vazios de aventura e concluiu que não desistiria, haveria sempre uma ponta de surpresa, uma novidade, uma mudança, nessa viagem, quem sabe lhe permitiria abrir novos horizontes, descortinar um brilhante e inesperado futuro.
Vera, a moça que cuidava da limpeza de seu apartamento, observadora demais, também o preocupava, no momento, pois acharia estranho ele ter de viajar daquele jeito, pouco habitual, ainda mais dizendo estar de férias repentinas.  Teria de tranquilizá-la, pois seria  a única pessoa  a cuidar de tudo o que deixava, até sua volta.  De toda sorte, ele não era uma pessoa só no mundo, tinha seus pais, seus amigos, a própria Vera, que já lhe cuidava da casa havia anos, não poderia desaparecer assim, de uma hora para outra, sem uma explicação convincente.  Mas será que, até viajar, teria essa explicação? Ou a explicação só viria com a sua volta?
Então o diretor, por um telefonema, o fez saber que tudo já estava organizado quanto à viagem, a documentação completa lhe seria entregue, bem como a reserva do hotel, antecipadamente pago.  Confirmou que sua locomoção, como já fora informado, seria de carro, não necessitando de avião, pois não teria de se ausentar do país.  Marcou dia e hora para se encontrarem, num local que indicou, onde também carro e motorista o estariam esperando, avisando que levasse a mala, de táxi, pois daquele local partiria, imediatamente.
O táxi percorreu diversas ruas até atingir o local marcado. Não desejava ocupar sua mente com nenhuma idéia, agora, que estava perto de iniciar sua rota.  Deixou, por isso, que seus olhos errassem indefinidamente pelo que se ia descortinando pela janela do veículo em movimento. Entretanto, o que via não fazia o menor sentido para ele, seu olhar como que era descontínuo,  sem qualquer fixação ou nexo.  Ansiava apenas por chegar, porque chegar significaria conhecer.  De longe, avistou um carro escuro, ao lado estava o diretor, com uma pasta preta.
Pagou o táxi, desceu, com a mala, encaminhou-se para o homem da pasta preta.
- Meu filho, desejo-lhe o maior sucesso na missão – disse o diretor.  Saiba que seu sucesso será o nosso sucesso e, então, poderemos competir com as grandes empresas internacionais. Esse momento é muito importante para mim, para você, para nossa firma. Cuide-se bem, Alan!
E prosseguiu:
 - Não lhe pedirei  mais nada. Fará o que entender melhor para você e para nós.  Pode entrar, agora, no carro.  O motorista já o espera.  Boa viagem!
Abraçaram-se e, ainda emocionado pela confiança que lhe fora depositada, Alan fez menção de entrar no carro, mas se deteve. Acompanhou com o olhar o diretor que, tendo também entrado em seu próprio carro, partiu em seguida, deixando uma aragem úmida que Alan recordou, certa vez, já ter sentido numa ocasião em que estivera, menino, de férias no campo, sentindo aquela mesma aragem e, ao olhar ao redor, vendo que as árvores se cobriam  de pequeninos fios brancos, parecendo pedaços de renda recobrindo a folhagem.  Explicaram-lhe, um dia, que se tratava de uma movimentação coletiva de aranhas, em certa época do ano, e que, dependendo do lugar em que apareciam esses filamentos, as teias das aranhas eram conhecidas como fios da virgem ou babas do diabo. Quantas recordações agora o rodeavam,  com os  perfumes silvestres de sua infância,  e uma saudade imensa desse passado o envolveu por completo. Viu-se criança, correndo pelos campos, a acompanhar o voo dos pássaros. Outras crianças, que ele não conseguia agora identificar, também corriam, em sua memória, livres e contentes (aquela aragem, seria a madalena de Proust, tantas vezes citada e repetida?), e ele reviu, num segundo, os dias, as horas e os minutos que tinham formado  sua existência até então. Transbordando como numa cascata, as recordações incontidas  irrompiam e gritavam:  Ah, pequenos fios brancos, quase invisíveis, venham povoar novamente a minha vida!
Entrou no carro, sentou-se atrás, não por vaidade, mas para ter maior conforto numa viagem que pressupunha cansativa.  Na frente,  já estava o motorista.  E, entre a lembrança dos fios da virgem ou babas do diabo,  sem que tivesse tido tempo para dizer sequer um cumprimento, ouviu uma voz, que se irradiou antes de o carro iniciar a partida,  era o motorista, que se apresentava, com um sorriso estampado no rosto:
- Eu sou Alan,  seu motorista, doutor, conte comigo.  Faremos uma longa viagem!