sábado, 14 de junho de 2014

A Pérola - Conto

A Pérola
Elsa Caravana Guelman

                Marcelo acordou mais cedo do que esperava naquela manhã ensolarada de terça-feira. Assim que conseguisse tomar o café,  iria esticar o mais que pudesse o dia que se iniciava na praia  e no embalo das ondas. Começou a cantarolar baixinho, quando um forte barulho o fez, num  instante, saltar da cama. Tocavam a campainha do portão estridentemente, havia gritos e um alvoroço geral. Chegou à janela e viu lá embaixo algumas pessoas. Reconheceu, entre os outros, o maître do restaurante Pérola, Edgard, que, ao vê-lo, gesticulando nervosamente exclamou:
                - Patrão, estamos a sua espera no restaurante para decidir como será o dia, se os cardápios continuam os mesmos ou se vai haver alguma modificação. Foi tudo tão de repente!
                Marcelo não entendeu nada. Pediu que esperasse um pouco, enquanto se arrumava para descer, quando, então, conversariam. Conhecia Edgard há muito tempo e, na maioria dos dias,  o via no restaurante quando lá  almoçava. Por que teria vindo à sua casa tão cedo? O que quereria? Por que o chamava de patrão? Não tinha nenhuma ligação com a dona do restaurante, Giovana, uma italiana simpática e alegre, a quem endereçava somente um simples bom dia ou boa tarde, enquanto a maioria dos clientes tinha muito mais intimidade com ela, era alvo de muitos galanteios e gentilezas, mas não da parte dele. Talvez, até, por timidez.
                No portão encontrou Edgard, acompanhado dos garçons e de um homem de estatura baixa e óculos escuros que, mais tarde, ficou sabendo ser o contador do restaurante.
                - Vamos, patrão, não temos muito tempo. O melhor será, na minha opinião, manter o mesmo cardápio que vinha sendo utilizado pela dona Giovana. Com o tempo,  a gente vai fazendo  as modificações. Desculpe se estou me adiantando, isso agora vai competir ao senhor que é o novo proprietário do restaurante. Esperamos pelo senhor a noite toda e, como não apareceu para nos dar as novas, viemos logo cedo à sua casa.
                Marcelo  cambaleou, tomado de supresa e susto. Gaguejou:
                - Do que é que vocês estão falando? Estarei louco, por acaso?  Que história é essa de restaurante?
                - Doutor Marcelo, não brinca com a gente, já sabemos de tudo! Aqui está o contador, que já passou tudo para o seu nome,  está com o documento expedido pela Junta Comercial, uma comunicação aos fornecedores da sua nova gestão.
                - Não, isto é uma brincadeira de péssimo gosto. Onde está dona Giovana?
                - D. Giovana viajou para a Toscana, terra de seus pais,  logo após ter-se entendido com o senhor, foi o que nos disse que faria. Estava eufórica, pois fizera um excelente negócio. Tinha certeza da vitória do novo restaurante. Vamos lá, a documentação está à sua disposição. Se algo saiu errado, não temos nada com isso. Somos seus empregados, agora.  O senhor é o nosso patrão. E vou até confidenciar alguma coisa, entre os empregados  há quem ameace entrar na Justiça para garantir seus direitos, se a mudança não corresponder  às  expectativas.
                - Edgard, você me conhece há anos. Eu sou um cliente assíduo. Tenho até a minha mesa, no canto da sala. Não sou nenhum maluco, tenho os pés no chão. Não sou dono de restaurante nenhum, sou veterinário. A última coisa que eu faria na minha vida seria montar um restaurante, não entendo do negócio e nem me interesso por esse assunto. Escolho diariamente o que comer e beber e pronto. É claro que gosto de uma comida original, sofisticada, gostosa, mas isso não significa pendor para dirigir um restaurante. Nunca mantive sequer uma conversação com dona Giovana sobre o assunto. Ela sempre me viu como um cliente isolado, caladão, dentro do meu mundo, embora eu admirasse a sua capacidade e a versatilidade de seus pratos tão elogiados por todos. Isso não significa que eu tenha comprado seu restaurante. Todo dinheiro que tenho está investido no banco e é só eu telefonar para lá e ver que tudo continua na mesma situação.
                - Pois foi do dinheiro que o senhor  lhe pagou que ela comprou euros para viajar. Uma alta soma, à vista. Por que nos esconde isso,  o que receia, Doutor Marcelo?
                - Vou tirar logo essa dúvida sua. Telefonarei ao banco e falarei com meu gerente.
                - Sim, mas vamos também ao restaurante para o senhor ver a papelada toda.
                 Foram. O restaurante ficava perto, bastava caminhar poucas dezenas de metros. Marcelo tinha certeza de que poderia provar que tudo não passava de um grande engano.  Entraram por uma porta lateral e foram diretamente ao escritório, de onde imediatamente ligou para o banco, sem sequer querer examinar os documentos que Edgard  empunhou, mas empalideceu ao verificar que, no dia anterior, havia sido feita uma retirada alta em sua conta, após o valor ser baixado de seus investimentos. Era o exato valor da compra do restaurante, como logo pôde ver, ao arrancar os documentos da mão de Edgard.
                - Não sei o que dizer, estou desnorteado... Algo de muito estranho está acontecendo e não tenho, eu lhes juro, nenhuma explicação. Só de uma coisa eu tenho certeza, eu não comprei nenhum restaurante, isto é uma loucura. Repito, seria a última coisa que eu faria na vida.
                Marcelo verificou, então, toda a papelada que lhe foi apresentada, ouviu todas as explicações do contador, comprobatórias de que, realmente, ele comprara o restaurante. Era o novo dono e teria de encarar essa realidade, quisesse ou não. Ordenou, então, que fossem mantidos os cardápios anteriores correspondentes aos dias da semana. Quanto ao restaurante e seu funcionamento, nada mudaria. Não tinha cabeça para mexer em coisa alguma, naquele momento, nem saberia como operar mudanças de uma hora para outra. Tudo continuava a parecer-lhe absurdo, mas resolveu  ir até o salão de refeições.
                Era um salão amplo, já o conhecia bem, das vezes em que nele almoçara ou jantara, tinha mesas menores e outras maiores, bem dispostas e ordenadas, com toalhas brancas de linho que tinham desenhos ondulados azuis, buscando dar a impressão de ondas do mar.  Havia apenas um grande lustre no meio do teto, que iluminava bem as mesas centrais mas era também responsável pela atmosfera de penumbra nas mesas encostadas às paredes, nas quais havia pequenos apliques de luz e em que se viam paisagens marítimas, com  grutas onde ninfas repousavam sobre pedras. Outras pinturas faziam lembrar as vinte mil léguas submarinas de Júlio Verne, havia uma representação do capitão Nemo dirigindo o Nautilus em sua busca no fundo dos mares. No final do salão, dando para a saída lateral do restaurante, havia um grande aquário com uma infinidade de peixes e, no pátio interior, um tanque também com peixes. Atrás do balcão de recepção, um quadro exibia uma concha entreaberta e seu conteúdo  fantástico, uma pérola deslumbrante.  Daí, o nome do restaurante.
Como é que ele poderia ter-se tornado dono de tudo isso, de uma hora para outra? Nunca acontecera nada, ele tinha certeza. Sentia-se vítima de uma alucinação, não participara de coisa alguma, nunca fora sequer consultado. Por que ? Tantos e tantos clientes diários, pessoas significativas, que poderiam trazer idéias renovadoras, criando brilhantes situações para o crescimento do restaurante. E, no entanto, ele!
Buscou a mesa em que costumava sentar-se no canto do salão, estava posta; tentou acalmar-se, não sabia ainda como conseguiria viver aquela vida  que se transtornara subitamente. Não poderia ser real e, no entanto,  a documentação apresentada comprovava que ele era realmente o dono do Pérola. Por mais que remexesse no mais recôndito de  seus pensamentos, ele não conseguia achar uma pista, nada. Sentou-se como fazia sempre, quase que dia após dia, desde e inauguração do Pérola. Esperaria o almoço, comeria o  de sempre.
Quando a porta foi aberta, os clientes entraram e todos o cumprimentaram, como se já soubessem que ele era o novo dono. Sorriu para todos. Seu sorriso se iluminou ainda mais quando ela chegou.  Era Gabriela,  de olhos profundos, cabelos longos, esbelta, elegantemente vestida, um terno de jeans, uma blusa bege. Sentou-se e seus olhos encontraram os dele. Ela sorriu-lhe, discretamente.
Marcelo não conseguia deixar de olhar para ela. O garçom veio atendê-la e ela fez o pedido. Nunca se haviam falado, apenas sorriam sempre, um para o outro, quando se encontravam, ela também não costumava conversar com nenhum dos outros clientes.  Vinha almoçar, sempre à mesma hora, e, ao terminar, se levantava e saía.  Será que ela já sabe da novidade? – ele imaginou. Não lhe cabia dizer nada, foi o que pensou, esperaria que ela soubesse. Naquele dia, ela parecia estar com um pouco de pressa, porque desistiu da sobremesa, que demorava, e, levantando-se da mesa, antes de ir embora, inexplicavelmente olhou para Marcelo e o cumprimentou, sorrindo de novo, agora de forma ainda mais intensa, acenando para ele, como se lhe desse  parabéns.
Sentiu vontade de acompanhá-la, seria emocionante levá-la ao trabalho (tinha certeza de que trabalhava, mas onde, em quê?), contar as horas que por lá demorasse, esperá-la sair e, novamente, a conduzir até onde quisesse ir e ficar. No entanto, conteve-se, ficou preso no òesela deixava o recinto e ganhava a rua.
Foi a intensidade maior do sorriso dela, naquele dia, e esse aceno, que nunca dantes fizera, que o convenceu a aceitar essa nova e inexplicável vida que para ele se abria, como dono, agora, do Pérola. Daí em diante, passou a Interessar-se pelos problemas e pelas necessidades do restaurante, comprou livros de culinária, modificou receitas, acrescentou novos pratos ao menu. Em pouco tempo, tornou-se um expert   na matéria. Passou a andar de  mesa em mesa, ouvindo opiniões e sugestões dos clientes (nas horas em que Gabriela não estava), recebendo elogios e, em pouco tempo, tornou-se um outro homem, enquanto o sorriso de Gabriela, quando ela vinha, aumentava de intensidade a cada dia que se passava. Era um sorriso que o arrastava e o imobilizava, ao mesmo tempo. Precisava decidir, e rápido, o que fazer em relação a ela, mas a timidez excessiva o tolhia.
Numa noite, quando o último cliente saiu e os empregados, todos, deixaram seus postos, Marcelo resolveu ficar até mais tarde para, sozinho, curtir seu restaurante. Apagou as luzes do lustre central e deixou acesas somente as das paredes laterais, mais fracas, que iluminavam as pinturas. O salão, assim alumiado, criou como que vida nova, cresceram as figuras dos quadros como se parecessem querer sair das paredes em que estavam aprisionadas, libertar-se para descobrir os segredos e participar ativamente do ambiente.  De repente, uma nereida, saída de seu palácio no  fundo do mar, como que veio imobilizar-se sobre uma pedra que a água lambia, tendo ao fundo uma gruta marinha, como se aguardasse a chegada de seu tritão preferido, sacudindo a vasta cabeleira, para um e outro lado, até, finalmente,  atirar-se  às águas.

Foi nesse momento que Marcelo se deu conta de todas essas mudanças e transformações que atingiam sua pacata vida. Sentia dentro dele duas criaturas, dois Marcelos, dois eus, formando as duas faces do seu ego. Enquanto um, o Marcelo anterior ao restaurante, mantinha a serenidade, a placidez de sua personalidade de sempre, o outro, o Marcelo posterior à nova realidade do restaurante, personificava o novo aspecto, ativo, atuante. Ali estavam,  num mesmo corpo, o Eu e o Outro, o inerte e o criativo, como um Jano bifronte encarando o passado e, ao mesmo tempo, o futuro, mas ambos importantes,  significativos e coesos em sua existência, não podendo dissociar-se, existir separadamente. Nessa noite de transformações, dormiu veterinário e acordou dono de restaurante. O tempo, que atingiu um dos eus e modelou o outro,  como que parou por um instante, para que Marcelo tivesse, nessas horas precisas e preciosas, o verdadeiro retrato, agora, de sua vida.
Sentiu o perfume suave de Gabriela envolvendo-o e procurou-a pelo salão. Não a encontrou, nem na nereida e nem nas outras ninfas dos murais das paredes. Do perfume, imaginou o sorriso. Fechou os olhos profundamente e procurou reter esse seu sorriso, que se prolongou até que se sentiu um pouco tonto e abriu os olhos na esperança, agora concreta, de vê-la. Era o outro que a buscava, era o outro que decidira o que fazer no dia seguinte, quando a visse na hora do almoço. Ele iria firme e resolvido, sugado pelo seu sorriso e ela saberia, finalmente, que era a mulher de sua vida, a sempre esperada.
Um enorme relógio cuco, com seus bonecos dançarinos, soou e o fez retornar à realidade. Marcelo apagou as luzes que iluminavam as pinturas das paredes. Já era bem tarde, sentia-se agora, realmente, um tanto cansado, um tanto hipnotizado por aquelas  figuras e os efeitos da noite. Olhou o salão às escuras  e percebeu que a tranquilidade voltara ao recinto. Quando chegou em casa, ficou em dúvida se fechara a porta do restaurante. Não pensou mais, deitou-se e dormiu.
O sol entrou em cheio e se esparramou de repente por todo o quarto. Marcelo abriu os olhos e tentou afastar os raios que o cobriam, pois esquecera ou nem se lembrara de fechar a janela na noite passada, de tão esgotado chegara.  Num pulo, saiu da  cama, tomou um banho rápido. Chegaria na hora do almoço, já bastante atrasado, mas o que fazer? Estava em vias de tomar decisões importantes, resultantes das reflexões noturnas no salão do restaurante. Depois, ao que tudo indicava, a presença dele não estava sendo sequer exigida. E isto era um bom sinal, excelente mesmo, sinal de que tudo estava correndo às mil maravilhas,  que ele poderia ter dormido um pouco mais para compensar a noite feérica que vivera. Só uma coisa o preocupava, só uma coisa lhe tirava o sossego: chegar depois de Gabriela. Queria estar lá para recebê-la.
Quando chegou ao restaurante, pareceu-lhe achar, no entanto, algo estranho. As mesas estavam, em sua maioria, ocupadas. Edgard estava na porta e sorriu, à sua chegada, fazendo-lhe um sinal amistoso.
- Sua mesa já está pronta, Doutor Marcelo. O Boeuf Bourguignon está uma delícia!
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, Doutor Marcelo, está tudo bem. Pode entrar, Dona Giovana já chegou.
 - Dona Giovana?!  Mas ela não vendeu o restaurante e viajou para a Toscana?
- Que é isso, Doutor Marcelo?!  Olhe, ela andou dizendo, sim, há muito tempo, que um dia pretendia vender o restaurante e voltar para a Toscana. Mas está firme e segura no comando, acho que nunca pensou nisso de verdade.  Ficamos fechados dois dias para reforma da cozinha.  O senhor nem veio aqui, eu até o vi na praia, tomando sol.
Marcelo estremeceu e, trêmulo, entrou no salão.  Tudo aquilo parecia uma nova brincadeira, não tinha a menor explicação. A situação se invertera. Dormira dono do restaurante e acordara veterinário. Reparou que sua  antiga mesa estava com a toalha branca de ondas azuis, tendo por cima uma flor, a de sempre também. Não dava para entender. Olhou para o balcão da recepção e lá estava, sorridente, Dona Giovana.  Na certa vivia um novo pesadelo, talvez não tivesse acordado, ainda. Eram os efeitos da noite, com certeza. Ouviu, então, a voz da dona do restaurante:
- Dr. Marcelo, apresento-lhe um novo cliente, Dr. Alan, ele é, como o senhor,  também veterinário, é seu colega.
O novo cliente levantou-se e veio cumprimentar Marcelo efusivamente, disse algumas palavras, que ele nem ouviu direito, retornando, após, à sua mesa.
Marcelo se sentia tão esmagado como no dia em que assumira (assumira?)  o restaurante.  Sentou-se e esperou que lhe servissem o almoço. Foi quando ela, Gabriela, entrou, vestindo um novo e elegante terninho, com um lenço esvoaçante no pescoço.  Sorriu debilmente para Marcelo, como sempre fazia. Foi, também, apresentada ao novo cliente, Dr. Alan, limitando-se a dizer “prazer”. Terminado o almoço, levantou-se e saiu apressada.

Marcelo ficou no seu canto de mesa, tão sozinho e tão deprimido, imerso em seus pensamentos, no que seriam as recordações da noite. Talvez tentasse, mais tarde, por vezes e vezes, entender, sempre infrutiferamente, o que acontecera, mas ele sentia que a tinha perdido, definitivamente, para as águas borbulhantes e profundas daquele mar imaginário pintado nas paredes.  Gabriela poderia continuar retornando ao restaurante, esboçar, todo dia, para ele, seu débil sorriso de Gioconda, mas ele a havia perdido, em definitivo, para aquelas águas noturnas que pareciam transbordar na parede, as águas daquele profundo e onírico mar em que conseguira (ele também?) mergulhar naquela estranha véspera. Ela era a pérola, deslumbrante e fantástica, que ele entrevira, retornando à sua eterna concha.