domingo, 22 de dezembro de 2013

Marcel Proust - À Sombra das Raparigas em Flor - 22 de dezembro de 2013 às 17:42 O AQUÁRIO DO GRANDE HOTEL DE BALBEC Elsa Caravana Guelman Marcel Proust, segundo André Alain Morello, responsável pelas Notas constantes do livro À Sombra das Raparigas em Flor, num “bathyscaphe”, convida seus leitores para um mergulho profundo nas águas para explorar o mundo submarino, tal qual o capitão Nemo no Nautilus. O autor observa atentamente uma noite em que as fontes de luz iluminavam a grande sala de jantar do hotel. Comparou o que seus olhos captaram a um imenso aquário, vendo-se pela parede de vidro a população operária de Balbec, os pescadores e pequenos burgueses, que se comprimiam, invisíveis, para observar a vida luxuosa da aristocracia, tão maravilhosa para as pessoas mais humildes como eram os estranhos peixes e moluscos. Há, então, uma grande questão social exigindo resposta: será que a parede de vidro poderá proteger para sempre o festim daquelas feras extravagantes? Será que um dia as pessoas obscuras que observam tal espetáculo não virão capturá-las em seu aquário para devorá-las? Enquanto isso não acontece, quem sabe se no meio daquela multidão paralisada e surpresa haveria algum escritor, algum amante da ictiologia humana que, ao observar as mandíbulas de velhos monstros femininos se fecharem após engolirem o alimento, tentasse classificá-los pela raça, pelos caracteres inatos e adquiridos , graças aos quais uma velha dama sérvia, “cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho”, pois desde a infância vive nas águas doces do Faubourg Saint-Germain, come sua salada como uma La Rochefoucauld . Acontece que esse escritor, esse amante da ictiologia humana, interessado na parte da zoologia que cuida dos peixes, existe, sim, é Marcel Proust, que se sente distante do festim aristocrático do Grande Hotel de Balbec. E é, como crítico daquela sociedade sem escrúpulos, valores morais e artísticos, que ele penetra no bathyscaphe e , numa “descente”, vai às profundezas das águas para explorar os abissais da alma e do comportamento humano e estudá-los no ambiente dos peixes, comparando-os às extravagantes espécies marinhas. E como são ricas e simbólicas as suas reflexões, traduzidas em metáforas revolvidas nos escombros do seu inconsciente mais recôndito! Elas parecem atravessar os séculos nas profundidades oceânicas para, finalmente, emergir em verdades insofismáveis, transformadas em signos e mitos, deixando o autor completamente isolado dos aristocratas do Faubourg Saint-Germain, dos burgueses e dos outros em geral para os tempos vindouros, numa redoma impenetrável, como a redoma da Arte com destino à posteridade. Eis o trecho de Marcel Proust: "...E à noite não jantavam no hotel, onde os focos elétricos, jorrando luz no grande refeitório, transformavam-no em um imenso e maravilhoso aquário, diante de cuja parede de vidro a população operária de Balbec, os pescadores e também as famílias de pequenos burgueses, invisíveis na sombra, se comprimiam contra o vidro para olhar, lentamente embalada em remoinhos de ouro, a vida luxuosa daquela gente, tão extraordinária para os pobres como a de peixes e moluscos estranhos: ( uma grande questão social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos e se a gente obscura que olha àvidamente de dentro da noite não virá colhê-los em seu aquário e devorá-los). No entanto, em meio daquela multidão suspensa e atônita no negror da noite, talvez houvesse algum escritor ou estudioso da ictiologia humana, que ao ver como se fechavam as mandíbulas dos velhos monstros femininos para engolir algum pedaço de alimento, talvez se entretivesse em classificar tais monstros pelas suas raças, pelos caracteres inatos e também por esses caracteres adquiridos, graças aos quais uma velha dama sérvia, cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho, comendo salada como uma La Rochefoucauld, pois desde a infância vive na água doce do faubourg Saint-Germain.” (...) “Et le soir ils ne dînaient pas à l’hôtel ou, les sources électriques faisant sourdre à flots la lumière dans la grande salle à manger, celle-ci devenait comme un immense et merveilleux aquarium devant la paroi de verre duquel la population ouvrière de Balbec, les pêcheurs et aussi les familles petits bourgeois, invisibles dans l’ombre, s’écrasaient au vitrage pour apercevoir, lentement balance dans des ramous d’or, la vie luxueuse de ces gens, aussi extraordinaire pour les pauvres que celle de possons et de mollusques étranges ( une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger). En attendant peut-être parmi la foule arrêtée et confundue dans la nuit, y avait-il quelque écrivain , quelque amateur d’ichtyologie humaine, qui regardant les mâchoires de vieux monsters féminins se refermer sur un morceau de nourriture engloutie, se complaisant à classer ceux-ci par race, par caractères innés et aussi par ces caracteres acquis qui font qu’une vieille dame serbe dont l’appendice bucal est d’un grand poisson de mer, parce que depuis son enfance elle vit dans les eaux douces du faubourg Saint-Germain, mange la salade comme une La Rochefoucauld". Antes desse espetáculo noturno, o autor relata uma situação bem desagradável que teve de enfrentar na sala de almoço do hotel, mostrando o comportamento negativo de um hóspede, que o fez levantar-se, sem desculpas, da mesa que lhe fora indicada, por engano, interrompendo-lhe a refeição, pois havia uma reserva no nome dele, pedindo em voz alta ao mordomo que cuidasse para que semelhante erro não se repetisse por ser bastante desagradável que “gente que ele não conhecia” tomasse conta de sua mesa, o que constituiria, para ele, um verdadeiro insulto. Fotos: Google.

domingo, 10 de novembro de 2013

Os 100 anos de “A la Recherche du Temps Perdu” ( “Em Busca do Tempo Perdido”) de Marcel Proust. ELSA CARAVANA GUELMAN Há 100 anos, em 13 de novembro de 1913, Marcel Proust lançava, depois de uma luta árdua em busca de uma editora, seu livro : “Du côté de chez Swann” (“O Caminho de Swann”). Nesse livro já estão cristalizados os principais fundamentos que nortearão a sua busca do tempo perdido. Sabe-se que ele escreveu, ao mesmo tempo, o primeiro capítulo do primeiro livro, “Combray”, e o último capítulo do último livro, “Matinée chez la princesse de Guermantes”, deixando um imenso espaço vazio para ir preenchendo com os acontecimentos posteriores que seriam trazidos pela constante busca do tempo perdido, pois toda a obra se identificava e se reproduzia em função do Tempo. Ele já tinha pronto, pois, o início de sua especulação, progressivamente revelada pela descoberta de suas recordações, de seu passado, que culminaria com suas reflexões filosóficas no último capítulo do “ Le Temps Retrouvé” (“OTempo Reencontrado”). No primeiro capítulo do primeiro livro, “Combray”, ele mostra sua infância dividida entre dois mundos, primeiramente o caminho de Méséglise e o caminho de Villebon (constante de seus rascunhos). O primeiro caminho, de Swann, o levaria para recantos inesquecíveis, coloridos pela exuberante paisagem, pelos espinheiros e pelo odor dos lilases; o segundo, que ganhou o nome definitivo de Guermantes com a publicação (em substituição a Villebon), com o qual pretendia simbolizar o passado histórico da França, o faria caminhar ao longo das margens do Vivonne, tendo como modelo as Nymphéas de Monet, que ali descreveu. Ele mostrará, igualmente, que esses dois mundos são intransponíveis, com uma demarcação absoluta, não se podendo, também, conhecer os dois lados num mesmo dia. Eles se constituíam em vasos fechados e sem comunicação entre si. Seria, pois, impossível uni-los e, no entanto, sozinhos eles não teriam a mesma importância, um precisaria do outro para existir. Há uma linha invisível entre eles, que os separa e permite que cada um exiba suas características próprias, as quais os tornam definidos e perfeitamente individualizados. O caminho de Swann representava a burguesia emergente e triunfante e o caminho de Guermantes simbolizava a aristocracia, que se julgava de origem divina, a nobreza, embora ela evidenciasse, já, os vestígios de sua decadência. O que ocorre é uma figuração poética de uma paisagem geográfica, com esses dois elementos diferentes, que adquire significado marcante no mundo da arte e constrói, assim, verdadeira metáfora. No último capítulo do último livro, “Le Temps Retrouvé”, “Matinée chez la princesse de Guermantes", o narrador, após ser introduzido no salão e tentar reconhecer nos presentes seus amigos do passado, no embate de suas reflexões de cunho filosófico e artístico, encontra Gilberte, que é filha de Swann e se casou com um Guermantes, Robert de Saint-Loup, e ela, apesar dos anos, ainda loquaz, resolve apresentar-lhe sua filha, Mademoiselle de Saint-Loup. Diante dele, a jovem, que trazia os traços culturais, a um só tempo, da burguesia e da nobreza, o conduziu aos dois grandes caminhos de seus passeios e de seus sonhos, por seu pai, o de Guermantes e, por sua mãe, o de Méséglise, fazendo-o compreender, finalmente, que os dois caminhos, outrora intransponíveis e incomunicáveis, eram agora um só, podendo-se ir a Guermantes passando pelo lado de Swann. O narrador não se cansava de olhar para ela, cuja beleza se formara nos anos que ele havia perdido: buscava recomeçar, então, a vida que se lhe esvaíra. Quando se fala, portanto, dos cem anos de “O Caminho de Swann”, onde Marcel Proust inicia sua Recherche, ou seja, sua procura, não se pode deixar de falar de “O Tempo Reencontrado”, onde tudo termina, porque um livro já estava dentro do outro, e um tempo já estava dentro do outro tempo, em perfeita sintonia, desde o primeiro dia da busca que levaria o narrador a reencontrar seu passado.

Os 100 anos de “A la Recherche du Temps Perdu” ( “Em Busca do Tempo Perdido”) de Marcel Proust. ELSA CARAVANA GUELMAN Há 100 anos, em 13 de novembro de 1913, Marcel Proust lançava, depois de uma luta árdua em busca de uma editora, seu livro : “Du côté de chez Swann” (“O Caminho de Swann”). Nesse livro já estão cristalizados os principais fundamentos que nortearão a sua busca do tempo perdido. Sabe-se que ele escreveu, ao mesmo tempo, o primeiro capítulo do primeiro livro, “Combray”, e o último capítulo do último livro, “Matinée chez la princesse de Guermantes”, deixando um imenso espaço vazio para ir preenchendo com os acontecimentos posteriores que seriam trazidos pela constante busca do tempo perdido, pois toda a obra se identificava e se reproduzia em função do Tempo. Ele já tinha pronto, pois, o início de sua especulação, progressivamente revelada pela descoberta de suas recordações, de seu passado, que culminaria com suas reflexões filosóficas no último capítulo do “ Le Temps Retrouvé” (“OTempo Reencontrado”). No primeiro capítulo do primeiro livro, “Combray”, ele mostra sua infância dividida entre dois mundos, primeiramente o caminho de Méséglise e o caminho de Villebon (constante de seus rascunhos). O primeiro caminho, de Swann, o levaria para recantos inesquecíveis, coloridos pela exuberante paisagem, pelos espinheiros e pelo odor dos lilases; o segundo, que ganhou o nome definitivo de Guermantes com a publicação (em substituição a Villebon), com o qual pretendia simbolizar o passado histórico da França, o faria caminhar ao longo das margens do Vivonne, tendo como modelo as Nymphéas de Monet, que ali descreveu. Ele mostrará, igualmente, que esses dois mundos são intransponíveis, com uma demarcação absoluta, não se podendo, também, conhecer os dois lados num mesmo dia. Eles se constituíam em vasos fechados e sem comunicação entre si. Seria, pois, impossível uni-los e, no entanto, sozinhos eles não teriam a mesma importância, um precisaria do outro para existir. Há uma linha invisível entre eles, que os separa e permite que cada um exiba suas características próprias, as quais os tornam definidos e perfeitamente individualizados. O caminho de Swann representava a burguesia emergente e triunfante e o caminho de Guermantes simbolizava a aristocracia, que se julgava de origem divina, a nobreza, embora ela evidenciasse, já, os vestígios de sua decadência. O que ocorre é uma figuração poética de uma paisagem geográfica, com esses dois elementos diferentes, que adquire significado marcante no mundo da arte e constrói, assim, verdadeira metáfora. No último capítulo do último livro, “Le Temps Retrouvé”, “Matinée chez la princesse de Guermantes", o narrador, após ser introduzido no salão e tentar reconhecer nos presentes seus amigos do passado, no embate de suas reflexões de cunho filosófico e artístico, encontra Gilberte, que é filha de Swann e se casou com um Guermantes, Robert de Saint-Loup, e ela, apesar dos anos, ainda loquaz, resolve apresentar-lhe sua filha, Mademoiselle de Saint-Loup. Diante dele, a jovem, que trazia os traços culturais, a um só tempo, da burguesia e da nobreza, o conduziu aos dois grandes caminhos de seus passeios e de seus sonhos, por seu pai, o de Guermantes e, por sua mãe, o de Méséglise, fazendo-o compreender, finalmente, que os dois caminhos, outrora intransponíveis e incomunicáveis, eram agora um só, podendo-se ir a Guermantes passando pelo lado de Swann. O narrador não se cansava de olhar para ela, cuja beleza se formara nos anos que ele havia perdido: buscava recomeçar, então, a vida que se lhe esvaíra. Quando se fala, portanto, dos cem anos de “O Caminho de Swann”, onde Marcel Proust inicia sua Recherche, ou seja, sua procura, não se pode deixar de falar de “O Tempo Reencontrado”, onde tudo termina, porque um livro já estava dentro do outro, e um tempo já estava dentro do outro tempo, em perfeita sintonia, desde o primeiro dia da busca que levaria o narrador a reencontrar seu passado.

Melusine: Marcel Proust - O CAPACHO dos Guermantes -

Melusine: Marcel Proust - O CAPACHO dos Guermantes -

sábado, 2 de novembro de 2013

Marcel Proust - O CAPACHO dos Guermantes -




Marcel Proust - Jacques Lacan - Jacques Rancière O MITO DO CAPACHO : O Caminho de Guermantes - de Elsa Caravana Guelman. Para o filósofo francês Jacques Rancière “A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas mudas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos, e que resume o “tudo fala”de Novalis. Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.”(...) “O geólogo, o naturalista reconstitui populações animais a partir dos ossos, e florestas a partir de impressões fossilizadas. Com ele, define-se uma nova idéia de artista. O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos, pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E, nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a historia verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. Tudo fala.” Para Novalis "O homem não é o único a falar, o universo fala, tudo fala linguagens infinitas".. Segundo Rancière, o novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num sentido freudiano, “afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado Mitologizar para Lacan significa incorporar numa mesma história elementos que parecem contraditórios por pertencerem à sistemáticas diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia. O capacho dos Guermantes é um objeto banal, porém posicionado num lugar estratégico e original. O Capacho fala uma linguagem infinita para Marcel Proust. Ele não representava o limiar do mundo maravilhoso do herói, mas sim era o seu limite. Permitia, portanto, que o herói exprimisse o nome encantado dos Guermantes, misturando lenda e vivência, acoplados pelo imaginário e o real E é por essa apresentação mágica e viva que ele é mitologizado no entender de Rancière. Assim, a entrada constituída pelo capacho é um local de passagem obrigatório para conhecer o mundo dos Guermantes, um mundo fictício, colorido e imortalizado pelo seu passado e lendas medievais.” “...O palácio de Guermantes começava para mim na porta do seu vestíbulo...” Diante do capacho o herói se detém, como se muralhas gigantescas o detivessem e lhe impedissem a passagem naquela linha divisória, quando, por um toque mágico, num convite da duquesa de Guermantes, o capacho não só recebe seus pés como permite ainda seu transporte pela “galeria escura, de móveis forrados de pelúcia vermelha”, e ele é conduzido, inicialmente, ao mundo imaginário dos Guermantes para então ser transportado ao mundo da arte. . Na verdade, para os outros, o capacho continuava sendo um simples capacho, denotando os estragos do tempo, um lugar insignificante onde as pessoas, quando convidadas, limpavam os pés antes da entrada no vestíbulo dos Guermantes. Nada mais que isso. Para Marcel “ a linha de demarcação que me separava do Faubourg Saint-Germain, por ser puramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já Saint-Germain o capacho dos Guermantes estendido do outro lado daquele equador e do qual minha mãe se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que se achava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em péssimo estado.”(...) “E contentava-me em estremecer quando avistava do alto mar( e sem esperanças de jamais abordá-lo) como um minarete avançado, como uma primeira palma, como no início da indústria ou da vegetação exóticas, o capacho gasto da margem.” O capacho dos Guermantes, como mito, representava a linha divisória intransponível entre a aristocracia e as pessoas comuns, assim como a linha de demarcação do equador representava a divisão dos hemisférios norte e sul no mapa mundi.

terça-feira, 2 de julho de 2013

UM M ENINO


UM MENINO QUE NÃO SE CHAMAVA MÁRIO.

Elsa Caravana Guelman.


Um dia como outro qualquer, temperado por uma tênue chuva. Eu aguardava a chegada do elevador quando ele chegou com seu avô, suponho. Era um menino muito expressivo, irradiando simpatia. Usava uma camisa colorida com um nome bem grande: Mário. Olhei para ele e arrisquei uma conversa: _ Advinhei seu nome. É Mário, não? Ele me olhou e, de pronto, respondeu: _ Não é Mário. Eu sou Artur. Risos pelo meu engano, o menino não ostentava seu nome em sua camisa. Por que a usava, então?  Seria de algum ídolo? Do futebol, da música ? Não fiquei sabendo. Estava encerrada a minha intromissão quando o possível avô do menino, confidenciou-me de modo simpático: _ Ele está indo para a psicóloga. Olhei para o Artur e, de novo, para o avô : Tão novo... O avô se abriu, dizendo que o menino estava enfrentando problemas no colégio por saber de mais, por estar à frente dos colegas. Nesse ponto, nos separamos, já no elevador, quando saltaram no andar desejado.
A minha imaginação correu solta, imediatamente. Pensei  em outros casos, de adolescentes que tiveram de deixar seus colégios por se sentirem diferentes dos outros alunos, um deles por sua obesidade. Era maior que os demais, e isso incomodava.  Era diferente e essa diferença ofende, oprime e separa as pessoas. É a história do patinho feio que era, na verdade,  um lindo cisne  vivendo como patinho. Como é difícil ser diferente!
(Voei longe, no tempo, e cheguei a Marcel Proust, que, embora sendo um jovem culto, inteligente e penetrante, ao freqüentar os altos salões da aristocracia francesa, que vivia numa ostentação faustosa mundana, desprovida de  valores culturais, foi um estranho ao meio. Como e porque o aceitavam ? Julgavam-no  um  snob , mundano e amador? Não tinham capacidade sequer para aquilatar suas qualidades culturais. Sabiam-no escritor e  ele os encantava com seus conhecimentos  e sua curiosidade. Mas, mesmo tendo essa inteligência, cultura, ele não era um nobre, não carregava aquela origem divina que os nobres acreditavam possuir. Para eles, Marcel era  diferente, não nascera naquele meio. Só não entendiam que , embora não sendo um nobre, ele lhes era, em tudo, superior. Com todas essas diferenças ele foi aceito nesse mundo diferente, apesar de alguns atritos, sem importância. Para eles, era importante ter  em seu meio um homem tão inteligente, com tanta finura e sensibilidade. Julgando-se superiores poderiam aceitar um diferente, pois nenhum perigo corriam, ainda mais que esse diferente lhes era agradável. Para ele, aquela união desigual e efêmera fortaleceu sua visão do mundo, mostrando as desigualdades entre as pessoas e  aquele meio snob e mundano funcionou como um laboratório, um verdadeiro aquário onde ele pôde observar, em seus mínimos detalhes, todo o panorama moral,  social e cultural daquela sociedade proeminente. Poderia ter sido um mero cronista mundano, como  tantos existiam e tudo terminaria com a decadência da aristocracia. Nem seu nome seria conhecido. Mas, não, ele foi avante porque seu real fundamento era artístico e não sensacionalista e mundano. Ele buscava signos e os colheu abundantemente nos salões e os codificou em outros signos, os da Arte. E, assim, pôde concluir a sua obra, a sua Recherche Du temps Perdu, tornando-se um dos escritores mais importantes da França, aquele que a posteridade enalteceria.)

Quando desci do elevador, notei que o senhor que acompanhava o menino Artur, estava  sentado na portaria do prédio. Na certa, aguardava o menino, ainda com a psicóloga. O que estariam conversando? Na certa, ela deveria estar fortalecendo sua confiança, solidificando suas reservas para garantir suas defesas diante daqueles que se julgavam inferiores e, por isso,  reagiam, talvez, violentamente. Quem sabe, Artur, o que você ainda vai fazer com sua brilhante inteligência nesse mundo, que é muito grande, mas que, às vezes, se torna pequeno pela estreiteza e pela mesquinhez das pessoas.



segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Marcel Proust  -  O Caminho de Guermantes  -  Fernando Py (Tradução)

2a. Representação de BERMA: ÓPera . DIGRESSÃO




Meu pai, no ministério, tinha um amigo, um certo A. J. Moreau, o qual, para se distinguir
dos outros Moreau, tivera o cuidado de preceder sempre seu nome dessas duas iniciais, de modo
que o chamavam, para abreviar, de A. J.. Ora, não sei como esse A. J. se encontrou de posse de
uma poltrona para uma noite de gala na ópera; enviou-a a meu pai e, como a Berma, que eu não
vira mais desde a minha primeira decepção, devia representar um ato da Fedra, minha avó
conseguiu que meu pai me cedesse o ingresso.
Para dizer a verdade, eu não ligava nenhuma importância a essa oportunidade de ouvir a
Berma, que, alguns anos antes, me causara tanta agitação. E não foi sem melancolia que
constatei a minha indiferença relativamente ao que outrora preferira à saúde e ao repouso. Não
que fosse menos apaixonado que antes o meu desejo de poder ver de perto as parcelas
preciosas de realidade que a minha imaginação entrevia. Mas esta já não as situava agora na
dicção de uma grande atriz; desde minhas visitas à casa de Elstir, era a certas tapeçarias, certos
quadros modernos, que eu havia transferido a fé interior que sentira outrora por aquele
desempenho, por aquela arte trágica da Berma; já que minha fé e o meu desejo não vinham mais
prestar um culto incessante à dicção e às atitudes da Berma, o "duplo" que possuía deles em meu
coração definhara aos poucos, como aqueles outros "duplos" dos mortos do antigo Egito que era
necessário alimentar constantemente para lhes manter a vida. Tal arte se tornara medíocre e
mesquinha. Já nenhuma alma profunda a habitava.
No momento em que, aproveitando o ingresso recebido de meu pai, eu subia a grande
escadaria da ópera, percebi diante de mim um homem que a princípio julguei fosse o Sr. de
Charlus, de quem possuía o aspecto e o porte; quando virou a cabeça para pedir uma informação
a um empregado, vi que me enganara; entretanto, não hesitei em situar o desconhecido na
mesma classe social, não só devido à maneira como se vestia, mas também pela forma como
falava ao fiscal e às empregadas que o faziam esperar. Pois, apesar das particularidades
individuais, ainda havia àquela época, entre todo homem chique e rico daquela parte da
aristocracia e todo homem chique e rico do mundo das finanças ou da alta indústria, uma
diferença bem marcante. Onde um desses últimos julgaria afirmar sua distinção com um tom
categórico e altivo na presença de um inferior, o grão senhor, suave e sorridente, dava a
impressão de considerar e de exercer a afetação da humildade e da paciência, a simulação de ser
qualquer um dos espectadores, como um privilégio de sua boa educação. É provável que, ao vê-lo
dissimulando desse modo, sob um sorriso cheio de bonomia, a soleira intransponível do pequeno
universo especial que carregava dentro de si, mais de um filho de rico banqueiro, entrando nesse
instante no teatro, teria tomado esse grão-senhor por um homem de pouca importância, se não
lhe achasse uma espantosa semelhança com o retrato, recentemente reproduzido pelos jornais
ilustrados, de um sobrinho do imperador da Áustria, o príncipe de Saxe, que se encontrava
precisamente em Paris naquele momento. Sabia-o eu um grande amigo dos Guermantes.
Chegando perto do fiscal, ouvi o príncipe de Saxe, ou o seu suposto, dizer sorrindo: - Não sei o
número do camarote; foi sua prima que me disse que bastava eu perguntar pelo camarote dela.
Talvez fosse o príncipe de Saxe; e era talvez a duquesa de Guermantes (que, nesse caso,
eu poderia avistar vivendo um dos momentos de sua vida inimaginável, no camarote de sua
prima) que seus olhos viam em pensamento quando dizia: sua prima foi quem me disse que
bastava perguntar pelo camarote -, de modo que aquele olhar risonho e especial, e aquelas
palavras tão simples, me acariciavam o coração (bem mais do que o faria uma fantasia abstrata),
com as antenas alternativas de uma possível felicidade e de um prestígio incerto. Pelo menos,
dizendo essa frase ao fiscal, entroncava numa noitada vulgar da minha vida cotidiana uma
passagem eventual em direção a um mundo novo; o corredor, que lhe indicaram depois que
pronunciou a palavra camarote e pelo qual se enfiou, era úmido e gretado, parecendo levar a
grutas marinhas, ao reino mitológico das ninfas das águas. Eu tinha diante de mim apenas um
senhor de casaca que se afastava; porém manejava a seu redor, como a um refletor defeituoso, e
sem conseguir focalizá-lo exatamente sobre ele, a idéia de que ele era o príncipe de Saxe e ia ver
a duquesa de Guermantes. E, conquanto ele estivesse sozinho, essa idéia exterior a ele,
impalpável, imensa e sacudida como uma projeção, parecia precedê-lo e conduzi-lo como essa
Divindade, invisível para o restante dos homens, que se mantém junto do guerreiro grego.
Atingi meu lugar, sempre buscando recuperar um verso da Fedra de que não me
recordava com exatidão. Tal como o recitava para mim mesmo, ele não tinha o número de sílabas
requerido, mas, como não tentava contá-Ias, parecia-me não haver nenhuma medida comum
entre seu desequilíbrio e um verso clássico. Não ficaria espantado se fosse preciso tirar mais de
seis sílabas a esse verso monstruoso para compor um de doze pés. Mas lembrei-me dele de
repente, e as irredutíveis asperezas de um mundo inumano se desfizeram como por mágica; as
sílabas do verso logo preencheram a medida de um alexandrino, o que ele possuía em excesso
se desprendeu com tanta facilidade de leveza como uma bolha de ar que vem rebentar à
superfície da água. E, de fato, essa enormidade com que eu vinha lutando não passava de um
único pé.
Um determinado número de cadeiras de primeira fila tinham sido postas à venda no
escritório e foram compradas por esnobes ou curiosos que desejavam contemplar pessoas a que
não teriam outra oportunidade de ver de perto. E, com efeito, era bem um pouco de sua
verdadeira vida mundana, habitualmente escondida, que se poderia considerar em público, pois,
tendo a princesa de Parma repartido entre seus amigos os camarotes, os balcões e as frisas, a
sala era como um salão onde cada um mudava de lugar, ia sentar-se aqui ou ali, junto de uma
amiga.
A meu lado estavam pessoas vulgares que, não conhecendo os assinantes, queriam
mostrar serem capazes de reconhecê-los e os nomeavam em voz alta. Acrescentavam que esses
assinantes compareciam aqui como se fossem para o seu salão, com isto querendo dizer que não
prestavam atenção às peças representadas. Mas era o contrário o que ocorria. Um estudante
talentoso que obteve uma poltrona para ouvir a Berma só pensa em não sujar as luvas, em não
aborrecer, em se acomodar com o vizinho que o acaso lhe deu, em perseguir com um sorriso
intermitente o olhar fugidio, em fugir com um olhar descortês ao olhar de uma conhecida sua que
descobriu na sala e que, depois de mil perplexidades, decidiu ir cumprimentar no momento em
que as três pancadas, ressoando antes que tenha chegado junto dela, forçam-no a fugir como os
hebreus no Mar Vermelho, por entre as ondas encapeladas dos espectadores e espectadoras que
fez levantar e a quem rasga os vestidos ou pisa as botinas. Ao contrário, era porque as pessoas
da sociedade estavam em seus camarotes (por detrás dos balcões, em terraço), como em
pequenos salões suspensos de que fora retirada uma divisória, ou em pequenos cafés onde se
vai tomar um xarope, sem se ficar intimidado pelos espelhos com moldura de ouro e os assentos
vermelhos do estabelecimento de tipo napolitano; era porque pousavam uma mão indiferente
sobre os fustes dourados das colunas que sustentavam esse templo de arte lírica, era porque não
se achavam emocionados com as honras excessivas que pareciam lhes prestar duas figuras
esculpidas que estendiam palmas e louros para os camarotes, que somente eles poderiam ter o
espírito livre para escutar a peça, desde que tivessem espírito.
No começo não foram senão vagas trevas, onde a gente via, de súbito, como o raio de
uma pedra preciosa que não se enxerga, a fosforescência de dois olhos célebres, ou, como um
medalhão de Henrique IV destacado sobre um fundo negro, o perfil inclinado do duque de
Aumale, a quem uma dama invisível gritava:
- Monsenhor, permita-me que lhe tire o sobretudo. - ao passo que o príncipe respondia:
- Mas, ora, por quem é, senhora de Ambresac. - Ela o fazia, não obstante esse vago
protesto, e era invejada de todos por causa de tal honra.
Mas, nas outras frisas, quase por toda parte, as brancas deidades que moravam nessas
sombrias paragens se haviam refugiado de encontro às paredes obscuras e permaneciam
invisíveis. Contudo, à medida que o espetáculo prosseguia, suas formas vagamente humanas se
destacavam debilmente, uma após outra, das profundezas da noite que alcatifavam e, erguendose
para a luz do dia, deixavam emergir seus corpos seminus e vinham parar no limite vertical e na
superfície claro-escura, onde seus rostos brilhantes surgiam por trás do desfraldar risonho,
espumoso e leve de seus leques de plumas, sob suas cabeleiras de púrpura entretecidas de
pérolas que a ondulação da maré parecia ter encurvado; depois começavam as cadeiras da
primeira fila, o remanso dos mortais para sempre separado do reino sombrio e transparente ao
qual, aqui e ali, serviam de fronteira, em sua superfície líqüida e plana, os olhos límpidos e
reflexivos das deusas das águas. Pois as "ostras" das margens, as formas dos monstros da
orquestra, se pintavam nesses olhos segundo unicamente as leis da ótica e de acordo com o seu
ângulo de incidência, como acontece no caso dessas duas partes da realidade exterior, às quais,
sabendo nós que não possuem alma análoga à nossa, por mais rudimentar que seja, julgaríamos
insensato dirigir um sorriso ou um olhar: os minerais e as pessoas com quem não temos relações.
Aquém, ao contrário, do limite de seu domínio, as radiosas filhas do mar se voltavam a todo
instante, sorrindo, para os tritões barbudos pendurados nas anfractuosidades do abismo, ou para
algum semideus aquático que ostentava por crânio uma pedra polida, sobre a qual a onda colara
uma alga lisa, e por olhar um disco de cristal de rocha. Elas se debruçavam para eles, ofertavamlhes
bombons; às vezes, a onda se entreabria diante de uma nova nereida que, atrasada,
sorridente e confusa, acabava de desabrochar do fundo das sombras; depois, terminado o ato,
sem mais esperar ouvir os rumores melodiosos da terra que as atraíra à superfície, todas
mergulhando a um só tempo, as irmãs divinas desapareciam na noite. Mas de todas estas
pousadas, a cujo limiar a leve preocupação de perceber as obras dos homens levava essas
deusas curiosas, que não deixam ninguém chegar perto, a mais célebre era o bloco de semiobscuridade
conhecido pelo nome de camarote da princesa de Guermantes.
Como uma grande deusa que preside de longe aos jogos das divindades inferiores, a
princesa permanecera voluntariamente um pouco ao fundo, sobre um canapé lateral, vermelho
como um rochedo de coral, ao lado de uma larga reverberação de vidro que era provavelmente
um espelho, e fazia pensar em alguma secção que um raio teria efetuado, perpendicular, obscura
e líqüida, no cristal ofuscante das águas. Ao mesmo tempo pluma e corola, bem como certas
florações marinhas, uma grande flor branca, penugenta como uma asa, descia da testa da
princesa ao longo de uma das faces, cuja inflexão seguia com graciosa, adorável e viva
flexibilidade, e parecia encerrá-la a meio, como um rosado ovo, na doçura de um ninho de alcione.
Sobre a cabeleira da princesa, descendo até suas sobrancelhas, e depois retomada mais abaixo à
altura da garganta, estendia-se uma coifa composta dessas conchas brancas que são pescadas
em certos mares austrais e que estavam mescladas a pérolas, mosaico marinho mal saído das
ondas que por momentos se achava mergulhado na sombra, em cujo fundo, mesmo então, se
revelava uma presença humana pela mobilidade deslumbrante dos olhos da princesa. A beleza
que colocava esta bem acima das outras mulheres fabulosas da penumbra não era inteiramente
material e não estava inclusivamente inscrita em sua nuca, nos seus ombros, nos braços, no seu
talhe. Mas a linha deliciosa e inacabada desse talhe era o preciso ponto de partida, o chamariz
inevitável de linhas invisíveis nas quais o olho não podia se evitar de prolongá-las, maravilhosas,
engendradas ao redor da mulher como o espectro de uma figura ideal projetada nas trevas.
- É a princesa de Guermantes.- disse a minha vizinha ao senhor que estava com ela, tendo
o cuidado de pôr diante da palavra princesa vários pp, indicando que semelhante apelativo era
risível. - Ela não economizou suas pérolas. Creio que se tivesse outro tanto delas, não faria uma
tal ostentação; não acho que seja distinto.
Entretanto, reconhecendo a princesa, todos os que procuravam saber quem estava na sala
sentiam erguer-se no seu coração o trono legítimo da beleza. Com efeito, no caso da duquesa de
Luxemburgo, da Sra. de Morienval, da Sra. de Saint-Euverte, no caso de tantas outras, o que
permitia identificar-lhes os rostos era a conexão de um grosso nariz vermelho com um focinho-delebre
ou duas faces enrugadas com um fino bigode. Aliás, esses traços eram suficientes para
encantar, visto que, tendo apenas o valor convencional de uma escrita, davam a ler um nome
célebre que se impunha; mas também acabavam por dar a idéia de que a feiúra tem algo de
aristocrático e que é indiferente que o rosto de uma grande dama seja belo, se é distinto. Mas
como certos artistas que, em vez das letras do próprio nome, põem na parte inferior de suas telas
uma forma bonita por si mesma, uma borboleta, um lagarto, uma flor, da mesma maneira era a
forma de um corpo e um rosto delicioso o que a princesa punha ao canto de seu camarote,
mostrando assim que a beleza pode ser a mais nobre das assinaturas; pois a presença da Sra. de
Guermantes, que só levava ao teatro pessoas que durante todo o tempo faziam parte de sua
intimidade, era, aos olhos dos amadores da aristocracia, o melhor certificado de autenticidade do
quadro que seu camarote apresentava, espécie de evocação de uma cena da vida familiar e
própria da princesa nos seus palácios de Munique e de Paris.
Sendo a nossa imaginação como um realejo defeituoso que sempre toca uma coisa
diversa da ária indicada, a lembrança de certas obras do século XVI começava a cantar em mim
sempre que ouvia falar da princesa de Guermantes-Baviera. Precisava despojá-la agora dessas
recordações, já que a via no ato de oferecer bombons cristalizados a um corpulento senhor de
fraque. Claro que estava bem longe de concluir daí que ela e seus convidados fossem criaturas
semelhantes às outras. Compreendia perfeitamente que o que faziam ali não passava de um jogo
e que, para preludiar os atos de sua vida verdadeira (cuja parte importante, sem dúvida, não era
aqui que a viviam), era conveniente, em virtude de ritos de mim ignorados, que fingissem ofertar
ou recusar bombons, gesto destituído de sua significação e antecipadamente regulado como o
passo de uma dançarina, que sucessivamente se ergue na ponta dos pés e gira ao redor de uma
faixa. Quem sabe? Talvez no momento em que oferecia seus bombons, a Deusa dissesse num
tom de ironia (pois eu a via sorrir):
- Querem bombons? - Que me importava? Eu teria achado de um requinte delicioso a
secura intencional, à Mérimée ou à Meilhac, dessas palavras dirigidas por uma deusa a um
semideus, que, ele sim, sabia quais eram os pensamentos sublimes que ambos resumiam, sem
dúvida para o momento em que recomeçassem a viver sua vida verdadeira, e que, prestando-se a
esse jogo, respondia com a mesma e misteriosa malícia:
- Sim, quero um de cereja.
E eu teria ouvido esse diálogo com a mesma avidez com que ouviria determinada cena do
Marido da Estreante, onde a ausência de poesia, de pensamentos profundos, coisas tão
familiares para mim e que suponho Meilhac seria mil vezes capaz de pôr ali, me parecia por si só
uma elegância, uma elegância convencional e, portanto, mais misteriosa e instrutiva.
- Aquele gordo é o marquês de Ganançay. - disse com ar sabichão o meu vizinho, que mal
ouvira o nome sussurrado atrás dele.
O marquês de Palancy, de pescoço estendido, o rosto oblíquo, o grande olho redondo
colado contra o vidro do monóculo, deslocava-se devagar na sombra transparente e parecia não
ver o público da orquestra, como um peixe que passa e ignora a multidão dos visitantes curiosos,
por detrás da parede vítrea de um aquário. Detinha-se, por instantes, venerável, resfolegante e
musgoso, e os espectadores não teriam podido dizer se sofria, dormia, nadava, punha um ovo ou
simplesmente respirava. Ninguém excitava em mim tanta inveja como ele, por causa do hábito
que parecia ter daquele camarote e pela indiferença com que deixava a princesa lhe estender
bombons; ela então lhe lançava um olhar de seus belos olhos talhados em diamante, que a
inteligência e a amizade, nesses momentos, bem pareciam fluidificar, mas que, em repouso,
reduzidos à sua pura beleza material, a seu puro brilho mineralógico, incendiavam a profundidade
da platéia com seus fogos inumanos, horizontais e esplêndidos, se o menor reflexo os deslocasse
de leve. Entretanto, visto que ia começar o ato da Fedra representado pela Berma, a princesa
chegou-se para a frente do camarote; então, como se ela própria fosse uma aparição teatral, eu
vi, na zona diversa da luz que ela atravessou, mudar não somente a cor mas a matéria de seus
adereços. E, no camarote seco e emerso, que não mais pertencia ao mundo das águas, a
princesa, deixando de ser uma nereida, apareceu de turbante branco e de azul como uma trágica
maravilhosa vestida de Zaire ou talvez de Orosmane; depois, quando se sentou na primeira fila, vi
que o doce ninho de alcíone que suavemente protegia o rosado nácar de suas faces era macio,
brilhoso e aveludado, uma imensa ave-do-paraíso.
Todavia, meus olhares foram desviados do camarote da princesa de Guermantes por uma
mulherzinha mal vestida, feia, de olhos ardentes, que, acompanhada de dois jovens, veio sentarse
a algumas cadeiras de mim. Depois, o pano se ergueu. Não sem melancolia, verifiquei não me
restar coisa alguma de minhas disposições de outrora quando, para não perder nada do
fenômeno extraordinário que teria ido contemplar nos confins do mundo, mantinha o meu espírito
preparado como essas placas sensíveis que os astrônomos vão instalar na África, nas Antilhas,
com vistas à observação escrupulosa de um cometa ou de um eclipse; quando eu receava que
alguma nuvem (má-disposição da artista, incidente na assistência) impedisse que o espetáculo
alcançasse o seu máximo de intensidade; quando julgara não assisti-lo nas melhores condições
se não fosse ao próprio teatro que lhe era consagrado como um altar, onde então me pareciam
ainda fazer parte, embora acessoriamente, de seu aparecimento sob o pequeno pano rubro, os
fiscais de cravo branco na botoeira, nomeados por ela, o envasamento da nave acima de uma
platéia cheia de pessoas mal vestidas, as empregadas vendendo um programa com a sua
fotografia, os castanheiros do square, todos esses companheiros, esses confidentes de minhas
impressões daquela época e que se me afiguravam inseparáveis dela. Fedra, a "Cena da
declaração" e a Berma tinham então para mim uma espécie de existência absoluta. Situadas fora
do mundo da experiência usual, existiam por si mesmas, era-me preciso ir até elas, penetraria
delas o que fosse possível e, escancarando meus olhos e minha alma, absorveria ainda muito
pouco. E como a vida me parecia agradável! A insignificância a qual eu levava não tinha
importância nenhuma, como os momentos em que a gente se veste, quando se prepara para sair,
pois que além existiam, de medo absoluto, boas e difíceis de abordar, impossíveis de possuir por
inteiro, essas realidades mais sólidas, Fedra, a "maneira de recitar da Berma". Saturado por esses
devaneios sobre a perfeição na arte dramática das quais então se poderia extrair uma dose
importante, se nesses tempos houvessem analisado o meu espírito em algum instante que fosse
do dia, e talvez da noite, eu era como uma pilha que alimenta a sua eletricidade. E chegara um
momento em que, enfermo, ainda que julgasse morrer por causa disso, teria sido necessário que
fosse ouvir a Berma. Mas agora, como uma colina que ao longe parece feita de azul e que, de
perto, recai em nossa visão comum das coisas, tudo aquilo abandonara o universo do absoluto e
não passava de uma coisa igual às outras, de que eu tomava conhecimento porque estava ali, os
artistas eram pessoas da mesma natureza das que eu conhecia, procurando recitar o melhor
possível aqueles versos da Fedra que já não formavam uma essência sublime e individual,
apartada de tudo, e sim versos mais ou menos bem-sucedidos, prontos para entrar na imensa
matéria dos versos franceses a que se misturavam. Sentia um desânimo tanto mais profundo
como se o objeto do meu ativo e teimoso desejo não mais existisse; em compensação, persistiam
as mesmas disposições para um devaneio fixo, que mudava ano após ano, mas me conduzia a
uma brusca impulsão, desatenta do perigo. Certo dia em que, doente, eu saía para ver num
castelo um quadro de Elstir, uma tapeçaria gótica, parecia-se de tal forma ao dia em que eu
deveria ter partido para Veneza, ao dia em que fora ouvir a Berma, ou viajara para Balbec, que de
antemão sentia que o objeto atual do meu sacrifício me deixaria indiferente dentro de pouco
tempo e que eu poderia então passar bem perto dele sem ir olhar esse quadro, essas tapeçarias,
pelos quais teria naqueles momentos enfrentado tantas noites insones, tantas crises dolorosas.
Sentia, pela instabilidade de seu objeto, a vaidade de meu esforço e, ao mesmo tempo, a sua
enormidade, na qual não acreditara, como esses neurastênicos cuja fadiga é duplicada quando se
lhes observa que estão fatigados. À espera disto, meus sonhos davam prestígio a tudo o que
fosse possível ligar-se a eles. E, mesmo em meus desejos mais carnais, orientados sempre em
certa direção, concentrados em torno de um mesmo sonho, eu teria podido reconhecer uma idéia
como primeiro impulso, uma idéia à qual teria sacrificado a minha vida, e em cujo ponto mais
central, como em meus devaneios durante as tardes de leitura no jardim de Combray, estava a
idéia da perfeição.
Não tive mais a mesma indulgência de antigamente quanto às justas intenções de ternura
ou de cólera que notara então na dicção e na mímica de Arícia, de Ismênia e de Hipólito. Não é
que aqueles artistas eram os mesmos não buscassem sempre, com a mesma inteligência, dar à
sua voz aqui uma inflexão carinhosa ou uma ambigüidade calculada, ali a seus gestos uma
amplitude trágica ou uma doçura suplicante. Suas entonações ordenavam a essa voz: "Seja doce,
cante como um rouxinol, acaricie", ou, ao contrário: "Torne-se furiosa", e então se precipitavam
sobre ela para tentar empolgá-la em seu frenesi. Mas ela, rebelde, exterior à dicção deles,
continuava sendo, irredutivelmente, sua voz natural, com seus defeitos ou encantos materiais, sua
vulgaridade ou afetação cotidianas, e, assim, era um conjunto de fenômenos acústicos ou sociais
que o sentimento dos versos recitados não alterara.
Do mesmo modo, os gestos desses artistas diziam a seus braços, a seu peplo: "Seja
majestoso". Mas os membros insubmissos deixavam pavonear entre o ombro e o cotovelo um
bíceps que nada entendia do papel; continuavam a exprimir a insignificância da vida de todos os
dias e a pôr em destaque, em vez de matizes racinianos, conexões musculares; e o planejamento
que soerguiam caía de novo segundo uma vertical em que uma flexibilidade insossa e têxtil era a
única a disputá-lo às leis da queda dos corpos. Nesse momento, a mulherzinha perto de mim
exclamou:
- Nenhum aplauso! E como ela está presa! Mas é muito velha, não agüenta mais; nesses
casos a gente deve desistir.
Diante dos psius dos vizinhos, os dois jovens que a acompanhavam trataram de sossegála,
e então a sua raiva só se desencadeou em seus olhos. Essa raiva, aliás, só podia se dirigir à
glória, ao sucesso, pois a Berma, que ganhara tanto dinheiro, estava crivada de dívidas.
Marcando sempre encontros de negócios ou de amizade a que não podia comparecer, tinha em
todas as ruas moços de recados que corriam para cancelar, nos hotéis, apartamentos
antecipadamente reservados e que ela nunca ia ocupar, oceanos de perfumes para lavar suas
cadelas, vales para descontar com todos os diretores. À falta de gastos mais consideráveis, e
menos voluptuosa que Cleópatra, teria encontrado uma forma de devorar províncias e reinos
apenas em telegramas e carros da Companhia Urbana. Mas a mulherzinha era uma atriz que não
tivera oportunidade e votara ódio mortal à Berma. Esta acabava de entrar em cena. E então, ó
milagre: como essas lições que debalde nos esgotamos para aprender à noite e que encontramos
em nós, decoradas, depois de termos dormido, assim como essas faces de mortos que os
esforços apaixonados da nossa memória perseguem sem os achar e que, quando já não
pensamos neles, lá estão diante de nossos olhos, com a semelhança da vida, o talento da Berma
que me fugira quando procurara com tanta avidez captar-lhe a essência, agora, após esses anos
de olvido, nesta hora de indiferença, impunha-se com a força da evidência à minha admiração.
Antigamente, para tentar isolar esse talento, eu desfalcava de alguma forma daquilo que ouvia o
próprio papel, o papel, parte comum a todas as atrizes que representavam a Fedra e que havia
estudado de antemão para ser capaz de subtraí-lo, de recolher como resíduo unicamente o
talento da Sra. Berma.
Mas esse talento que eu buscava perceber fora do papel formava um só todo com ele.
Assim como ocorre com um grande músico (parece que era o caso de Vinteuil, quando ele tocava
piano), seu desempenho é de um tão grande pianista que já nem se sabe mais se esse artista é
pianista mesmo, porque (não interpondo todo esse aparato de esforços musculares, aqui e ali
coroados de efeitos brilhantes, todos esses salpicos de notas, onde pelo menos o ouvinte que não
sabe a que se ater julga descobrir talento em sua realidade material, tangível) tal execução
tornou-se tão transparente, tão repleta do que ele está interpretando que a ele próprio já ninguém
o vê, o artista não passa de uma janela que se abre para uma obra-prima. As intenções que
cercam, como um bordado majestoso ou delicado, a voz e a mímica de Arícia, de Ismênia e de
Hipólito, eu lograra distingui-las; porém Fedra as interiorizara, e meu espírito não conseguira
arrancar à dicção e às atitudes, apreender na avara simplicidade de suas superfícies unidas
àqueles achados, aqueles efeitos que não se ressaltariam tanto se não fossem profundamente
reabsorvidos. A voz da Berma, na qual não subsistia mais um só resíduo de matéria inerte e
refratária ao espírito, não deixava discernir a seu redor aquele excesso de lágrimas que se via
correr porque não tinham podido se embeber na voz de mármore de Arícia ou de Ismênia, mas
fora delicadamente suavizado em suas menores células, como o instrumento de um grande
violonista no qual se deseja louvar, quando se diz que possui um bom som, não uma
particularidade física, mas uma superioridade de alma; e, como numa paisagem antiga, onde, em
vez de uma ninfa desaparecida existe uma fonte inanimada, uma intenção distinguível e
consciente se transformara em uma qualidade de timbre, de estranha limpidez, fria e apropriada.
Os braços da Berma que os próprios versos, na mesma emissão com que faziam sair sua voz dos
lábios, pareciam erguer sobre seu peito como essas folhagens que a água desloca ao se escapar;
sua atitude em cena, que ela vagarosamente constituíra, que modificaria ainda, e que era feita de
raciocínios de uma profundeza diversa dos daqueles cujos traços se percebiam nos gestos das
companheiras, raciocínios, porém, que tinham perdido sua origem voluntária, dissolvidos numa
espécie de irradiação em que faziam palpitar, em torno ao personagem de Fedra, elementos ricos
e complexos, mas que o espectador, fascinado, tomava não por um sucesso da artista e, sim, por
um dom da vida; e até aqueles brancos véus, que, extenuados e fiéis, pareciam matéria viva e ter
sido fiados pelo sofrimento meio pagão, meio jansenista, em torno ao qual se contraíam como um
casulo frágil e friorento; tudo isto, voz, atitudes, gestos, véus, não era, ao redor daquele corpo,
senão uma idéia do que é um verso (corpo que, ao contrário dos corpos humanos, não está diante
da alma como um obstáculo opaco que impede percebê-la e, sim, como uma vestimenta
purificada, vivificada, onde ela se difunde e onde a encontramos), senão invólucros suplementares
que, em lugar de escondê-la, exibiam mais esplendorosamente a alma que os assimilara e neles
se espalhara, como vagas de substâncias diversas, tornadas translúcidas, cuja superposição só
faz refratar com maior riqueza o raio central e prisioneiro que as atravessa e tornar mais extensa,
mais preciosa e mais linda a matéria embebida de flamas onde está envolvido. Assim, a
interpretação da Berma era, em torno da obra, uma segunda obra, igualmente vivificada pelo
gênio.
Minha impressão, a falar a verdade, mais agradável que a de outrora, não era diferente.
Apenas, não mais a comparava a uma idéia preconcebida, abstrata e falsa, do gênio dramático, e
compreendia que o gênio dramático era justamente aquilo. Havia pouco, pensava que, se não
sentira prazer da primeira vez que ouvira a Berma, era que ia a ela com um desejo muito intenso,
como antigamente quando encontrava Gilberte nos Champs-Élysées. Entre as duas decepções
não havia talvez somente esta parecença, mas uma outra também, mais profunda. A impressão
que nos causa uma pessoa, uma obra (ou uma interpretação) fortemente caracterizadas é
particular. Chegamos com todas as nossas idéias de "beleza", "amplitude de estilo", "patético"
que, a rigor, poderíamos ter a ilusão de reconhecer na banalidade de um talento e de um rosto
corretos, porém o nosso espírito atento tem diante de si a insistência de uma forma da qual não
possui o equivalente intelectual e cujo desconhecido precisa descobrir. Ouve um som agudo, uma
entonação estranhamente interrogativa. Pergunta a si próprio: "É belo? O que estou sentindo é
admiração? É isto a riqueza de colorido, a nobreza, a força?" E o que lhe responde de novo é uma
voz aguda, é um tom curiosamente questionador, é a impressão despótica provocada por um ser
a quem não se conhece, impressão puramente material e na qual não se deixa nenhum espaço
vago para a "amplitude da interpretação". E, devido a isso, as obras verdadeiramente belas, se
sinceramente escutadas, são as que mais devem nos decepcionar, porque, na coleção das
nossas idéias, não houve nenhuma que correspondesse a uma impressão individual.
Era precisamente isso o que me mostrava o desempenho da Berma. Era bem aquilo a
nobreza e a inteligência da dicção. Agora eu me dava conta dos méritos de uma interpretação
ampla, poética, poderosa; ou melhor, era aquilo a interpretação a que se convencionou atribuir
esses títulos, mas como se dá o nome de Marte, de Vênus e de Saturno aos astros que nada têm
de mitológico. Sentimos num mundo, pensamos e nomeamos em outro mundo, podemos entre
ambos estabelecer uma concordância, mas não preencher o intervalo. Era bem pouca coisa esse
intervalo, essa falha, que eu tivera de transpor quando, no primeiro dia em que fora ouvir a Berma,
tendo-a escutado com todos os meus ouvidos, sentira um certo esforço para reunir minhas idéias
de "nobreza de interpretação", de "originalidade", e só rompera em aplausos após um instante de
vazio e como se tais aplausos nascessem não de minha própria impressão, mas como se os
unisse a minhas idéias antecipadas, ao prazer que tinha em dizer a mim mesmo: "Enfim, estou
ouvindo a Berma." E a diferença que há entre uma pessoa, uma obra fortemente individual e a
idéia de beleza existe, igualmente grande, entre o que elas nos fazem sentir e as idéias de amor e
de admiração. Portanto, não as reconhecemos. Eu não sentira prazer em ouvir a Berma (como
não a sentira em ver Gilberte). Dissera comigo: "Logo, não a admiro." Todavia, só pensava então
em criticar o desempenho da Berma, só me preocupava com isso, tentava abrir o meu
pensamento o mais amplamente possível para receber tudo o que continha a sua interpretação.
Agora compreendia que era justamente isto: admirar.
Este gênio, do qual a interpretação da Berma era apenas a revelação, seria na verdade
unicamente o gênio de Racine?
Foi o que acreditei, a princípio. Deveria me desenganar, tão logo terminou o ato da Fedra,
depois dos aplausos do público, durante os quais minha vizinha, a velha enraivecida, erguendo a
minúscula estatura e enviesando o corpo, imobilizou os músculos do rosto e cruzou os braços no
peito para mostrar que não se misturava aos aplausos alheios e tornar mais evidente um protesto
que julgava sensacional, mas que passou despercebido. A peça seguinte era uma das novidades
que, outrora, devido à falta de celebridade, achava eu que deveriam parecer fracas, restritas,
destituídas como eram de existência fora da interpretação que lhe davam. Mas eu não tinha, como
no caso de uma peça clássica, essa decepção de ver que a eternidade de uma obra-prima não
era mais extensa que o tamanho do palco nem durava mais que a representação que a
desempenhava como uma peça circunstancial. Depois, a cada tirada que sentia que o público
apreciava e que um dia seria famosa, em vez da celebridade que não pudera ter no passado, eu
acrescentava a que ela teria no futuro, por um esforço de espírito contrário ao que consiste em
idealizar obras-primas ao tempo de sua estréia infeliz, quando seu título, que jamais fora ouvido,
não parecia devesse ser posto um dia, confundido sob a mesma luz, ao lado do das outras obras
do autor. E aquele viria a ser colocado, um dia, na lista de seus mais belos papéis, ao lado do de
Fedra. Não que em si mesmo não fosse desprovido de qualquer valor literário; mas a Berma, nele,
era tão sublime como em Fedra. Compreendi então que a obra do escritor não era, para a artista
trágica, senão uma matéria quase indiferente em si mesma para a criação de sua obra-prima de
interpretação, como o grande pintor que conhecera em Balbec, Elstir, encontrara o motivo de dois
quadros que se equivalem num prédio escolar sem estilo e numa catedral que é, por si mesma,
uma obra-prima. E como o pintor dissolve casa, carroça, personagens, em um grande efeito de luz
que os torna homogêneos, a Berma estendia amplas camadas de terror, de ternura, sobre as
palavras fundidas por igual, todas niveladas ou ressaltadas em conjunto, e que uma artista
medíocre teria destacado uma após a outra. Sem dúvida, cada qual tinha uma inflexão própria, e a
dicção da Berma não impedia que se percebesse o verso. Não é já um primeiro elemento de
complexidade, de beleza, quando, ouvindo uma rima, isto é, algo ao mesmo tempo igual e
diferente da rima anterior, por ela motivada, mas que aí introduz a variação de uma idéia nova, se
sentem dois sistemas que se superpõem, um de pensamento e o outro de métrica? No entanto, a
Berma fazia entrar as palavras, até os versos e mesmo as "tiradas", em conjuntos mais vastos
que eles próprios, em cuja fronteira era um encanto vê-los obrigados a parar, a interromper-se;
assim um poeta sente prazer em fazer hesitar, por um momento, na rima, a palavra que vai se
lançar, e um compositor em confundir as palavras diversas de um libreto em um mesmo ritmo que
as arrasta e contraria. Assim nas frases do dramaturgo moderno, como nos versos de Racine, a
Berma sabia introduzir essas vastas imagens de dor, de nobreza, de paixão, que eram suas
obras-primas pessoais, e onde a reconheciam como se reconhece um pintor nos quadros que
pintou segundo modelos diferentes.
Não mais desejaria, como antigamente, poder imobilizar as atitudes da Berma, o belo
efeito de cor que ela conferia por um instante apenas numa iluminação logo desvanecida e que
não se reproduzia, nem fazer com que repetisse um verso uma centena de vezes. Compreendia
que meu desejo de outrora era mais exigente que a vontade do poeta, da trágica, do grande
artista decorador que era o seu cenógrafo, e que aquele encanto espalhado em pleno vôo sobre
um verso, aqueles gestos vacilantes perpetuamente transformados, aqueles quadros sucessivos
eram o resultado fugaz, o fim momentâneo, a móvel obra-prima que a arte teatral se propunha e
que a atenção de um espectador demasiadamente apaixonado acabaria por destruir, querendo
fixá-la. Até nem fazia questão de voltar outro dia para ouvir de novo a Berma; estava satisfeito
com ela; era quando estava admirando demais para que não ficasse decepcionado com o objeto
da minha admiração, fosse ele Gilberte ou a Berma, que eu pedia previamente à impressão do dia
seguinte o prazer que me recusara a impressão da véspera. Sem procurar analisar a alegria que
acabara de sentir, e a que talvez pudesse ter dado um emprego mais fecundo, murmurava comigo
mesmo, como dizia outrora um de meus companheiros de colégio: "É verdadeiramente a Berma
que coloco em primeiro lugar", todavia sentindo confusamente que o gênio da Berma não fosse
talvez traduzido precisamente por aquela afirmação de minha preferência e por aquele posto de
"primeira" que lhe atribuía, apesar da tranqüilidade que me causavam.
No momento em que principiou a segunda peça, olhei para o lado do camarote da Sra. de
Guermantes. Esta princesa, por um movimento gerador de uma linha deliciosa que meu espírito
perseguia no vácuo, acabava de virar a cabeça para o fundo do camarote; os convidados estavam
de pé, também voltados para o fundo, e entre a dupla fila que formavam, em sua segurança e
grandeza de deusa, mas com uma doçura desconhecida que se devia à confusão tímida e risonha
de ter chegado tão tarde e de fazer todo mundo se levantar no meio da representação, entrou a
duquesa de Guermantes, toda envolta em brancas musselinas. Foi direto para a sua prima, fez
uma profunda reverência a um rapaz louro que estava sentado bem na frente e, voltando-se para
os monstros marinhos e sagrados que flutuavam no fundo do antro, fez a esses semideuses do
Jockey-Club que naquele instante, e especialmente o Sr. de Palancy, foram os homens que eu
mais gostaria de ser um cumprimento familiar de velha amiga, alusão ao aspecto dia-a-dia de
suas relações com eles há quinze anos. Eu percebia o mistério mas não podia decifrar o enigma
daquele olhar risonho que ela dirigia aos amigos, no brilho azulado em que fulgia, enquanto
abandonava a mão a uns e outros, e que, se lhe tivesse podido decompor o prisma, analisado
suas cristalizações, talvez me revelasse a essência da vida desconhecida que nela se mostrava
naquele instante. O duque de Guermantes seguia a mulher, com os reflexos de seu monóculo, o
riso de seus dentes, a brancura do cravo em sua botoeira ou de seu plastrão plissado, e
afastando, para dar lugar à luz de tudo isto, suas sobrancelhas, seus lábios e seu fraque; com um
gesto da mão estendida, que baixou sobre os ombros deles, teso, sem mover a cabeça, ordenou
que se sentassem aos monstros inferiores que lhe davam lugar, e inclinou-se profundamente
diante do jovem louro. Poder-se-ia dizer que a duquesa adivinhara que sua prima, a quem
criticava, diziam, o que ela chamava de exageros (nome que, de seu ponto de vista
espirituosamente francês e bastante moderado, assumiam logo a poesia e o entusiasmo
germânicos), usaria naquela noite uma das toaletes em que a considerava "fantasiada", e que
desejara dar-lhe uma aula de bom gosto. Em vez das maravilhosas e macias plumas que desciam
da cabeça da princesa até o seu pescoço, em vez da rede de conchinhas e pérolas, a duquesa
não ostentava nos cabelos mais que uma simples aigrette que, dominando seu nariz arqueado e
os olhos saltados, parecia a crista de um pássaro. Seu pescoço e ombros emergiam de uma onda
nevada de musselina contra a qual vinha bater um leque de plumas de cisne, mas a seguir o
vestido, cujo corpete possuía, como único ornamento, inumeráveis palhetas, seja de metal, em
varinhas ou em grãos, seja de brilhantes, modelava-lhe o corpo com uma precisão absolutamente
britânica. Mas, por mais diversas que fossem as toaletes de uma e de outra, depois que a
princesa cedeu à prima a cadeira que ocupava até então, viram-nas se voltarem uma para a outra
e se admirarem reciprocamente.
Talvez a duquesa de Guermantes, no dia seguinte, sorrisse ao falar do penteado um tanto
complicado da princesa, mas certamente iria declarar que esta nem por isso estava menos
deslumbrante e maravilhosamente arrumada; e a princesa que, por gosto, achava algo um tanto
frio, um tanto seco, um tanto couturier demais no modo como se vestia a prima, descobria um
refinamento delicado naquela sobriedade estrita. Aliás, entre elas, a harmonia e a gravitação
universal preestabelecida de sua educação neutralizavam os contrastes não só de ajustamento
mas de atitude. Nessas linhas invisíveis e imantadas que a elegância de maneiras estendia entre
elas, vinha expirar a natureza expansiva da princesa, ao passo que a retidão da duquesa se
deixava atrair e infletir para elas, fazendo-se doçura e encanto. Assim como na peça que se
representava, para compreender o que a Berma irradiava de poesia pessoal, bastaria confiar o
papel que ela desempenhava, e que somente ela podia desempenhar, a qualquer outra atriz, o
espectador que erguesse os olhos para o balcão teria visto, em dois camarotes, um "arranjo", que
ela julgava relembrar os penteados da princesa de Guermantes, dar simplesmente à baronesa de
Morienval o ar excêntrico, pretensioso e mal-educado, e um esforço a um tempo custoso e
paciente para imitar as toaletes e a elegância da duquesa de Guermantes, fazer apenas a Srta. de
Cambremer se assemelhar a uma pensionista provinciana, armada em arame, tesa, seca e
aguda, um penacho de carro fúnebre verticalmente enfiado nos cabelos. Talvez o lugar desta
última não fosse numa sala onde era somente com as mulheres mais brilhantes do ano que os
camarotes (e até os mais altos, que de baixo pareciam grandes cestos cheios de flores humanas
e ligados à abóbada da sala pelas rédeas rubras de suas divisões de veludo) compunham uma
paisagem momentânea que os mortos, os escândalos, as doenças e as brigas em breve
modificariam, mas que naquele momento estava imobilizada pela atenção, pelo calor, pela
vertigem, pela poeira, a elegância e o tédio, nesse tipo de instante eterno e trágico de espera
inconsciente e de tranqüilo embotamento que, retrospectivamente, parece ter precedido a
explosão de uma bomba ou a primeira chama de um incêndio.
O motivo pelo qual a Sra. de Cambremer se achava ali era que a princesa de Parma,
desprovida de esnobismo como a maior parte das legítimas altezas e, em compensação,
devorada pelo orgulho e pelo desejo de praticar a caridade, que nela igualava o gosto pelo que
imaginava ser as Artes, cedera aqui e ali alguns camarotes para mulheres como a Sra. de
Cambremer, que não fazia parte da alta sociedade aristocrática, mas com quem se relacionava
devido às suas obras de beneficência. A Sra. de Cambremer não tirava os olhos da duquesa e da
princesa de Guermantes, o que lhe era tanto mais fácil porque, não tendo verdadeiras relações
com elas, não podia dar a impressão de implorar um cumprimento. Ser recebida em casa dessas
duas grandes damas era no entanto o objetivo que ela perseguia há dez anos com infatigável
paciência. Calculara que o conseguiria certamente dentro de cinco anos.
Mas, atingida por uma doença que não perdoa e cujo caráter inexorável julgava conhecer,
vangloriando-se de saberes médicos, temia não poder viver até lá. Pelo menos sentia-se feliz
naquela noite ao pensar que todas aquelas mulheres a quem mal conhecia veriam junto dela, um
de seus amigos, o jovem marquês de Beausergent, irmão da Sra. de Argencourt, que também
freqüentava as duas sociedades e cuja companhia as mulheres da segunda apreciavam muito
ostentar aos olhos da primeira. Estava sentado atrás da Sra. de Cambremer, numa cadeira
enviesada, para poder observar os demais camarotes. Conhecia todos ali e, para cumprimentar,
com a arrebatadora elegância das lindas mesuras garbosas de sua cabeça loura, erguia a meio o
corpo bem aprumado, com um sorriso nos olhos azuis, num misto de respeito e desenvoltura,
gravando assim com precisão, no retângulo do plano oblíquo em que se achava posto, algo como
uma dessas velhas estampas que mostram um grão-senhor altivo e cortesão. Muitas vezes
aceitava, desse modo, ir ao teatro com a Sra. de Cambremer; na sala, e à saída, no vestíbulo,
permanecia corajosamente junto dela no meio da multidão de amigas mais brilhantes do que a
que lhe estava ao lado, à qual evitava falar, não querendo constrangê-las, e como se estivesse
em má companhia. Se então passava a princesa de Guermantes, ligeira e bela como Diana,
arrastando atrás de si uma capa incomparável, fazendo com que todas as cabeças se virassem e
seguida de todos os olhares (mais pelos da Sra. de Cambremer que pelos dos outros), o Sr. de
Beausergent se absorvia numa conversação com sua vizinha, não correspondia ao sorriso
amistoso e deslumbrante da princesa senão por obrigação e forçado, e com a reserva bemeducada
e a caridosa frieza de alguém cuja amabilidade pode se tornar momentaneamente
constrangedora.
A Sra. de Cambremer, mesmo que não soubesse que a frisa pertencia à princesa, teria no
entanto reconhecido que a Sra. de Guermantes era a convidada, devido ao ar de maior atenção
que esta prestava ao espetáculo da cena e da sala, para ser amável com quem a convidara. Mas
ao mesmo tempo que essa força centrífuga, uma força contrária desenvolvida pelo mesmo desejo
de amabilidade levava a atenção da duquesa de volta à própria toalete, para a sua aigrette, o
colar, o corpete, e até para o da própria princesa, de quem parecia se proclamar vassala, escrava,
vinda até aqui exclusivamente para vê-la, pronta para segui-la alhures se à titular do camarote lhe
desse a fantasia de ir-se embora, e só considerando um grupo de estranhos curiosos o restante
da sala, onde possuía entretanto um grande número de amigos, em cujos camarotes ela se
encontrava em outras semanas e para com os quais então não deixava de dar mostras da mesma
lealdade exclusiva, relativista e semanal. A Sra. de Cambremer estava espantada de ver a
duquesa nessa noite. Sabia que ela ficava até bem tarde em Guermantes e supunha que ali se
achasse ainda. Mas contaram-lhe que, às vezes, quando se dava em Paris um espetáculo que ela
julgava interessante, a Sra. de Guermantes mandava atrelar um de seus carros logo depois de
tomar chá com os caçadores e, ao sol poente, partia a trote rápido através da floresta crepuscular,
depois pela estrada, para tomar o trem em Combray a fim de estar à noite em Paris. "Talvez ela
tenha vindo de Guermantes expressamente para ouvir a Berma", pensava a Sra. de Cambremer
com admiração. E se lembrava de que ouvira Swann dizer, nesse jargão ambíguo que ele possuía
em comum com o Sr. de Charlus: - A duquesa é uma das criaturas mais nobres de Paris, da elite
mais requintada e escolhida. - Por mim, que fazia derivar do nome de Guermantes, do nome de
Baviera e do nome de Condé a vida e o pensamento das duas primas (não podia fazer o mesmo
no tocante a seus rostos, pois já os vira), preferia conhecer o seu julgamento sobre a Fedra do
que o do maior crítico do mundo. Pois no julgamento delas não teria encontrado mais que
inteligência, inteligência superior à minha, mas da mesma natureza. Porém o que pensavam a
duquesa e a princesa de Guermantes, e que me teria fornecido um documento inestimável acerca
da natureza dessas duas poéticas criaturas, eu o imaginava com a ajuda de seus nomes, aos
quais atribuía um encanto irracional e, com a sede e a nostalgia de uma pessoa febril, o que eu
pedia que sua opinião sobre a Fedra me desse era o encanto das tardes de verão em que eu ia
passear para os lados de Guermantes.
A Sra. de Cambremer tentava distinguir que espécie de toalete usavam as duas primas.
Quanto a mim, não duvidava que essas toaletes lhe fossem peculiares. Não só no sentido em que
a libré de gola vermelha ou lapela azul pertencera outrora exclusivamente aos Guermantes e aos
Condé, mas antes como a um pássaro a plumagem que não é apenas um ornamento de sua
beleza, mas uma extensão de seu corpo. A toalete dessas duas mulheres parecia-me como uma
materialização nívea ou matizada de sua atividade interior, e, como os gestos que eu vira fazer a
princesa de Guermantes, e que não duvidara correspondessem a uma idéia oculta, as plumas que
desciam de sua testa e o corpete esplendoroso e recamado de sua prima pareciam ter um
significado, ser, para cada uma, um atributo que era apenas delas e cujo sentido gostaria de
conhecer: a ave-do-paraíso me parecia inseparável de uma, como o pavão de Juno; não
imaginava que uma pudesse usurpar o corpete recamado da outra como não faria com a égide
cintilante e franjada de Minerva. E, quando erguia meus olhos para aquele camarote, muito mais
que no teto do teatro, onde estavam pintadas alegorias, era como se avistasse, graças à abertura
miraculosa das nuvens de costume, a assembléia dos Deuses ocupados em contemplar o
espetáculo dos homens, debaixo de um toldo rubro, numa clareira luminosa, entre dois pilares do
Céu. Eu contemplava essa apoteose momentânea com uma perturbação que mesclava a paz ao
sentimento de ser ignorado pelos Imortais; a duquesa me vira uma vez com o marido, mas
certamente não devia se lembrar disso, e não me era penoso que ela, pelo posto que ocupava no
camarote, ficasse contemplando as madrepérolas anônimas e coletivas da platéia das primeiras
filas, pois sentia com felicidade o meu ser dissolvido no meio delas, quando, no momento em que,
em virtude das leis da refração, veio sem dúvida pintar-se na corrente impassível dos dois olhos
azuis, a forma confusa do protozoário desprovido de existência individual que eu era, vi uma
claridade iluminá-los: a duquesa, transformada de deusa em mulher e parecendo-me subitamente
mil vezes mais bela, ergueu para mim a mão enluvada de branco que mantinha apoiada no
rebordo da frisa, agitou-a em sinal de amizade, meu olhar se sentiu atravessado pela
incandescência involuntária e pelo fogo dos olhos da princesa, que os fizera entrar em
conflagração só pelo fato de movê-los para ver a quem a prima cumprimentava; e esta, que me
reconhecera, fez chover sobre mim o aguaceiro fulgurante e celeste de seu sorriso.
Agora, todas as manhãs, bem antes da hora em que ela saía, eu rumava por um longo
desvio e ia me postar na esquina da rua pela qual ela costumava descer e, quando o momento de
sua passagem me parecia próximo, subia com um ar distraído, olhando na direção oposta e
erguendo os olhos para ela assim que chegava à sua altura, mas como se de modo nenhum
esperasse vê-la. Nos primeiros dias até, para estar mais seguro de não perdê-la, eu esperava
diante da casa, E, todas as vezes que o portão principal se abria (deixando passar
sucessivamente tantas pessoas que não eram aquela que eu esperava), a sua agitação logo se
prolongava em meu peito, em oscilações que custavam a se acalmar. Pois nunca um fanático de
uma grande comediante a quem não conhece, cansando-se de esperar de pé diante de onde
saem os artistas, nunca uma multidão exasperada ou idólatra, reunida para insultar ou carregar
em triunfo o condenado ou o grande homem que se julga estar a ponto de passar a cada vez que
se ouve um rumor vindo do interior da prisão ou do palácio, se sentiram tão emocionados como
eu, esperando a saída daquela grande dama que, em sua toalete simples, sabia, pela graça de
seu caminhar (bem diverso do modo de andar que exibia ao entrar num salão ou num camarote),
fazer de seu passeio matinal para mim, em todo o mundo, só existia ela a passear todo um poema
de elegância e o mais requintado adereço, a mais curiosa flor do bom tempo. Mas, depois de três
dias, para que o porteiro não percebesse a minha manobra, fui até bem mais longe, até a um
ponto qualquer do percurso habitual da duquesa. Com freqüência, antes daquela noite no teatro,
eu dava desse modo pequenas escapadas antes do almoço, quando fazia bom tempo; se tivesse
chovido, eu descia à primeira estiagem para dar alguns passos e, de repente, vindo pela calçada
ainda úmida, transformada pela luz em laca de ouro, na apoteose de uma encruzilhada coberta de
pó de uma névoa que o sol curtia e dourava, avistava uma pensionista seguida de sua professora,
ou uma leiteira com suas mangas brancas; eu permanecia imóvel, uma mão no peito, e o coração
já se lançava para uma vida estranha; procurava lembrar-me da rua, da hora, da porta em que a
menina (que às vezes eu seguia) desaparecera sem voltar a sair. Felizmente, a fugacidade
dessas imagens afagadas (e que eu me prometia tentar rever) as impedia de se fixarem com força
em minha lembrança. Não importa, sentia-me menos triste por estar doente, de nunca ter tido
ainda coragem de me pôr a trabalhar, a começar um livro. A terra me parecia mais agradável de
morar, a vida mais interessante de percorrer desde que via que as ruas de Paris, como as
estradas de Balbec, estavam floridas por essas belezas ignoradas que tantas vezes eu procurara
fazer surgir dos bosques de Méséglise, e o desejo voluptuoso que cada uma excitava somente ela
seria capaz de saciar.
Voltando da ópera, acrescentara, para o dia seguinte, às imagens que desde alguns dias
sonhava reencontrar, a da Sra. de Guermantes, grandiosa, com seu penteado alto de cabelos
louros e leves, com a ternura prometida no sorriso que me endereçara da frisa de sua prima.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O poeta André Chenier na prisão Saint Lazare Paris



A Revolução Francesa e a Poesia.

"André Marie de Chénier, dit André Chénier, fils de Louis de Chénier, est né le 30 octobre 1762 à Constantinople et mort guillotiné à Paris le 7 Thermidor de l'an II (25 juillet 1794).
L'œuvre inachevée de ce jeune poète du XVIIIe siècle, publiée progressivement à partir de 1819, a fait de lui une figure majeure de l'hellénisme en France ["].  WIKIPEDIA





executedtoday.com





















Charles-Louis Muller’s 19th century painting of the Saint Lazare Prison “conspirators” being summoned to their doom. Seated in the center is Andre Chenier.




LA JEUNE TARENTINE




Pleurez, doux alcyons, ô vous, oiseaux sacrés,
Oiseaux chers à Thétis, doux alcyons, pleurez.
Elle a vécu, Myrto, la jeune Tarentine.
Un vaisseau la portait aux bords de Camarine.
Là l’hymen, les chansons, les flûtes, lentement
Devaient la reconduire au seuil de son amant.
Une clef vigilante a pour cette journée.
Dans le cèdre enfermée sa robe d’hyménée
Et l’or dont au festin ses bras seraient parés
Et pour ses blonds cheveux les parfums préparés.
Mais, seule sur la proue, invoquant les étoiles,
Le vent impétueux qui soufflait dans les voiles
L’enveloppe. Etonnée, et loin des matelots,
Elle crie, elle tombe, elle est au sein des flots.
Elle est au sein des flots, la jeune Tarentine.
Son beau corps a roulé sous la vague marine.
Thétis, les yeux en pleurs, dans le creux d’un rocher
Aux monstres dévorants eut soin de le cacher.
Par ses ordres bientôt les belles Néréides
L’élèvent au-dessus des demeures humides,
Le portent au rivage, et dans ce monument
L’ont, au cap de Zéphyr, déposé mollement.
Puis de loin à grands cris appelant leurs compagnes,
Et les Nymphes des bois, des sources, des montagnes,
Toutes, frappant leur sein et traînant un long deuil,
Répétèrent : “Hélas !” autour de son cercueil.
Hélas ! chez ton amant tu n’es point ramenée.
Tu n’as point revêtu ta robe d’hyménée.
L’or autour de tes bras n’a point serré de noeuds.
Les doux parfums n’ont point coulé sur tes cheveux.

Vocabulaire
alcyons: oiseaux fabuleux qui faisaient leur nid sur les flots et qui étaient considérés comme oiseaux d’un heureux présage.
Thétis: divinité marine, l’une des Néréides, mère d’Achille qu’elle a plongé dans le Styx, en le tenant par le talon, pour le rendre invulnérable
Myrto: la jeune fille
Tarentine: < Tarente : ville en Italie méridionale
Camarine: port de Sicile
l’hymen: le mariage, le cortège nuptial
le cèdre: conifère d’Asie ou d’Afrique
les Néréides: les nymphes de la mer, filles de Nérée
Zéphyr: le cap Zéphyrium, en Italie
les Nymphes: dans la mythologie grecque, divinités subalternes et féminines des fleuves, des bois et des montagnes
se frapper le sein: geste rituel en Grèce en signe de deuil




geudensherman.wordpress.com/lit-18-fr/andre-chenier-1762-1794/


domingo, 6 de janeiro de 2013

O MAR NA PRIMEIRA REPRESENTAÇÃO DE BERMA - MARCEL PROUST - De Elsa Caravana Guelman


“O mar na primeira representação de BERMA.”  (À sombra das raparigas   em flor). MARCEL PROUST.
De Elsa Caravana Guelman



                                               etc.usf.edu                        




Berma, modelo de Sarah Bernhardt, personagem importante da Recherche, foi a responsável pela iniciação do narrador no mundo artístico. E foi numa tarde que  ele foi ouvir, numa concorrida matiné, Berma como Fedra, havendo para isso a interferência do Sr.Norpois que convencera seu pai a deixá-lo ir com sua avó assistir ao espetáculo. Enquanto aguardava o início da representação, o narrador sentia-se “feliz também na própria sala; desde que sabia que -- ao contrário do que por tanto tempo me havia apresentado  a minha imaginação infantil – não havia senão um palco para  todo mundo, pensava eu que os outros espectadores impediriam a gente de ver direito, como no  meio de uma multidão; ora, verifiquei que, ao contrário, graças a uma disposição que é como o símbolo de toda percepção, cada qual se sente o centro do teatro
            Nessa representação quem faz as honras da casa é Poseidon, o deus absoluto dos mares. Quando a cortina desce e o espetáculo tem início, o espectador sente que o marulhar das ondas de um mar inquieto se delineia vagamente, tomando conta do palco até que Berma apareça em toda sua grandeza para dar início ao espetáculo, e com ela se inicia, através dos sons da decoração marítima, a poesia trazida pela sua voz e impregnada pelas águas.
            Dessa primeira vez, uma cena ficou gravada em sua mente. Ele se recordava da cena “em que Berma permanece imóvel um   instante, com o braço erguido à altura do rosto banhado em luz esverdeada, graças a um artifício de iluminação, diante de um cenário que representa o mar, a sala rompeu em aplausos, mas já a artista mudara de posição e o quadro que eu desejaria estudar não mais existia”.(“`A sombra das raparigas em flor”). Acompanhava com os olhos atentos o desenrolar de Fedra, personagem da tragédia grega de Eurípedes, atualizada por Racine, mergulhada num espaço  aquático e totalmente submersa, com  o ambiente líquido do mar dominando a representação.
            .Quando o narrador, encontrando-se com o escritor Bergotte na casa de Swann, em visita a Gilberte,  elogiou a ornamentação verde que realçava o momento em que Fedra ergue o braço, ouviu do escritor a seguinte explicação:
            _”Ah!, isso daria muito prazer ao cenógrafo, que é um grande artista.  Hei de contar a ele, pois está muito orgulhoso dessa luz. Quanto a mim, confesso que não me agrada muito: banha tudo numa espécie de atmosfera glauca, e a Fedra, tão pequena lá dentro, tem muito de ramo de coral no fundo de um aquário. Dirá o senhor que isso faz  ressaltar o  lado cósmico do drama. É verdade! Em todo caso, estaria melhor numa peça  que se passasse nos domínios de Netuno. Bem sei que há ali algo de vingança de Netuno.” (À sombra das raparigas em flor).
            Bergotte reconheceu que a primeira aparição de Berma, interpretando Fedra, se deu no interior da água. Disso não tinha a menor dúvida.O mar estava em primeiro plano, dominante.  Só que ele, explicou em seguida,  não concordava que ela permanecesse indefinidamente nessa água que a envolvia no fundo de um aquário.
            O narrador, que muito admirava Begotte, por certo não esqueceu as observações do escritor sobre a primeira representação de Berma “numa sala  entusiasta onde se notavam as principais notabilidades do mundo das artes e da crítica”, dando ensejo à artista  de um “triunfo  como raramente os terá conhecido mais brilhantes  no decurso de sua prestigiosa carreira”(À sombra das raparigas em flor).
            Seu interesse pelo desempenho da Berma não cessara de  aumentar depois de finda a representação,em virtude de não mais sofrer a compreensão e os limites da realidade. Contudo, “esse interesse  havia atuado com igual intensidade, enquanto Berma representava, sobre tudo quanto ela oferecia, na indivisibilidade da vida, a meus olhos e a meus ouvidos; ele nada separara e diferenciara; de modo que se alegrou em descobrir uma causa razoável naqueles elogios dedicados ao bom gosto e à simplicidade da artista e os atraía a si  com o seu poder de absorção, apoderava-se deles como o otimismo de um bêbado se apodera das ações de seu próximo, encontrando nelas um motivo para se enternecer. “É verdade”, pensava eu, “que bela voz, que ausência de gritos, que simplicidade de  vestuário, que Inteligência em haver escolhido Fedra! Não, eu não fiquei decepcionado!””
            O narrador não se continha em pensar que Berma se atirou no papel de Fedra.. Elogiava seu bom gosto não só para vestir-se como para representar. Nunca usava cores demasiado vivas, nem tinha gritos exagerados. Sabia ser comedida, guardando-se para, no momento próprio, enfatizar sua arte de representar.”E depois, essa voz admirável, que tanto a auxilia e que ela emprega fascinantemente, quase me atreveria  a dizer qual musicista!...”
De todo o teatro de Racine, “a personagem de Fedra é de longe a mais fecunda e a mais rica do ponto de vista psicológico . Embora reconhecendo sua dívida em relação a Eurípedes, que lhe fornecera a ‘idéia, ou seja, a concepção do conjunto , o poeta tinha consciência do triunfo /…/ Mas a mais abertamente carnal das pecas profanas terminava com um gesto de grandeza. Arrastada, perdida, Fedra se refaz para assumir, com uma calma heróica ( o que não é o caso dos outros furiosos’), seu crime e todas as suas conseqüências, não somente o homicídio, mas também a pior das degradações daquela época: a_perda da honra.”(ZUBER, Roger & CUENIN, Micheline – Le Classicisme 2.ed., Paris, Arthaud, 1990, Col. Littérature Française,4rp.304, trad de Gilberto P. Passos).