sábado, 30 de agosto de 2014

AS BABAS DO DIABO < conto de Julio Cortázar.

                AS BABAS DO DIABO, conto de Julio Cortázar.
                      De Elsa Caravana Guelman


Acompanhar os passos aleatórios do fotógrafo Roberto-Michel do seu apartamento, número 11 da rua Monsieur-le-Prince até a Ilha de Saint-Louis, em que ele se deixa levar pelo fascínio secreto das ruas como um verdadeiro e insaciável flâneur,  até então, sem nenhuma intenção do que um simples caminhar, não nos leva a adivinhar o emaranhado dramático que ele enfrentaria, naquela manhã amena e um pouco ensolarada, banhada pelo vento,  de um domingo de outubro, usando sua máquina fotográfica para registrar uma cena insólita na ponta da Ilha de Saint-Louis, quando pretendia tirar fotos da Conciergerie e da Saint-Chapelle.  
                Trata-se do conto “As babas do diabo”( Las babas del diablo) de Julio Cortázar, que oscila entre o real e o fantástico,  proporcionado por uma visão ambígua que é sustentada pela conceituação     alegórica e simbólica na narrativa, contada, alternadamente,  na primeira pessoa, critério subjetivo,  e na terceira pessoa, critério objetivo, deixando o leitor um tanto desnorteado e confuso,  obrigando-o a buscar no duplo sentido dos itinerários a coerência da história apresentada pela fotografia e pelo relato.
                 Ao chegar no término do seu destino, nessa manhã, na ponta da ilha, depois de passar pelo Quai de Bourbon, onde existe uma pracinha romântica “que dá o peito inteiro ao rio e ao céu”,  o fotógrafo se instala no parapeito e, ainda, muito distraído,  acende um cigarro e deixa seu olhar vagar por todo aquele espaço aberto, em direção à luz do sol (saíra de casa desejando encontrar um sol radiante),  quando, de repente, avista um jovem, um “muchachito”, acompanhado de uma mulher loira, muito mais velha do que ele, podendo ser sua  mãe. A diferença de idade o atraiu, de imediato, naquele casal, notando um jeito muito estranho e envergonhado no jovem, tentando se esquivar,  enquanto a mulher, de olhos negros, num contraste com sua pele branca,   delgada e esbelta, insinuava-se e procurava atraí-lo, como uma ave de rapina, em atitudes cada vez mais suspeitas,  tentando colocar o rapazinho entre ela e o parapeito, esmagando-o.
                Michel acabava de descobrir uma pessoa dentro de um automóvel, no local da cena. “Gostaria de saber o que pensava o homem do chapéu cinza  sentado ao volante do automóvel no cais que levava à passarela, e que lia o jornal ou dormia”. Nem cogitou dele para sua foto, era um simples detalhe no espaço que se descortinava à sua frente.
                O fotógrafo levantou a câmara  e fingiu estudar uma posição que não incluía os dois, mas ficou na espreita para os surpreender num gesto revelador. E, quando a mulher tentava subjugar os últimos  restos de liberdade do menino, numa lenta tortura deliciosa, Roberto-Michel, numa sequência, já fora dali, os imaginou aos  beijos brincalhões até ele tentar despi-la numa cama de edredom lilás. O menino, adolescente, vivia uma transformação física e mental. Dava para sentir a sua ansiedade diante da insinuação da mulher. Armou  tudo no visor, compreendendo a árvore, o parapeito e o os raios do sol das onze horas e tirou a foto. Os dois, surpreendidos, olharam o fotógrafo, sabendo-se fotografados em cena chocante.
                A mulher ficou muito irritada , exigindo que lhe entregasse o rolo do filme, argumentando que ninguém pode tirar foto sem permissão. Sua voz seca e clara, com sotaque de Paris, subia de cor e de tom. Enquanto isso, o menino caia na realidade, dava meia-volta e começava a correr, passando ao lado de um automóvel e perdendo-se como um “fio da Virgem no ar da manhã”. O próprio autor adverte que os fios da Virgem também são chamados de babas do diabo.
                Em meio  à confusão, ouviu-se a porta do automóvel batendo. “O homem de chapéu cinza estava ali, olhando para nós. Só então compreendi que ele desempenhava um papel na comédia.” Estavam juntos na operacão que visava a aprisionar o menino se o fotógrafo não tivesse aparecido e não os fotografasse, desarmando-os.
                O homem, levando na mão o jornal que fingia ler,  caminhava cautelosamente e cuidadosamente,  ostentando sapatos de verniz, de sola fina,  na direção da mulher loira que discutia com o fotógrafo e, com quem ele, agora, vindo em sua defesa,  demonstrava íntima ligação.
Aquele homem estranho , de feição repugnante  era o mentor diabólico daquele plano de corrupção do menor  , daí a expressão babas do diabo. Aquele homem não tinha aparência humana, ocultando algo diabólico. O fotógrafo  riu na cara deles e começou a andar, fugindo do local  um pouco mais devagar que o garoto.
                Quando  o fotógrafo olhou para trás, viu que eles não se moviam e que o homem havia deixado o jornal cair.
                O que existe na primeira parte da trama é a preocupação com a fotografia, de como e onde tirar uma foto. A segunda parte da trama gira em torno da revelação das fotos tiradas pelo fotógrafo naquela manhã, já tendo ocorrido vários dias,  num quarto de um quinto andar.  A única foto que lhe interessava era  a instantânea do casal na ponta da ilha, revelou-a e a ampliou,  pregando a ampliação dessa foto  numa parede do quarto para olhar e recordar a cena petrificada da mulher, do menino, da árvore, do céu azul, do parapeito, em que nuvens e pedras se confundiam numa só matéria.
                Olhando a ampliação, sentia-se satisfeito por ter ajudado o menino a escapar a tempo de uma armadilha, embora sentisse que sua partida, como fotógrafo intrometido,  não tinha sido brilhante, sem sequer aludir aos privilégios, prerrogativas e direitos do cidadão.
                Primeiro foi um tremor quase furtivo das folhas da árvore naquela ampliação de oitenta por setenta, depois foram as mãos da mulher, fechando  devagar, dedo a dedo. O garoto, parecendo um prisioneiro, abaixara a cabeça e a mulher falava junto ao seu ouvido, enquanto com a mão acariciava sua face. O que a mulher lhe explicava fazia-o olhar para o automóvel com o homem de chapéu cinza, descartado da foto e refletido nos olhos do garoto. Viu o homem sair do carro e parar perto deles, “não era o primeiro que mandava uma mulher na frente para trazer-lhe os prisioneiros atados com flores”. Como aceitar  que a cena que aparecia na ampliação, que ele fotografara, congelando tudo naquele momento,   começasse a se mover, num desenvolvimento totalmente natural dentro daquele quarto, iniciado com o estremecimento das folhas da árvore?  A narrativa enveredou, então, pelos labirintos do fantástico, onde o petrificado adquire vida e movimento.
                O resto imaginou diante da ampliação: “o automóvel, uma casa qualquer, as bebidas, as lâminas excitantes, as  lágrimas tarde demais,  o despertar no inferno”. E ele não podia fazer mais nada porque a fotografia já havia sido tirada. Enquanto eles estavam livres, vivos no rumo de um futuro, ele, o fotógrafo,   era prisioneiro de um outro tempo, num espaço restrito a um quarto de um quinto andar, enquanto os outros estavam na Ilha de Saint-Louis entre as árvores e os pássaros. Precisava gritar ou fazer algo que desmontasse “os andaimes de baba e perfume”. Gritou intensamente, um grito de terror, tentativa de  uma nova intervenção do fotógrafo, que o aproximou do primeiro plano da imagem, sem perder a mulher de vista e do homem que o olhava raivoso com os buracos negros  que tinha no lugar dos olhos, quando um pássaro fora de foco passa num voo diante da imagem e, então, o menino reage e consegue  escapar deles, fugindo com os cabelos ao vento, como uma jovem aranha que é levada em suas descobertas,  “aprendendo enfim a voar sobre a ilha, a chegar à passarela, a se virar para a cidade”, deixando o fotógrafo sozinho, diante do homem e da mulher, sequiosos de vingança.
                O homem, com sua língua negra,  levantava lentamente a mão, aproximando-as do primeiro plano, “um instante ainda em perfeito foco, e depois ele todo um vulto que apagava a ilha, a árvore, e eu fechei os olhos e não quis olhar mais,  e cobri o rosto e desandei a chorar feito um idiota”, enquanto passava uma grande nuvem branca. E, ao abrir os olhos e secá-los com os dedos, Michel viu: “o céu limpo, e depois uma nuvem que entrava pela esquerda, passeava lentamente sua graça  e se perdia pela direita”.
                O que acontece, realmente, ao fotógrafo? Na segunda parte da narrativa, toda ela impregnada pelo fantástico ao introduzir vida e movimento à ampliação da foto,  tirada no domingo, e revelada, vários dias depois,  num quarto de um quinto andar, mostra o movimento das mãos do homem que se aproxima do primeiro plano, após a segunda fuga do menino. Na  primeira parte da narrativa é dito que,  ao se aproximar de Michel, na Ilha,o homem deixa cair o jornal. Por que deixou cair o jornal? O que ocuparia, então, sua mão ? Seria o assassinato do fotógrafo, em plena ilha, quando se recusou a entregar o rolo do filme?  Entretanto, em nenhuma das narrativas se diz claramente, apesar de sutilmente sugerido, que ele foi assassinado; na segunda ficou evidenciado que, ao fechar os olhos, ele não quer ver mais, quando passa, então,  uma grande nuvem branca e, quando os abre,  ele vê o céu limpo e depois uma  nuvem que entrava pela direita, dava um passeio e se perdia pela esquerda; na primeira, na descrição da cena final, o fotógrafo, imprensado pelo homem e pela mulher, num triângulo insuportável, riu na cara deles e começou a andar um pouco mais devagar  que o menino ao fugir e,  ao se virar para olhar para eles, notou que não se moviam, mas o homem havia deixado cair o jornal.
                Há, para contar a história do fotógrafo Michel,  as expressões metafóricas “hilos de la Virgen e babas del diablo” , que, apesar de sinônimos, pelo autor,  representam valores contraditórios. A metáfora “fios da Virgem” significa o vôo ínicial das  jovens aranhas nos campos,  ainda inseguras, como se estivessem numa puberdade e fossem jogadas no mundo, num desenvolvimento natural até atingir  a maturidade. Em sua passagem pelos campos,no mês de outubro, elas deixam nas árvores uma infinidade de   fios brancos que, muitas vezes, são levados pelo vento e se espalham pela natureza. Esta metáfora foi, igualmente, utilizada por Cortázar no poema “Réquiem”, em homenagem a Bosie, amante de Oscar Wilde.

                Ao descrever a fuga do menino, Cortázar  pensa  na aranha jovem, em sua fuga pelo campo, arriscando-se quando é levada pelo vento, ao afirmar “o coitado achando que caminhava e na realidade fugindo às carreiras, passando ao lado do automóvel, perdendo-se como um fio da Virgem no ar da manhã”. O menino, na puberdade, arriscava-se, como a aranha, no seu vôo inicial, quase interrompendo seu caminhar à maturidade, naquela manhã. E, logo a seguir. “Mas os fios da Virgem também são chamados de babas do diabo”, referindo-se  ao homem de chapéu cinza que saltara do carro e enfrentava o fotógrafo, outra metáfora que enriquece a narrativa, pois, além de  simbolizar, também, em diversas regiões, o aparecimento avassalador e dominante dos  fios brancos nos campos em épocas de flagelos, misérias e desgraças, por obra de um ser maligno,  um verdadeiro arquétipo do mal, ganha  o título do conto de Julio Cortázar.

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