segunda-feira, 28 de maio de 2012

LE PETIT PAN DE MUR JAUNE - Marcel Proust: Vue de Delft de Vermeer. - De ELSA CARAVANA GUELMAN





Le Petit Pan de Mur Jaune  -   Vue de Delft    -     Marcel Proust

                                                                   
                                                                     essentialvermeer


Assim como em 1921 Marcel Proust tomou conhecimento dos artigos de Vaudoyer na imprensa sobre o quadro ‘La  Vue de Delft” de Vermeer,  na exposição holandesa no Museu Jeu de Paume e se motivou intensamente sobre o quadro que considerava o mais belo do mundo, assim também poderia ter tido conhecimento dos artigos de Théophile Thoré-Burger sobre  Vermeer, antes de sua visita à Haia, em 1902,  interessando-lhe conhecer a obra descoberta para os franceses  pelo crítico, pois nada o impediria de ler esses artigos, já que era tão apaixonado por pintura e tinha a imprensa ao seu dispor, residindo em Paris, onde foram publicados, também.
Sobre a pintura da Holanda em Paris, o que poderia ter, também, despertado em Proust o interesse pelos pintores flamengos, consta que  em 1895, Robert de Montesquiou havia organizado uma coletânea de  obras sob o título « Néerlandises » . Assim, antes de partir em busca de conhecimentos da arte holandesa,  Proust poderia ter tido conhecimento dessa coletânea.  Mas é sobre sua viagem de 1902 à Holanda  que Proust retrata, numa carta escrita em 1907,  com segurança,  suas recordações  da pintura holandesa à princesa de Caramam-Chimay (Hélène Bibesco-Bessaraba de Brancovan),  aconselhando-a a fazer uma viagem semelhante para conhecer a pintura holandesa e notadamente Vermeer.
Na verdade, em 1842, visitando o museu de Haia, Mauritshuis ( Casa de Maurício), Théophile Thoré-Burger viu pela primeira vez o quadro la Vue de Delft, pois nem conhecia o pintor Vermeer e só teve conhecimento dele pelo catálogo do museu. Uma das versões da sua visita,  mostra-o verdadeiramente extasiado, tomado de violenta emoção diante do quadro que considerou perfeito. Dessa época em diante passou a divulgar a obra de Vermeer, descobrindo, inclusive, vários quadros do pintor que apareciam com  o nome de outros pintores. Foi um trabalho árduo e apaixonante, do qual logrou pleno êxito.
O crítico de arte Jean Louis Vaudoyer, amigo íntimo de Marcel Proust,  em razão da exposição de 1921, avivou o conhecimento dos franceses sobre o pintor, interpretando-o como “misterioso”, em 3 artigos.  Não era o caso de Marcel, que já o conhecia de Haia, de 1902. Mas, mesmo assim,  Marcel leu os artigos que lhe despertaram o desejo de rever o quadro do qual guardava  uma lembrança bem viva. Com a saúde debilitada, Marcel resolveu, mesmo assim, ir à exposição no Jeu de Paume em companhia do crítico amigo Vaudoyer.
Após conseguir vencer a escadaria, passou mal, ficou tonto, tropeçou,  quase  caiu, alegando, no fim, uma indisposição alimentar e, finalmente, viu-se diante do quadro tão amado La Vue de Delft. Talvez nem acreditasse estar diante da obra prima, do quadro mais belo do mundo,  como já se referira, era como se recebesse um presente da Holanda.
O que, verdadeiramente,  se passou diante do quadro é um mistério que ainda não foi resolvido, apesar de tantas pesquisas e  referências literárias a respeito.  Na verdade,  Marcel estava mal, quem sabe com a visão imperfeita, devido ao  mal estar sofrido e não teve a mesma  amplitude diante da pintura como em Haia, em 1902, quando afirmou “Depuis que j’ai vu au musée de la Haye la vue de Delft, j’ai su que j’avais vu “le plus beau tableau  du monde.” Diante do quadro procura trazer a imagem captada do passado que o deslumbrara, e que sua mente guardou já, agora, com a nova visão crítico-poética sobre os “mistérios’ de Vermeer de  Vaudoyer.
Teria mudado alguma coisa ? A disposição do quadro ou a visão de Marcel? Cabe uma pergunta: será que o comando cerebral, realmente, já teria arquivado a visão  do “petit pan de mur  jaune”? A sensação que acompanhou sua descoberta em 1902 pode ter enriquecido a visão que foi arquivada na mente do jeito que a viu, sem que nada ficasse ou fosse esquecido, mantendo-se intacto por esses anos todos.  O que pode parecer, para muitas pessoas,  esse pequeno detalhe uma insignificância, para Marcel  era uma simbologia, um signo poderoso, gritante e vivo para retratar o verdadeiro sentido da obra sob os efeitos da luz e da cor numa paisagem urbana emoldurada ainda  pelos raios do sol.


                                           Vue de Delft  -     bacrie.com


As nossas observações carecem de maiores fundamentos, de fatos mais precisos porque não lemos os artigos escritos por Théophile Thoré-Burger e Vaudoyer, portanto não os conhecemos na íntegra.    Caímos, então, no terreno da especulação. Se o primeiro, Thoré, descobre o pintor para o mundo da arte, julgando-o fantástico e misterioso,  o segundo, que tomou conhecimento dessa descoberta, como toda crítica francesa,   envolve-o numa característica de maior mistério ao trazer nova visão à sua pintura.
A visão momentânea, que foi, então,  conservada nos escaninhos  do cérebro – memória esquecida – por anos e anos a fio, quando ressurge, um dia,  será a mesma da visão do passado, original ?  A sensação do retorno da memória poderá se  enriquecer com a repetição ou se empobrecer diante de fatores negativos que a envolvam? Aquilo que, realmente, marcou profundamente, acreditamos que não, como foi o célebre episódio da Madeleine, que deu início a uma série de recordações que viriam povoar a mente do relator da Recherche na escolha de sua vocação literária.
Chegamos à conclusão de que Marcel Proust, em 1902, não tinha conhecimento do quadro Vue de Delft de Vermeer. Poderia saber da existência do pintor, mas não lhe conhecia a famosa pintura. Ao que tudo indica, ele viu, realmente , o quadro pela primeira vez em 1902, em Haia. Não teria, pois, lido os artigos de  Thoré, ressuscitando Vermeer. Conhecia, desse modo,  a pintura holandesa pela consulta do livro de Fromentin, “Les Maîtres d’autrefois”. E nesse livro a referência a Vermeer é muito pequena, não passando de três linhas.  Quando visitou  a Holanda em 1898 tinha o interesse voltado para  Rembrant,  Frans Hals, Pieter de  Hooch. Só em 1902, em Haia, Marcel Proust faz sua  grande descoberta ao se ver diante  da Vue de Delft, que o deixa fascinado a ponto de passar a  considerar Vermeer seu pintor predileto. Em seu romance diz  que todas as pessoas cultas deviam conhecer Vermeer . Não mais afastou seu pensamento da pintura de Vermeer, fazendo-o penetrar em toda Recherche. Da visão de 1902 para a visão de 1921, o que mudou, verdadeiramente? Da primeira visão, conserva-se a afirmação extasiada de que vira o quadro mais belo do mundo.  O que surge de diferente após sua visita ao Jeu de  Paumne ? Como teria surgido o petit pan de mur jaune? Os artigos de Vaudoyer que levaram Marcel  à exposição ?
Marcel Proust, que  não escreveu nada sobre sua visita em 1921 ao museu Jeu de Paume,  em companhia de seu amigo Vaudoyer, caminhava, no dia da exposição,  com o busto curvado,  trajando roupa escura e sóbria, um chapéu alto e uma bengala, mas  não querendo demonstrar que sua doença o aniquilava, depois de uma noite difícil, tentando abrir os olhos sob um sol ofuscante.   Na verdade ele   se utilizou do que motivou sua ida à exposição --  os artigos consagrados ao misterioso Vermeer -- e o que verdadeiramente sentiu diante do quadro para redigir a cena da morte do escritor Bergotte. Sua curiosidade, segundo George D. Painter,  foi despertada pelos artigos de Vaudoyer, publicados em L’Opinion,  com certeza, pelos “oitões (paredes laterais) que  lembravam preciosos objetos chineses”, os elogios  de Melle.  Misme referindo-se aos “matizes dos telhados azulados ou vermelhos, os muros-cor-de-rosa,  a triste água verde e a margem  amarela do rio”. Conseguiu, então,  perceber a “ pequena mancha de amarelo na parede” facilmente. Daí, no entendimento de Painter, Marcel Proust  viu, na parte inferior direita do quadro, logo à  esquerda da primeira  torre da comporta mergulhada em sombra,  um fragmento de telhado colhido pelo sol daquela eterna tarde de verão com a meia-água de sua distante janela de sótão. Sob  ela surgiu a “pequena mancha de amarelo do muro”.

                                         Detalhe Vue de Delft -  art-deco.france.pagesperso-orange.fr

Entendemos que  Luc Fraisse, ao analisar  e comparar os trechos mais importantes dos artigos de Vaudoyer sobre Vermeer  e os do episódio da morte de Bergotte,  concluiu com muita precisão o seguinte:
“De certo modo, todos os elementos que entrariam na composição do célebre “petit pan de mur jaune” foram finamente focalizados por Jean-Louis-Vaudoyer. Todavia, essa mistura íntima,  essa vasta interpretação, essa imensa força, enfim , conferida ao petit pan do quadro que se revela o fragmento de Vermeer, o fragmento ao qual todo artista deve consagrar sua vida, considerando-o a obra-prima acabada de sua arte – todo esse conjunto posterior foi de Proust, unicamente de Proust, seu inventor.”
Outro crítico pesquisador,  Charles Seymour Jr., formulou a hipótese de Vermeer ter-se utilizado de uma câmara  escura para depois conseguir os efeitos de luz sobre a pintura. Acreditava que a visão de Vermeer não teria nascido da visão direta da realidade, mas de uma imagem refratada por intermédio de uma lente. Essa apreciação crítica não interfere no interesse de Marcel Proust pela luminosidade do quadro..
Segundo Kazuyoshi Yoshikawa Proust teria  também se inspirado nessa passagem de Vaudoyer:  “ces maisons de briques, peintes dans une matière si precieuse, si massive,  si pleine,  que,  si vous  en isolez une petite surface em oubliant le sujet, vous  croyez  avoir sous les  yeux aussi bien  de la céramique que de la peinture.”. Nessa crítica aparece a expressão “une petite surface”.  Para ele, então,  a expressão “petit pan de mur jaune” não se encontra nos artigos do crítico, sendo, portanto, uma invenção de Proust. Assim também pensam Jean Milly e, como já se analisou, Luc Fraisse. Desse modo, para alguns,  quando o quadro é visto em cosonância com o texto de Proust, pode-se localizar a presença particular desse muro,  que é impregnado de um sol  amarelo ao lado da Porta de Rotterdam. Muitos não o reconhecem lá o “petit pan de mur jaune” , dizendo que o que aparece é um teto e não um muro. Reconhecem  à extrema direita do quadro o muro sobre o qual transborda o alpendre do  telhado da casa vizinha.
 Proust  coloca o escritor Bergotte, personagem fictício de “A Prisioneira”,   diante do quadro de Vermeer. Bergotte  compreende que não conseguiu atingir a seu verdadeiro ideal artístico. E isso porque,  para Proust,  o petit pan de mur jaune – o símbolo da perfeição -- representa a realização máxima da arte que ele, também, desejou atingir em sua vida literária  como Vermeer conseguiu em sua pintura . O que poderia representar aquele muro ?  Bergotte viu um muro nu, e esse muro nu poderia ensejar muita coisa. Em segundos se transformou,  teve a nítida impressão de estar diante de um verdadeiro muro e não de um muro que o artista pintou o mais fielmente possível vendo um muro verdadeiro.   O muro do quadro, então,  salta como a mais viva realidade, em sua vivência mágica.. É a perfeição máxima em pintura, pois ela funciona como verdade absoluta e não como uma excelente cópia da  paisagem. Bergotte vê pela primeira vez as cores salientes do quadro: o rosa, o azul e o amarelo dourado, simbolizando o desejo, a veneração e a arte. Ele, então, compreende que deveria ter mais cores nos seus textos literários.

                                               Detalhe Vue de Delft-     tempoeroman.blogspot.com


O que Bergotte (isto é, Proust no Jeu de Paume, em 1921) viu --  petit pan de mur jaune --  no quadro de  Vermeer   existiu mesmo?  A verdade é que aquele petit pan já fazia parte do souvenir de Proust quando ele  se refere a Combray e evoca um clarão luminoso (De cote de chez Swann – Combray – 1ª. Parte).
“Desse modo, por bastante tempo, quando acordava de noite e me vinha  a recordação de Combray, nunca consegui rever mais que aquela espécie de traço ou lanço luminoso (pan lumineux), que era recortado no meio de trevas indiferenciadas, semelhante aos que o acender de um fogo de artifício ou certa projeção elétrica iluminam e seccionam em um prédio cujas outras partes permanecem escuras e  mergulhadas dentro da noite: na base, muito larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda escura por onde  surgiria o Sr. Swann, inconsciente  autor das minhas tristezas, o vestíbulo  por onde me levaria para o primeiro degrau da escada, tão difícil de subir, que, por si só, constituía  o tronco bastante estreito daquela pirâmide irregular;”
 Sobre o assunto, Luc Fraisse  esclarece que este pequeno pan “introduzido muito tarde, em 1921, no romance , era como se estivesse  sendo aguardado desde cedo, sempre, pela obra.”  Deste modo o pan vermeeriano corresponde ao clarão luminoso ou iluminado do quarto de dormir onde o menino, no começo da Recherche,  aguardava ansioso o beijo de sua mãe, após a saída de Swann. Ainda em  Combray, em noites, antes do jantar,  via o seu mundo pelo foco de uma lanterna mágica, “que substituía a opacidade dos muros pelas impalpáveis irisações de sobrenaturais aparições multicoloridas” Sabe-se que a irisação  se dá com  a produção de cores  do arco-íris  por refração da luz. O fenômeno da cor tem grande importância na  Recherche.  Ele via  as cenas coloridas em que Golo, de vermelho, ameaçava Geneviéve de Brabant, de azul, no interior de uma floresta verde, nas proximidades do castelo em amarelo. Uma sinfonia de cores perpassava diante de seus olhos ávidos pelo desenrolar da história, enquanto seu jantar era preparado.



Germaine Brée relata que a vista de Delft já  estava presente na descrição de Proust da igreja de Combray, em No caminho de Swann:
“A luz intrusa é sinal, em Combray, de felicidade,  ambiência diversa daquela onde se desenrola a vida,  e ela envolve e penetra a narrativa inteira, uma técnica que Proust entreviu na Vista de Delft, uma iluminação cujo equivalente estilístico e estrutural propriamente literário ele procurou intensamente.”
Quando Proust resolveu abandonar a vida mundana e amorosa,  sentiu que havia perdido um precioso tempo com futilidades e romances que nada lhe acrescentaram em sua vida emotiva e cultural,  e  que,  para tentar recuperar esse tempo,  era necessário abraçar sua vocação e escrever, finalmente, seu livro. Sentia que a “obra  de arte era o único meio de reencontrar o tempo perdido”. Apegou-se à nova visão de vida como um naufrago em mar revolto agarra-se a uma tábua e tenta chegar à margem segura e verdadeira:
“Compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, a minha  vida passada; que tudo me viera nos divertimentos frívolos,  na indolência, na  ternura, na dor, eu acumulara como a semente os alimentos de que se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe o destino nem a sobrevivência.  Como a semente, eu poderia morrer quando a planta para qual eu vivera sem o saber, sem nunca imaginar  que minha vida devesse entrar em contato com os livros que sonhara escrever e cujo assunto, quando outrora me sentava à mesa de trabalho, buscava em vão.”


                                  Detalhe Vue de Delft -   ww2.ac-poitiers.fr


Um trecho do episódio que retrata a morte de Bergotte no museu Jeu de Paume:       "Bergotte morreu nas seguintes circunstâncias. Por causa de  uma crise leve de uremia lhe haviam prescrito repouso. Lendo que um crítico havia encontrado  na Vista de Delft, de Ver Meer (emprestado pelo Museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e acreditava conhecer muito bem, uma pequena parte  de muro amarelo (da qual não se lembrava) tão bem pintada que, visto sozinha, era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si  mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir foi tomado por tonturas. Passou diante de vários quadros e teve a impressão de secura e inutilidade de uma arte tão artificial, e que não valia as correntes de ar e o sol de um palácio de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Ver Meer que ele recordava mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, notou pela primeira vez os diminutos personagens de azul, que a areia era rosa, e por fim a preciosa matéria da pequenina parte de muro amarelo. Suas tonteiras aumentaram; fixou o olhar, como uma criança na borboleta amarela que quer pegar, na preciosa parte de muro. “Assim é que eu deveria ter escrito", dizia ele. Meus últimos livros são secos demais, seria preciso passar várias camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse petit pan de mur jaune.” Enquanto olhava,  a gravidade das suas tonteiras não lhe escapava. Numa balança celestial  lhe aparecia, pesando num dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha a pequena parte de muro tão bem pintada de amarelo. Sentia que imprudentemente havia arriscado a primeira pela segunda. “Mas eu não gostaria, disse para si mesmo, de vir a  ser para os jornais da tarde a nota sensacional dessa exposição.” Ele se repetia: “Pequena parte de muro amarelo com um alpendre, pequena parte de muro amarelo.” Nisso deixou-se cair sobre um canapé circular; também bruscamente parou de pensar que a sua vida estava em jogo e, recobrando o otimismo,  disse consigo: “É uma simples indigestão que me deram umas batatas mal cozidas, não é nada.”  Uma nova crise o abateu, ele rolou do canapé para o chão, quando  todos os visitantes e guardas  acorreram. . Estava morto. Morto para sempre? Quem o  poderá dizer ? (...) Enterraram-no, mas em toda a noite fúnebre , nas vitrines  iluminadas, os seus livros, dispostos de três a três, velavam como anjos  de asas abertas e pareciam, para aquele que não vivia mais, o símbolo da sua ressurreição.”

                                          Detalhe Vue de Delft -  paperblog.fr

"Il mourut dans les circonstances suivantes : Une crise d'urémie assez légère était cause qu'on lui avait prescrit le repos. Mais un critique ayant écrit que dans la Vue de Delft de Ver Meer (prêté par le musée de La Haye pour une exposition hollandaise), tableau qu'il adorait et croyait connaître très bien, un petit pan de mur jaune (qu'il ne se rappelait pas) était si bien peint, qu'il était, si on le regardait seul, comme une précieuse œuvre d'art chinoise, d'une beauté qui se suffirait à elle-même, Bergotte mangea quelques pommes de terre, sortit et entra à l'exposition. Dès les premières marches qu'il eut à gravir, il fut pris d'étourdissements. Il passa devant plusieurs tableaux et eut l'impression de la sécheresse et de l'inutilité d'un art si factice, et qui ne valait pas les courants d'air et de soleil d'un palazzo de Venise, ou d'une simple maison au bord de la mer. Enfin il fut devant le Ver Meer, qu'il se rappelait plus éclatant, plus différent de tout ce qu'il connaissait, mais où, grâce à l'article du critique, il remarqua pour la première fois des petits personnages en bleu, que le sable était rose, et enfin la précieuse matière du tout petit pan de mur jaune. Ses étourdissements augmentaient ; il attachait son regard, comme un enfant à un papillon jaune qu'il veut saisir, au précieux petit pan de mur. « C'est ainsi que j'aurais dû écrire, disait-il. Mes derniers livres sont trop secs, il aurait fallu passer plusieurs couches de couleur, rendre ma phrase en elle-même précieuse, comme ce « petit pan de mur jaune. » Cependant la gravité de ses étourdissements ne lui échappait pas. Dans une céleste balance lui apparaissait, chargeant l'un des plateaux, sa propre vie, tandis que l'autre contenait le petit pan de mur si bien peint en jaune. Il sentait qu'il avait imprudemment donné le premier pour le second. « Je ne voudrais pourtant pas, se disait-il, être pour les journaux du soir le fait divers de cette exposition. »
Il se répétait : « Petit pan de mur jaune avec un auvent, petit pan de mur jaune. » Cependant il s'abattit sur un canapé circulaire ; aussi brusquement il cessa de penser que sa vie était en jeu et, revenant à l'optimisme, se dit : « C'est une simple indigestion que m'ont donnée ces pommes de terre pas assez cuites, ce n'est rien. » Un nouveau coup l'abattit, il roula du canapé par terre, où accoururent tous les visiteurs et gardiens. Il était mort. Mort à jamais ? Qui peut le dire ? (...)   On l'enterra, mais toute la nuit funèbre, aux vitrines éclairées, ses livres, disposés trois par trois, veillaient comme des anges aux ailes éployées et semblaient, pour celui qui n'était plus, le symbole de sa résurrection. »
Assim, estamos diante de duas  obras-primas da cultura universal, o romance A Prisioneira , de Marcel Proust e o quadro Vue de Delft, de Vermeer. Marcel Proust e Vermeer, dois gigantes.


                                                   Museu JEU De PAUME - webluxo.com.br


Voltemos a 1921, à exposição  de Vermeer no Museu Jeu de Paume. Um homem, elegantemente trajado, está diante do quadro Vue de Delft e o admira como se o tivesse visto pela primeira vez, embora o tenha visto, em Haia, em 1902.  19 anos se passaram. Alertado pelo amigo crítico, ele procura identificar o que sua visão não reteve durante esses anos.  Ao longe, seu olhar se fixa num determinado ponto, uma pequena parte do muro amarelo que lhe chama a atenção. Aquele pedaço de muro, uma pequena parte emoldurada pelos raios do sol o arrasta para os subterrâneos do seu inconsciente para tentar estancar a emoção e a felicidade que transbordam borbulhantes em seu interior,  ameaçando sufocá-lo. E é diante dessa sensação desconhecida que deve ter ocorrido a súbita transformação no impacto de um relâmpago,  quando passado e presente se fundiram  numa verdadeira explosão emocional na descoberta, pela memória,  de Combray, que surge  em pleno museu, com quase 50 anos de atraso. E ele se vê, finalmente,  já liberto da sufocação emocional, com sua lanterna mágica, diante da Vue de Delft,  admirando  as aparições multicoloridas  do  rosa do desejo para o  azul da veneração, quando então é sublimado no amarelo da arte o « petit pan de mur jaune », que estava dentro dele mesmo por todos esses anos e que,  graças ao artigo do crítico, ressurgia  naquele pontinho amarelo, simbolo da arte suprema e perfeita, ao mesclar o presente e o passado  numa sensação revivida que transformou Marcel Proust ( ou Bergotte) num ser ëxtratemporal, num tempo puro, alheio a tudo que não fosse aquele foco jaune,  como o episódio da madeleine, quando o narrador, enebriado pelo que acontecia, perguntava a si mesmo : « Será que vai chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a atraçào de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do fundo de mim ?   (...) E como nesse jogo em que os japoneses se divertem  mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram , se contorcem,  se colorem,  se diferenciam,  tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora  todas as flores do nosso jardim e as do parque  do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne,   e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências,e a igreja,  e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá. »
O « petit pan de mur jaune » é um importante signo  da arte  porque  a essência da obra de arte se incorporou na cor  amarela da Vue de Delft de Vermeer, espiritualizando-a e  tornando-a  imaterial, características dos signos artísticos.  Também pode-se dizer que a sensação que Proust sentiu diante do quadro fê-lo buscar,  no petit pan de mur jaune,  a Combray do seu passado pela reminiscência  e descoberta.


                                             Detalhe Vue de Delft - essentialvermeer.com

Sobre o que Marcel Proust  viu em 1902, em Haia, diante da Vue de Delft apenas ficou documentada sua expressão extasiada de ter visto o quadro mais belo do mundo. Nenhuma referência de sua parte sobre o petit pan de mur jaune.  A sua memória involuntária não foi aguçada por nenhuma reminiscência. Nada lhe chegou. Só ficou mesmo o registro da beleza do quadro visto. E sobre onde fica este  ponto, este pano, este fragmento,esta parte do muro amarelo, que Prostou reviu em 1921,  não há unanimidade, não há um consenso absoluto. Em que local do quadro, dentre os que exibem tons de amarelo,  Proust se fixou e se deslumbrou ?  Só ele poderia responder diante da profunda emoção que o dominou. Só ele, o resto são especulações ou outras emoções vividas pelos decifradores de Proust. Quantas  pessoas não se emocionarão ainda diante da simbologia das cores de Vermeer ? Há inclusive várias teorias sobre os três  pontos  que emitem   a cor amarela do quadro, cujos autores tentam advinhar  o  interesse de Marcel Proust. Mas, para saber onde localizar o exato ponto de fixação de Marcel Proust  seria necessário adivinhar em que ponto, em que muro de Combray, ou se  apenas por uma cor vibrante « jaune » ele avistou um pan lumineux que o cobriu de emoção, permitindo que essa emoção esquecida por tantos anos, ressurgisse, evandindo-se do seu mais recondito  interior,  para engrandecer a descoberta da beleza  na verdadeira criação literária, com a consequente  homenagem  à arte, simbolizada na morte fulminante de Bergote diante do « petit pan de mur jaune »  da Vue de Delft.













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