quinta-feira, 17 de abril de 2014

O REFLEXO DO MEDO



                                                                 Elsa Caravana Guelman

Depois de um longo passeio pela cidade, visitando um antiquário, quando apreciei um belo quadro de Cézanne, invadindo a orla oceânica, onde me debrucei na amurada da praia para seguir o retorno das ondas do mar que se despejavam na areia, uma visita a uma loja de flores naturais, um descanso merecido num pequeno café em que passei algumas horas, bebendo e beliscando alguns petiscos, cortando ruelas bem estreitas onde crianças brincavam e quase impediam a minha passagem, resolvi que era hora de voltar ao apartamento de meus primos, Raquel e Lucas, certa de que já teriam retornado do escritório de arquitetura, onde passavam a maior parte do seu tempo, envolvidos com projetos que lhes aguçavam a criatividade.
Era meu último dia de uma semana inesquecível, em que aproveitei verdadeiramente todo o meu tempo com passeios, visitas e grandes descobertas que me fizeram refletir sobre a beleza oculta das coisas que vamos, de pouquinho em pouquinho, encontrando. E isso se torna mais importante quando estamos preparados emocionalmente, impregnados por um misto de sensação e surpresa para receber e perceber esse  sentido das coisas com as quais nos deparamos, de repente. É como se buscássemos no interior delas o cerne, a essência do que é e vem a ser,  no impacto da visão.
A visita aos primos não foi de surpresa, de uma hora para outra, não, foi muito bem planejada. Achei que estava na hora de lhes fazer uma visita já que recebera, tantas vezes, seu convite. Quando surgiram minhas férias, reservei uma semana para eles, que me receberam, pude verificar, com a maior alegria, cumulando-me com  atenções infinitas. Também procurei, de minha parte,  demonstrar-lhes toda minha satisfação em vê-los.
Logo que cheguei no edifício, o elevador parecia esperar-me e me conduziu ao sexto  andar. Carregava algumas lembranças que conseguira comprar no antiquário, que,  bem embaladas para viagem, não me dariam trabalho, pois bastaria colocá-las na mala e pronto. Ia tirar da bolsa a chave que deixaram comigo, quando percebi que a porta estava meio aberta. E foi aí que me lembrei do comentário de Raquel sobre não haver nenhum perigo em deixar a porta aberta. Já faziam isso há anos. Era um fato natural. A portaria do edifício funcionava vinte e quatro horas, sempre com um porteiro à disposição dos moradores. Ninguém entrava sem identificação. Na certa me esperavam apesar de ter em meu poder uma cópia da chave do apartamento. Entrei pensando encontrá-los na sala. Chamei-os e não responderam e, então, me  adiantei e fui acendendo, uma por uma, as luzes do corredor, da saleta e da sala. Não havia ninguém em casa, um silêncio total. Liguei a televisão e me sentei no sofá. Passado algum tempo, fui ao meu quarto levar as compras e já iniciar a feitura da mala para, no dia seguinte, bem cedo viajar.
Não sei o tempo que levei  na arrumação da mala, ajeitando os presentes, misturando-os com  as roupas para melhor protegê-los, que nem estranhei que meus primos não tivessem chegado ainda. Até bem pouco, ouvia o ruído da televisão, mas, aos poucos, o som desapareceu. Resolvi, então, verificar o que acontecera e notei que o corredor, a saleta e a sala de entrada estavam às escuras e a televisão completamente desligada. Quem os teria desligado? E por que estavam desligados?  Não consegui ver nada. Chamei por Raquel e Lucas e não obtive resposta. Assustada, corri imediatamente para o meu quarto e tranquei a porta. Tive, então, a idéia de telefonar para a portaria e pedir socorro, mas me lembrei que deixara o celular junto à televisão. Nada feito. Não adiantava gritar. Eu estava certa de que, na sala, havia alguém que, não só desligara a televisão, como as três luzes. Não fora uma pane de energia, pois havia luz no meu quarto e no meu banheiro. Apesar de não ouvir nenhum barulho, eu imaginava uma pessoa escondida na sala e isso me dava a noção de um grande perigo, pois não tinha como me comunicar com ninguém. Onde estariam os primos?  À medida que o tempo passava, mais eu me apavorava diante daquela situação. O que fazer? Resolvi, já que estava muito assustada, trancar-me no banheiro. Foi o que fiz, sem pensar mais. Para proteger-me, apaguei a luz e me encostei na parede porque não tinha onde sentar. E  fui ficando, sem posição nenhuma, em pé, encostada na parede até bem tarde da noite, quando o sono, fortemente, me derrubou e sentei-me no chão,  e, ainda encostada na parede, tentava não adormecer. Foi a pior noite da minha vida, o maior incômodo que passei naquele desconforto gélido do banheiro. Durante a noite, visões sinistras me apareciam na escuridão, dançavam ao meu redor .
Minha imaginação, dominada pelo medo, fazia-me ver coisas diversas, sem formas definidas, desestruturadas. E eu  imaginava que, na janelinha alta do banheiro, que dava para o pátio do edifício,  surgiriam mãos gigantescas querendo  me pegar para o festim da sala. O teto, na escuridão, parecia estufar-se, engrandecer, e logo depois minguava, enquanto uma fresta de luz do andar de cima, como um verdadeiro disfarce de uma figura longa e fina,  languidamente,  descia pela janelinha e se perdia no banheiro,  desfazendo o misterioso disfarce, compondo-se com a escuridão.  De repente, algo bateu em mim. Sufoquei um grito. É que, sem querer, esbarrei na cesta de vime de roupa, acho eu.  Quem sabe, eu pensava, meus primos estão mortos lá na sala, ou estão amordaçados e sofrem nas mãos de malfeitores, pois já havia passado tanto tempo, já era noite alta e eles não apareciam, nem vinham me procurar, o que era um péssimo sinal, uma grande indiferença. Não podia admitir que estivessem no apartamento e pudessem agir livremente.
Ouvi passos, poucos passos mais ou menos distantes. Se fossem meus primos, bateriam na porta à minha procura, tentariam me achar de qualquer jeito.  Não me deixariam nesse terrível isolamento. Que vai ser de mim? No momento em que  entrei,  não fechei a porta, imaginando que estavam por vir, quando não os encontrei na sala, ao chegar. Eram tão moços, não mereciam desaparecer desse jeito, trucidados por alguém que conseguiu vencer toda a segurança do prédio e enganar o porteiro. Seria um inimigo, um conhecido ou simplesmente um ladrão qualquer?
Raquel casou-se muito cedo e toda a família comentava que eram muito felizes. Vi-me ao lado da minha prima criança. Tínhamos saído bem cedo de casa para não pegar sol. A lembrança daquela frescura matinal aumentou a minha angústia e eu nem podia respirar para não produzir nenhum ruído que viesse a chamar a atenção. De onde eu me encontrava não dava para saber se estavam ouvindo televisão.
Um dia, para caçoar de mim, Raquel subiu muito alto na árvore e não sabia descer. Precisaram encontrar  alguém que subisse para trazê-la ao chão. Como demorasse o socorro, ela começou a chorar. Foi também sua primeira e ultima tentativa de subir em árvores. Nunca mais repetiu a façanha. As árvores, ela dizia, exerciam um fascínio sobre ela, por isso queria  ir no mais alto, no seu cume, para ser, também, uma árvore.
Com esses pensamentos fervilhantes em minha mente,  eu tentava impedir que o sono caísse sobre mim, impedindo que eu pudesse me defender se algo acontecesse. Procurava esticar, aumentar a noite, como  quem empurra um obstáculo. Mas, sem que eu me desse conta, lentamente,  a noite se tornou robusta, forte e imperiosa, e me abraçou como um polvo, com seus tentáculos, e eu adormeci.
Quando acordei, toda esmagada, com a roupa amassada e retorcida, um verdadeiro trapo, ouvi vozes. Levantei-me rapidamente e, ainda temerosa, abri a porta do banheiro e, já no meu quarto, tornei a ouvir vozes mais fortes. Fiquei tranquila, pois eram vozes conhecidas, eram as vozes de meus primos, Raquel e Lucas. E, num ímpeto intencional, como uma rajada, abri a porta do meu quarto e me deparei com eles, sorridentes e tranquilos, que me interpelaram carinhosamente:
- Como você dormiu, hein? Chegamos um pouco tarde e, como vimos sua porta fechada, imaginamos que estivesse dormindo. Não a incomodamos.
- Não aconteceu nada aqui? A porta aberta...
- Ah, sim, aconteceu um pequeno problema com o disjuntor da caixa de luz que controla a luz da sala, do corredor e da saleta da televisão. Quando nós chegamos estava tudo às escuras. Notamos que havia luz no seu quarto. Providenciamos logo o reparo. Com a peça nova, agora está funcionando muito bem. Mas isso, espero, não lhe causou problema, não? Você já devia estar dormindo quando ocorreu o apagão.
Eu não sabia o que dizer, ainda assustada com os acontecimentos da noite, quando até cheguei a imaginá-los mortos ou prisioneiros de ladrões. A minha palidez pelo desconforto e a noite mal dormida chamou-lhes a atenção.
- Que aconteceu com você, está tão pálida. Não dormiu bem, na certa. Venha tomar um bom café. Que pena que você vai nos deixar hoje, como eu lamento, prima, sua partida.
Realmente, um bom café me faria muito bem, era disso que eu estava precisando para tentar refazer as minhas forças, sentindo ainda   meu corpo dolorido. E foi o que fiz, tomei um café e tanto, com biscoitos amanteigados. Que  manhã deliciosa eu começava a experimentar, já agora livre do susto por que passara e tudo por causa de uma visão errada das coisas, da minha confusão e do meu temor diante de nada, pois nada aconteceu, tudo foi um terrível engano de minha parte. Se eu lhes contasse o que vivera, imaginando uma invasão, tentando vencer uma noite de horror, presa num banheiro frio,  quando lá fora não acontecia nada, na certa ficariam preocupados com a minha mente fantasiosa. Fiquei em silêncio e não lhes contei nada,  aceitando  que tudo não passara de uma situação imaginada por mim, sem fundamento.
Eu me perguntava, então, como é que pude imaginar, com tantos detalhes, uma invasão noturna, em que tive de me refugiar para não ser atacada. Minha mente criou uma ambiência de terror. Na verdade, o inimigo que eu temia estava dentro de mim, era eu mesma, era minha mente, minhas sensações que me arrastavam para um perigo inexistente. Eu tentava, em vão, desvencilhar-me de mim mesma, foi uma experiência terrível. Ainda bem que ninguém ficou sabendo de nada. Nenhum vestígio, nada para comprometer-me. Assim, Raquel e Lucas poderão sentir saudades de mim, desejar que eu retorne outras vezes, sem lhes causar desassossego e preocupação.
Em minha casa, finalmente! Comecei a dar um jeito nas coisas que deixara por ocasião da viagem.  Eu me sentia ainda mal pelo que me acontecera, teria de tomar cuidado com as fantasias  mentais.  Meus primos viviam tão tranquilos naquele apartamento e eu, com as minhas idéias, ameacei mostrar-lhes um ambiente que lhes roubaria a paz. Sim, como é que uma pessoa, de repente, se sente ameaçada porque a luz apagou? Por que não pensei, a luz apagou porque deve ter  acontecido alguma coisa com ela. Simples. Meu raciocínio preferiu  enveredar pelo sinistro diante da escuridão  e gerou toda aquela confusão, que ainda  me aborrece muito. Preciso reencontrar minha tranquilidade perdida.
Ainda não fazia um mês do meu retorno quando recebi uma carta de Raquel. Na carta, ela me contava que viveram, ela e Lucas,  uma situação terrível e angustiosa numa noite em que, tendo deixado a porta entreaberta, chegaram tarde.  As luzes, de repente, se apagaram e eles se sentiram amordaçados e jogados ao chão por dois indivíduos encapuzados. Foram obrigados a revelar o segredo do cofre, de onde levaram jóias, dinheiro e documentos. Descobriram ainda peças artísticas e quadros. Eles só não sofreram mais porque não ofereceram resistência. Quem os assaltou conhecia o problema da luz e da porta aberta. Infelizmente, não conseguiram identificar os assaltantes, que se foram bem tarde da noite, na hora em que os porteiros são substituídos  e há, sempre, uma confusão de entrada e saída. Permaneceram amarrados e amordaçados até o dia seguinte, quando a empregada Odete chegou para o serviço do dia e os encontrou. Desgostosos, mudaram de local e, hoje, não deixam mais a porta aberta, mas muito bem fechada. Acabou-se o mundo mágico por causa da crueldade dos homens.


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