domingo, 6 de janeiro de 2013

O MAR NA PRIMEIRA REPRESENTAÇÃO DE BERMA - MARCEL PROUST - De Elsa Caravana Guelman


“O mar na primeira representação de BERMA.”  (À sombra das raparigas   em flor). MARCEL PROUST.
De Elsa Caravana Guelman



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Berma, modelo de Sarah Bernhardt, personagem importante da Recherche, foi a responsável pela iniciação do narrador no mundo artístico. E foi numa tarde que  ele foi ouvir, numa concorrida matiné, Berma como Fedra, havendo para isso a interferência do Sr.Norpois que convencera seu pai a deixá-lo ir com sua avó assistir ao espetáculo. Enquanto aguardava o início da representação, o narrador sentia-se “feliz também na própria sala; desde que sabia que -- ao contrário do que por tanto tempo me havia apresentado  a minha imaginação infantil – não havia senão um palco para  todo mundo, pensava eu que os outros espectadores impediriam a gente de ver direito, como no  meio de uma multidão; ora, verifiquei que, ao contrário, graças a uma disposição que é como o símbolo de toda percepção, cada qual se sente o centro do teatro
            Nessa representação quem faz as honras da casa é Poseidon, o deus absoluto dos mares. Quando a cortina desce e o espetáculo tem início, o espectador sente que o marulhar das ondas de um mar inquieto se delineia vagamente, tomando conta do palco até que Berma apareça em toda sua grandeza para dar início ao espetáculo, e com ela se inicia, através dos sons da decoração marítima, a poesia trazida pela sua voz e impregnada pelas águas.
            Dessa primeira vez, uma cena ficou gravada em sua mente. Ele se recordava da cena “em que Berma permanece imóvel um   instante, com o braço erguido à altura do rosto banhado em luz esverdeada, graças a um artifício de iluminação, diante de um cenário que representa o mar, a sala rompeu em aplausos, mas já a artista mudara de posição e o quadro que eu desejaria estudar não mais existia”.(“`A sombra das raparigas em flor”). Acompanhava com os olhos atentos o desenrolar de Fedra, personagem da tragédia grega de Eurípedes, atualizada por Racine, mergulhada num espaço  aquático e totalmente submersa, com  o ambiente líquido do mar dominando a representação.
            .Quando o narrador, encontrando-se com o escritor Bergotte na casa de Swann, em visita a Gilberte,  elogiou a ornamentação verde que realçava o momento em que Fedra ergue o braço, ouviu do escritor a seguinte explicação:
            _”Ah!, isso daria muito prazer ao cenógrafo, que é um grande artista.  Hei de contar a ele, pois está muito orgulhoso dessa luz. Quanto a mim, confesso que não me agrada muito: banha tudo numa espécie de atmosfera glauca, e a Fedra, tão pequena lá dentro, tem muito de ramo de coral no fundo de um aquário. Dirá o senhor que isso faz  ressaltar o  lado cósmico do drama. É verdade! Em todo caso, estaria melhor numa peça  que se passasse nos domínios de Netuno. Bem sei que há ali algo de vingança de Netuno.” (À sombra das raparigas em flor).
            Bergotte reconheceu que a primeira aparição de Berma, interpretando Fedra, se deu no interior da água. Disso não tinha a menor dúvida.O mar estava em primeiro plano, dominante.  Só que ele, explicou em seguida,  não concordava que ela permanecesse indefinidamente nessa água que a envolvia no fundo de um aquário.
            O narrador, que muito admirava Begotte, por certo não esqueceu as observações do escritor sobre a primeira representação de Berma “numa sala  entusiasta onde se notavam as principais notabilidades do mundo das artes e da crítica”, dando ensejo à artista  de um “triunfo  como raramente os terá conhecido mais brilhantes  no decurso de sua prestigiosa carreira”(À sombra das raparigas em flor).
            Seu interesse pelo desempenho da Berma não cessara de  aumentar depois de finda a representação,em virtude de não mais sofrer a compreensão e os limites da realidade. Contudo, “esse interesse  havia atuado com igual intensidade, enquanto Berma representava, sobre tudo quanto ela oferecia, na indivisibilidade da vida, a meus olhos e a meus ouvidos; ele nada separara e diferenciara; de modo que se alegrou em descobrir uma causa razoável naqueles elogios dedicados ao bom gosto e à simplicidade da artista e os atraía a si  com o seu poder de absorção, apoderava-se deles como o otimismo de um bêbado se apodera das ações de seu próximo, encontrando nelas um motivo para se enternecer. “É verdade”, pensava eu, “que bela voz, que ausência de gritos, que simplicidade de  vestuário, que Inteligência em haver escolhido Fedra! Não, eu não fiquei decepcionado!””
            O narrador não se continha em pensar que Berma se atirou no papel de Fedra.. Elogiava seu bom gosto não só para vestir-se como para representar. Nunca usava cores demasiado vivas, nem tinha gritos exagerados. Sabia ser comedida, guardando-se para, no momento próprio, enfatizar sua arte de representar.”E depois, essa voz admirável, que tanto a auxilia e que ela emprega fascinantemente, quase me atreveria  a dizer qual musicista!...”
De todo o teatro de Racine, “a personagem de Fedra é de longe a mais fecunda e a mais rica do ponto de vista psicológico . Embora reconhecendo sua dívida em relação a Eurípedes, que lhe fornecera a ‘idéia, ou seja, a concepção do conjunto , o poeta tinha consciência do triunfo /…/ Mas a mais abertamente carnal das pecas profanas terminava com um gesto de grandeza. Arrastada, perdida, Fedra se refaz para assumir, com uma calma heróica ( o que não é o caso dos outros furiosos’), seu crime e todas as suas conseqüências, não somente o homicídio, mas também a pior das degradações daquela época: a_perda da honra.”(ZUBER, Roger & CUENIN, Micheline – Le Classicisme 2.ed., Paris, Arthaud, 1990, Col. Littérature Française,4rp.304, trad de Gilberto P. Passos).

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