domingo, 13 de julho de 2014

O MANEQUIM

O MANEQUIM
Conto de Elsa Caravana Guelman

Manuela recebeu de herança, num testamento de um tio, que tinha uma alfaiataria, nada mais nada menos que um manequim. Se, para alguns,  foi motivo de pilhéria, gozação, ela, muita surpresa, interpretou de  forma diferente, achando que, se alguém lhe deixava um manequim, era porque esse manequim tinha algum valor, não era um manequim qualquer.
                Recebeu o pacotão e, desvencilhando-se da papelada que o envolvia, retirou  uma bela peça, moldada artisticamente, tanto que seu rosto parecia real, com contornos bem definidos. Vestido, pareceria uma bela mulher. Como tinha uma grande loja  de roupas femininas, apreciou, de fato, o presente e o enviou  para lá, onde seria  exibido em  uma de suas  vitrines.
                A loja, muito bem estruturada, tinha na parte dos fundos, um galpão em que as costureiras trabalhavam. O manequim, que era, também, mais pesado que os outros, a princípio foi deixado no galpão, por falta de uma roupa condizente com sua aparência, ficando de pé, numa quina de parede, para não incomodar o trânsito das costureiras. Na parte de cima  ficavam as estilistas, desenhistas e montadores criando os modelos de roupas para o ano todo. Este andar era a espinha dorsal da firma, centro das discussões, dos métodos e das inovações na criação dos modelos que interpretassem as exigências atuais da moda, sempre flutuante, o que tornava o ambiente, às vezes, muito tenso, quando havia dificuldades nas aferições e nas pesquisas, ou muito alegre, quando havia um consenso nas escolhas.
                Havia diversas estilistas, mas apenas duas auxiliares, que disputavam uma vaga de estilista, em suas promoções: Raquel e Sheila.  A estas eram dadas tarefas que as deixavam um tanto insatisfeitas, por não poderem mostrar rapidamente suas aptidões criativas. Eram, no entanto, favorecidas porque lhes cabia vasculhar tudo o que fosse necessário para o trabalho final das estilistas, conhecendo, pois, em seu início, a tarefa das costureiras, dos montadores e dos desenhistas.
                Raquel era uma pessoa tranquila, de fala ponderada, o que lhe aumentava a beleza. Quando, porém, tinha de decidir algo com relação à moda, seus olhos faiscavam e ela assumia uma postura radiante. Parecia talhada para aquela profissão, sabendo escolher as roupas que convinham a cada ocasião. Apresentava-se, pois, sempre, muito elegante e poderia, a qualquer momento, dirigir-se à diretoria, tratar com um fornecedor ou discutir em outros departamentos, pois estava sempre muito bem vestida. E isso lhe valia muito, porque, quando havia uma emergência, que exigisse enaltecer a loja, era a ela que procuravam.  Apesar de tudo, todavia, era muito complicado avançar na profissão, pois havia uma certa rigidez quanto às mudanças.
                A vitrine foi reorganizada para que o novo manequim pudesse entrar.  Manuela sabia o quanto ela teria de ser insinuante para poder, sem fugir ao bom gosto, atrair e cativar  as pessoas que buscavam a loja, ou simplesmente passavam diante dela, para que vencessem o passo mais difícil, que era entrar. Depois, dentro da loja, uma funcionária hábil  saberia como tornar difícil sua saída sem comprar nada. Aquela vitrine tinha de ser ao máximo convidativa, oferecer o belo e o bom por um preço que trouxesse o almejado lucro e não assustasse a futura freguesa. 
Que roupa, de repente, vestiriam no manequim? Todas as estilistas opinaram, cada uma sugerindo um tipo de saia, uma blusa, um conjunto, uma calça e nada se ajustava ao manequim. Nada do que existia na loja parecia servir  para ele. As moças estavam entregues aos seus trabalhos e não poderiam interrompê-los fazendo, de uma hora para outra, outro tipo de roupa. Alguém o comparou a um presente de grego na guerra de Tróia. Uma peça ingrata que a patroa recebera.
                Manuela ficou desolada. Que fazer, então, diante de uma situação como aquela? E, no entanto, teriam de achar uma roupa para o manequim que se transformara num estorvo, ocupando lugar no galpão. Foi nesse momento que Raquel apareceu. Uma luz, lá no fundo, brotou na mente de Manuela.  Ela bem sabia das queixas de Raquel,  que achava já saber criar uma roupa perfeita sem que, no entanto, lhe dessem nenhuma para conceber;  fingia, entretanto, não as  conhecer para ganhar tempo e não ter de fazer mudanças  apressadas. Raquel continuava esperando sua oportunidade.
                - Raquel, vou precisar de você, mas terá de ser muito rápida. Não há tempo a perder. Quero inaugurar a vitrine no sábado, uma vitrine especial, mas me falta uma roupa adequada ao manequim que ganhei. Quero que você crie alguma coisa para ele, que o faça chamar a atenção das pessoas, que seja cativante. Posso contar com você?
                - Sim, claro – disse Raquel.  Farei todo o possível, multiplicarei minhas horas para vencer o prazo.
                Manuela levou Raquel para ver o manequim. Houve um murmúrio geral de contentamento entre as costureiras e as outras pessoas que trabalhavam no galpão. É que gostavam muito de Raquel e perceberam no ar alguma coisa de positivo, de inovador, que surgira para ela.
                - É seu, Raquel, mãos à obra!
                Assim que Manuela saiu, duas mulheres, das mais afoitas, vieram abraçar Raquel, que sorria para todas, que sempre a haviam incentivado, dizendo que seu dia chegaria. Ficou diante do  manequim. Nunca tinha visto um manequim assim, não que fosse grande, disforme, nada disso. Ele, apenas, parecia ter outra contextura, mais perfeita e contornada que os demais manequins, totalmente inexpressivos, precisando das roupas para lhes realçar a presença. Aquele, por si só, já tinha como que uma grande presença, ainda que não usasse qualquer vestimenta.
                Raquel tirou as medidas do manequim bem ajustadas, primeiramente. Depois, ao chegar ao pescoço, parou e reparou que o contorno do rosto era perfeito e, à medida que se afastava dele, foi notando outros pormenores e pensou, então, que, se o visse no meio de uma multidão, não o distinguiria facilmente dos seres humanos, se estivesse convenientemente vestido. Quem o criou fez dele uma peça de arte, uma estátua. O que mais lhe chamou a atenção foram os olhos, bem fundos, como duas luzes em águas profundas que, não só ofuscavam, como, por assim dizer, sugavam quem os olhasse demoradamente, deixando-se perder naquele mar misterioso.
                Bastante impressionada com o manequim, voltou à mesa de trabalho, ninguém lhe perguntou nada e nem ela disse alguma  coisa. Assim que pôde respirar um pouco, resolveu – e foi com muita alegria no coração e muita felicidade – contar para o Lucas a novidade.
                Foi até a rua para imaginar como o manequim seria visto. Achou as roupas, dos outros manequins, inexpressivas e sentiu que deveria avivar as cores que seriam vestidas pelo que lhe fora confiado, que não fossem berrantes, agressivas, mas que sugerissem um mergulho nas profundezas do mar, elegendo, então, um azul bem claro, que contrastasse com um bege mutante, como a lembrar um sol que se despedisse do mar antes do anoitecer. Ele deveria exibir uma suavidade contrastante com  a volúpia dos movimentos do dia. Desse modo, no meio da confusão e do  tumulto do dia a dia,  a pessoa que por ali passasse, e parasse para ver a vitrine, teria a impressão de estar atingindo a tranqüilidade máxima e seria convidada a entrar e penetrar naquela suavidade, como se o  mundo tivesse parado lá fora.
                Com toda liberdade que tinha para fazer o que quisesse e pegasse o que necessitasse, Raquel buscou auxílio nos setores da empresa, tecido, linha, enfeites, bordados, botões, fivelas e eis um esboço de um vestido simples, corrido, mas muito elegante. Lá pelas tantas, resolveu acrescentar um lilás que enterneceu seu trabalho.  Não estava competindo com ninguém, nem invadindo o terreno  das colegas, estava, sim, penetrando profundamente em si mesma, sem pensar em mais nada, como quem vai ao fundo do mar e tenta retirar de seu abissal os segredos e as descobertas ali perdidas. Enquanto trabalhou, foi ignorada por todos, até pela colega auxiliar. Seu manequim não mereceu a atenção das estilistas nem de ninguém. Cabia a ela, pois, trazê-lo para a vida da loja, estruturando-o  no seu novo ambiente.
                O vestido para o manequim, que desenhara, ficou pronto e foi entregue quando a maioria das pessoas já havia saído.Manuela e Raquel foram vesti-lo nele, na vitrine.  Havia uma luz que o iluminava para a rua e outra luz que o iluminava no contexto da vitrine.  A missão estava cumprida, o vestido caíra em cheio no manequim, dando-lhe grandeza e dignidade numa sequência de elegância e mistério.
               Manuela, agradecida, abraçou Raquel, emocionada. Esperariam pelo dia seguinte, quando o público daria a última palavra. Elas se sentiam suspeitas para julgar o resultado da confecção. Ainda naquela noite, quando Raquel estivesse abraçada ao Lucas, ela se imaginaria recebendo os aplausos de todos pelo seu trabalho, tão feliz estava.
                O êxito das vendas, que começaram a crescer, foi atribuído ao vestido do manequim. Logo, Raquel foi reconhecida, abraçada, louvada e promovida a estilista. Com uma obrigação: cuidar das roupas do estranho manequim, porque as outras estilistas tentaram, ainda, em vão, confeccionar alguma coisa para também vesti-lo, mas, quando chegavam perto dele, não conseguiam dar  sequer um ponto e, quando traziam a roupa pronta, não conseguiam vesti-lo. Nem Manuela conseguia impor-se ao manequim. Com um misto de medo e susto, afastaram-se dele. Enquanto isso as vendas cresciam e aquela vitrine passou a ser a mais visitada da rua. Ninguém esqueceu os vestidos que Raquel idealizou para o manequim nas comemorações do aniversário da loja. Um antigo fornecedor de tecidos importados, Alan, ofereceu-lhe sugestões: surgiu, assim, uma composição de seda lilás, lembrando  um tom rosa esmaecido, com incrustações de orquídeas e recoberta de mousseline de seda do mesmo tom. Depois do impacto da exibição da peça, muito prestigiada,   Raquel ainda criou outro modelo,  de popeline preta, sugestivo para  uma solenidade noturna. A rua ganhou elasticidade e, em razão da divulgação da vitrine, passou a receber pessoas de outras regiões.  Surgiram, nas proximidades, restaurantes e bares para cativar ainda mais os visitantes. Estabeleceu-se, ali, o pequeno mundo da moda, com toda sua magia e sedução.
A vida de Raquel foi mudando dia a dia e ela se esforçava ao máximo no desempenho da nova função. Chegava bem cedo e não tinha hora certa para deixar o trabalho. A sua dedicação foi até elogiada pela direção. Manuela sentia que podia confiar nas suas descobertas e inovações.  Raquel, entretanto, sabia que devia toda a reviravolta de sua vida  àquele estranho manequim que continuava sob suas ordens. Todos os dias ela se encontrava com  ele, transformando-o numa mulher muito elegante. Buscou um nome que a identificasse e lhe explicasse a personalidade: Isabelle. A aproximação entre ambas  aconteceu sem sobressaltos e não precisou esforçar-se muito para que o manequim cedesse às suas exigências, permitindo-lhe abarcar um  mundo de fantasia na criatividade que  a levou ao infinito, conseguindo tudo o que queria com Isabelle, a ponto de deixar as colegas perplexas. Não havendo uma luta inicial entre o seu Eu dominante e o manequim, que funcionava , portanto, como um Outro, um objeto seu,  estabeleceu-se uma coexistência. E, sem que ela percebesse, quase sorrateiramente,  havia uma sensação de entrega de sua parte para o manequim que a absorvia lentamente. Ele passou a completá-la e ela o completava. Raquel criava infindáveis modelos, de vários tipos, e todos eles serviam perfeitamente para Isabelle. A vitrine  atingiu um esplendor nunca visto antes.
A loja, em razão dessa transformação,  crescia em volume de vendas e de procura. Estavam vivendo uma época de ouro. Raquel, de promoção em promoção,  chegou a uma alta posição, sendo destacada entre todos. Já se falava, até, numa chefia geral, o que muito agradou a Lucas, pois ele sempre acreditou no seu talento e criatividade. As sugestões sobre tecidos, modelos de blusas, vestidos, conjuntos,  apresentadas em reuniões, eram facilmente aprovadas. Assim, Raquel, tornou-se responsável pela apresentação das coleções de  verão e inverno.  Apesar  das inovações,  sua função principal consistia em  cuidar, primordialmente,  das roupas de Isabelle, o que lhe tomava grande parte do tempo.  Em verdade, a auréola  de mistério, que envolvia o manequim, não se esvaíra.
              Foi num dia de sol radiante, quando Raquel chegou à loja,  que teve a inexplicável sensação de que a situação de euforia feérica, que todos estavam vivendo, iria se alterar.   A rua, nesse dia,  estava repleta de gente e as lojas pareciam cheias.  De longe,  pôde perceber que havia  um grande ajuntamento defronte da sua vitrine.  Parou para ter uma visão melhor daquela aglomeração. As pessoas não se moviam, estavam e permaneciam estáticas como se paralisadas por um ímã.  Chegou junto a vitrine, com certa dificuldade, abrindo caminho entre as pessoas.  Procurou colar o rosto no vidro e então deu com os olhos profundos do manequim, eletrizantes, ofuscantes, penetrantes, dominantes, petrificantes. As pessoas pareciam bestificadas. Cada vez aumentava mais o afluxo de gente diante da vitrine.
              Raquel, de fininho, entrou na loja e, por dentro, adentrou à vitrine. Virou a posição do manequim, deixando-o a olhar para dentro da loja e não mais para a rua.  O que aconteceu?  Entraram todas as pessoas, em tropel, loja adentro, seguindo a direção para a qual se voltara Isabelle. Foi o dia de maiores vendas, de todos os tempos.  Para impedir que Isabelle paralisasse novamente as pessoas que a olhassem fixamente nos olhos, Raquel inventou uma estratégia, que muita gente não entendeu, ao dar-lhe óculos escuros para  todos os dias,  daí em diante.  Com esses óculos, o charme de Isabelle, paradoxalmente, aumentou ainda mais.
                Entre Raquel e Isabelle, entretanto,  continuava a existir uma grande harmonia sigilosa.  O manequim captara fácil as idéias e o modo de pensar de Raquel. Se, no princípio, parecia um golem rústico, primitivo, aos poucos foi buscando seus valores. A estilista  passou a temer por ele, pelos incômodos que causava. Uma vez, um eletricista, ao cuidar da vitrine, descuidou-se e olhou fixamente para ele: quase ficou petrificado. A antiga arrumadeira da vitrine se queixava daquele estranho objeto que a impedia de fazer uma boa arrumação. Só a presença de Raquel evitava problemas maiores. Um dia, Raquel adoeceu, por causa de uma chuva que recebera em cheio, sem nenhum abrigo, numa noite quando ia para casa. Faltou ao trabalho, no dia seguinte, e ninguém pôs os óculos em Isabelle. Sem óculos, as pessoas  -  quase multidão -  ficaram paralisadas diante da vitrine sem que pessoa alguma pudesse ajudar. Estabeleceu-se quase um tumulto, em que todos falavam ao mesmo tempo.
                Em casa, ao ser avisada do ocorrido, Raquel resolveu,  ainda que débil, com o corpo fragilizado, dirigir-se à loja. Cambaleante, nem sabia como conseguira chegar tão rápido, e, sem falar com ninguém, entrou na vitrine e buscou o manequim. De pronto,  mudou-lhe  a posição, e, de imediato, as pessoas se afastaram. Isabelle pareceu sorrir-lhe, como que agradecendo sua presença. Passado aqueles primeiro momento de aflição, decidiram todos  que o manequim tinha de sair dali o mais rápido possível.
                - Esse manequim parece diabólico, lembra a Medusa, já ouviram falar? Pois é, a Medusa era uma mulher, na Grécia antiga, que petrificava quem a olhasse de frente, por isso todos temiam encará-la.  Causou tantos males que teve de ser morta. Deceparam sua cabeça, segundo a mitologia  - explicou alguém que entrara na loja.
                Manuela ouviu atentamente o cliente que assim falara e que acompanhava a mulher que tencionava fazer uma aquisição de roupa. Tomou a decisão de tirar o manequim da vitrine. Raquel estava trêmula e mal podia acreditar no que via e ouvia. Assustou-se quando dois homens corpulentos foram chamados para arrastar Isabelle. Eles entraram e não conseguiram tirar o manequim, que parecia ter chumbo nos pés.
                - Como na lenda, vamos ter de cortar sua cabeça, disse o homem. É o jeito de nos livrarmos dessa coisa.         
A noite foi chegando e as pessoas se  afastaram num clima de ansiedade e nervosismo. No olhar das outras estilistas, que foram obrigadas a aceitar sua ascensão durante todo esse tempo, Raquel sentiu uma grande dose de censura, nem lhe dirigiram a palavra ao sair. Acreditavam estar diante de um fenômeno de malignidade, algo sobrenatural. Não aceitariam nada mais daquele manequim diabólico. Manuela, para acalmar os ânimos, prometeu que no dia seguinte, pela manhã, bem cedo, de alguma maneira, ele seria retirado da vitrine, talvez cortado em pedaços, se fosse necessário, por uma serra elétrica.
                 Raquel estremeceu. Sabia o que estava reservado a Isabelle. Ela seria destruída, assim queriam todos. Viu que seu olhar carregava, ainda,  uma espécie de fulgor. Deveria  agir rapidamente, encontrar uma  solução para impedir  o que pretendiam fazer.  Mas, como ?  A noite passaria rapidamente e pela madrugada, antes  da abertura da loja, agiriam. De que maneira, não sabia. Que fazer? Telefonou para Lucas, que se assustou muito com o que ela pretendia. Por que arriscar sua carreira, ela estava cotada para ser a principal figura da loja,  sua vida profissional,  por um manequim? Não, não era um simples manequim, era Isabelle, explicou Raquel. O olhar de Isabelle não a petrificava, muito pelo contrário, elevava-a, tornava-a confiante e destemida. Na convivência que tiveram, dia a dia,  entre um vestido e outro, elas se completaram e como que se fundiram numa pessoa só. Destruir Isabelle seria, agora,  para Raquel, destruir-se a si própria.
              Enquanto esperava Lucas, a quem pedira, por celular, que viesse, Raquel, na rua,  grudou-se na vitrine e, embora, na escuridão não visse bem o seu interior, procurou localizar Isabelle que, no seu último vestido de seda pura estampada  - tecido enviado de Paris, de Montmartre -  sobressaía  como uma rainha entre seus súditos. Reinava um silêncio completo. Tudo era ilusório, apesar da calma da noite. Os planos para o dia seguinte, os planos para liquidar Isabelle, a assustavam e só  aumentava a idéia, em sua mente, de salvar o manequim antes que fosse tarde demais.
               A noite cada vez mais densa, sem as luzes feéricas dos enfeites e dos anúncios, foi-se assenhoreando da rua deserta e silenciosa, inatingível agora ao burburinho e aos solavancos dos transeuntes na difícil disputa por um espaço na busca de um objeto para concretizar sonhos, realizar desejos e sustentar  ostentações, enquanto uma aragem penetrante aparecia como uma convidada que surge na hora certa para sorver os momentos finais e decisivos de uma festa.  
                 Lucas chegou. Tentou, em vão, convencê-la, fazê-la mudar de  idéia,  mas foi tudo inútil.  Faltavam poucos minutos para as onze horas da noite. Qualquer vacilo seria fatal para a realização do plano. Bastaria a passagem do guarda noturno fiscalizando as lojas da rua para impedir qualquer ação. Se isso acontecesse, seria o fim, pois não saberia e nem teria como explicar o que iria acontecer.                                                                                                                                                                       
                  Raquel, sofrendo os efeitos daquela friagem, em sua saúde debilitada, então, armada de coragem, não titubeou,   entrou na loja com sua  chave de reserva. Sentiu que não poderia esperar nem um minuto a mais. Respirou fundo e, depois de lançar um último olhar para o ambiente que a fizera alçar um vôo tão alto, despedindo-se, abriu a vitrine, lutando com uma vontade imensa de chorar ao se deparar com Isabelle, tão suntuosa, tão bela. Conseguira trazer para a loja o sucesso e o encantamento, mas agora era uma condenada que aguardava o cumprimento de sua sentença.  Mas foi com muita calma que, procurando não tropeçar porque não acendeu a luz, chegou a Isabelle.  Tinha a voz embargada de emoção ao sussurrar junto ao manequim:
              --Vamos, Isabelle, vou tirar você daí.  Seja dócil.
             O manequim não ofereceu a menor resistência, como se entendesse o que estava acontecendo;  deixou-se arrastar, facilmente, por Raquel e seu namorado, até o carro de Lucas. A noite parecia continuar conspirando sem nenhuma alteração além da penetrante aragem no silêncio da rua deserta. Isabelle e Raquel, finalmente, despertavam e  saíam de um mundo estruturado desumanamente, ganhando  a liberdade. Lucas colocou Isabelle  na parte traseira de sua camionete, ele e Raquel entraram nela e se afastaram em direção ao desconhecido.
        Manuela chegou bem cedo. Saltou do carro e parou diante da vitrine, estarrecida.  Ali estava a sua vitrine de outrora, com seus arranjos simples, disposta com os manequins antigos, sem qualquer enfeitiçamento. Nenhum sinal do manequim que recebera, de herança, daquele tio que fora dono de uma alfaiataria. 
         



Nenhum comentário:

Postar um comentário