quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O argumento do Terceiro Homem

O Argumento do Terceiro Homem em Platão

Luís Felipe Bellintani Ribeiro         

I – O contexto da questão

O clássico argumento do terceiro homem refere-se a uma citação que Alexandre, comentador peripatético, teria feito da obra perdida Perì Ideôn  do fundador da escola, mas que não passa de uma versão do argumento que, tomando a grandeza como exemplo e não o homem, aparece pela primeira vez no Parmênides de Platão, diálogo da velhice, pela boca do também velho sábio eleata, na forma de objeção à tese apresentada pelo então jovem Sócrates, cara à metafísica platônica, a da participação (méthexis), que por sua vez é a contrapartida necessária a outra tese anterior, a da separação (chorismós).

Mas Platão não faz Sócrates encarnar a “Teoria das Idéias”, numa caracterização da juventude de sua própria filosofia que esta prestes a receber a crítica senil, sem algum motivo, por mero dogmatismo. Sempre resguardando o temor que um jovem deve a um velho, a intervenção de Sócrates surge da necessidade de evitar a incômoda contradição decorrente da suposição ei pollá esti tà ónta (se muitos são os entes), posta propositalmente na mesa por Zenão, herdeiro da henologia parmenídica, para defender seu mestre pelo ataque aos partidários da tese contrária.

Note-se que Zenão só pode pretender aniquilar com a posição dos partidários do múltiplo por pressupor o princípio de não-contradição como critério. De fato, dos eleatas até seu enunciado lapidar em Aristóteles, passando pela metafísica ascencional de Platão, tem-se o enredo de uma saga, a história de uma decisão, conquistada às duras penas e a partir de um solo espiritual que via a contradição precisamente no seio gerador e corruptor da natureza: a história do fundamento da história ocidental. A própria “Teoria das Idéias” ali propugnada apenas desloca a contradição para dela salvar de algum modo a multiplicidade sem dó sacrificada. O critério é o que fica neste deslocamento e por isso o universo múltiplo das idéias traz de volta o imperativo da unidade para cada idéia tomada per se.

Dado o sentido da argumentação que se supõe seguir da hipótese do múltiplo, já que o Parmênides não apresenta a própria argumentação, pode-se dizer que o diálogo começa no ponto em que parou o debate logo após a exposição e a compreensão do significado dos paradoxos de Zenão. A tese imobilista, entretanto, ainda que capaz de reduzir sua rival ao absurdo, não é capaz, por isso, de esquivar-se ela mesma de outras tantas conseqüências absurdas. Tudo bem. A filosofia pré-socrática se quer mesmo contemplação e vigilância do absurdo. O problema surge quando o pensamento pré-socrático flagra o absurdo inerente exatamente à primeira tentativa de fundamentação do bom-senso no Ocidente. Este, o contexto amplo da questão: a tensão da diferença entre o socrático e o seu pré-, notadamente personificado em Parmênides e Heráclito.
Platão, discípulo de Crátilo, sempre esteve ligado aos ensinamentos de Heráclito e quando formulou pela primeira vez a doutrina da separação e participação ou “das idéias” foi para superar as aporias dele oriundas, conforme se verá mais à frente. Aqui se está diante de um Platão tentando vencer o eleatismo com as mesmas armas, mas se deixando vencer também, de bom grado, porque Parmênides tem algo a ensinar de muito valor: a unidade que repousa em si na plenitude de sua identidade. O Platão heraclítico que no Teeteto e no Crátilo reclamava por uma voz dissonante do coro uníssono dos jônios, coreutas da verdade da aparência, encontra-a no eleatismo, herdeiro da tradição pitagórica. Filho adotivo da Magna Grécia, Platão no Parmênides deixa o eleatismo falar mais alto e Sócrates tem de ceder o papel de protagonista, embora não saia do primeiro plano, porque, mesmo criticada, contraditada e conduzida à aporia, a tese da separação e participação nunca é descartada, porque sem “idéia” não há dialética e a filosofia estaria privada de seu lógos.

A ginástica parmenídica da parte posterior do diálogo, aliás, é um exemplo de como aquela aporia pode encontrar um póros. A “Teoria das Idéias” encontra seu fator de unidade então, mas guarda o caráter de fundamento da diferença. Pois sendo una cada (hékaston) idéia, há de brilhar no céu das idéias como a imparidade de um aspecto. Mas somente no Sofista desfaz-se a aporia pela superação explícita do mobilismo e do imobilismo, pela separação do ser (ou ente, ón) como gênero à parte e pela assunção da diferença no seio do ser, sem negligenciar a não-contradição.

O problema do terceiro homem deve portanto ser discutido e resolvido dentro do contexto do Parmênides antes de tudo -o nexo entre as duas partes do diálogo, a das aporias e a dos póroi, deve estar sempre em questão- e no contexto da obra de Platão em segundo lugar, especialmente no contexto próximo desta tetralogia acima referida, duas obras votadas a Heráclito (Teeteto e Crátilo), primeiro, e duas aos eleatas (Parmênides e Sofista), finalizando com a metafísica que supera ambas as posições.

Outros diálogos também merecem, neste caso, fazer parte do horizonte do questionamento, como a República, livro X, no qual uma “terceira cama” é interditada de saída por esfacelar, incomodamente, a unidade no infinito, ainda que a tranqüilidade com que o interdito é posto se deva mais à despreocupação jovial em relação ao fato de que, quando se fecha a guarda aqui, se desguarnece um flanco acolá. Neste trecho, a doutrina da separação é exemplificada por uma coisa indiscutivelmente sensível (o que torna sempre legítimo este recurso, embora obviamente nunca livre de problemas), secundada por um mito sobre a imortalidade da alma e metempsicose, numa contenda com a poesia em torno da autoridade pedagógica. A modalidade de participação postulada, a contemplação-produção, segundo o esquema modelo-cópia, engendra uma outra figura tão desconcertante quanto o terceiro homem, o phyturgo, demiurgo do próprio modelo, provocando a reclamação por um modelo do modelo.

Além da República, também o Fédon vincula-se ao Parmênides, pois ali a separação é admitida humildemente à guisa de hipótese e a participação, anunciada, mas não examinada, ficando para outra ocasião, em todo caso temos a sugestão de que possa ser interpretada de dois modos: comokoinonía e como parousía.

Se se admite que o problema do terceiro homem não pode ser tematizado fora do contexto da tese da separação e participação, então não é indiferente saber de quantas maneiras o texto platônico a determinou ou tentou determinar. É preciso considerar o sentido dos verbos metéchein,metalambáneinkoinoneînpareînaisymphoneînsymmígnynai, etc. É preciso considerar a formulação simples “todas as coisas belas tornam-se belas” (pánta tà kalà gígnetai kalà) “pelo belo” (o dativo instrumental tô kalô).

E se a participação como cópia do modelo revela-se uma questão central, entram em cena imediatamente as figuras do demiurgo do Timeu e do nomoteta do Crátilo.
Dentro do Parmênides, por sua vez, importa considerar as outras possibilidades de determinação do ser da idéia que não aquela que leva à aporia do “terceiro, separado o segundo de um primeiro”. Elas implicam outros modos de ser-separado e participar e acabam em aporias diferentes. A perplexidade de cada aporia conduz então a uma perplexidade geral perante o todo da doutrina. É o próprio texto que, neste momento, parece sugerir que a saída para a dialética está no que Parmênides fará em seguida, tomando o uno por tema. Nesta parte do diálogo, vemos claramente o que acontece com o uno que não aceita absolutamente a diferença, porque esta traria o dois e o múltiplo, e o que acontece com o uno que aceita: aparece o terceiro imediatamente à cisão, significando o infinito. A nós só resta suportar a necessidade dos dois caminhos.

II – Resumo do problema                   

O título “terceiro homem” deve ser traduzido assim: terceiro significa a tendência ao infinito toda vez que o Uno admite alteridade e se cinde em dois, terceiro significa o Múltiplo, o Número; já homem significa qualquer ente determinado, ao qual corresponda a imparidade de um sentido e uma palavra, que possa ser captado como “idéia”, genérico como uma classe, específico como uma classe, que dá ao indivíduo particular sua individualidade e seu ser, mas jaz além de todo e qualquer indivíduo particular, como por exemplo: “grandeza” e “cama”. O primeiro homem é o que perambula pela terra, o segundo surge como conseqüência da “Teoria das Idéias”, atópico, nem perambula nem se mistura com terra. Nessa hora o uno eleata, sem esfacelar-se na multiplicidade sempre fugidia, admite a diferença. O terceiro homem é a aporia do segundo. Aí se torna argumento. A aporia provém da admissão simultânea de duas premissas contraditórias entre si, mas cada qual a sua vez plausível, quais sejam: predicação de todo substantivo pelo seu adjetivo correspondente e diferença entre os substantivos adjetivados pelo mesmo adjetivo e o próprio adjetivo substantivado. A primeira diz que uma qualidade qualquer, que, na forma adjetiva, aparece como predicado de vários indivíduos diferentes, estes na forma substantiva, revelando-os como quais, é ela mesma qual. Exemplo: a unidade é una. A segunda reza que, se vários indivíduos diferentes admitem o mesmo adjetivo como predicado, então há um ser substantivo de tal adjetivo, diferente de todos aqueles indivíduos que apenas o admitem como predicado. Exemplo: se várias coisas são brancas então existe o branco, diferente de todas elas. Resulta que a qualidade ou o adjetivo substantivado fica diferente de si mesmo, contraditando o princípio de identidade. É que se as coisas brancas são semelhantes entre si, o que nos faz pensar numa noção única, responsável por transferir-lhes exatamente este caráter que as torna semelhantes, então a brancura mesma há de ser semelhante -neste ponto em que todas as coisas brancas são brancas- às coisas brancas. Sendo branca também, uma outra brancura além desta deve haver, por intermédio da qual aquela brancura e as coisas brancas, em bloco, sejam brancas. E tal semelhança deve haver mesmo, caso a participação se dê como cópia do modelo.                                                                                                                                                    

Para Aristóteles, o equívoco que produz o paralogismo do terceiro homem está em, após admitir a não-identidade entre substantivo e adjetivo, supor que esta separação transcenda o plano lógico para constituir-se numa separação de entes, como se o universal fosse ao mesmo título que o todo concreto de matéria e forma é, como se o adjetivo pudesse jazer ao modo de uma substância e não apenas aderido a outra coisa que jaza por baixo. A saída, aliás, parece estar à primeira vista em desfazer a contradição distinguindo o “é” cópula de “a montanha é grande” do “é” de identidade de “a grandeza é grande”. De qualquer forma, se a questão está em torno de uma modalização do sentido do verbo “ser”, já é ontológica.  

III – O texto do argumento numa tradução literal (132 a1-b6)

Parmênides: Desde o seguinte, presumo, é que presumes ser una (hén) cada forma (hékaston eîdos): quando muitas coisas te parecem ser grandes, uma certa idéia (mia tis  idéa) igualmente aparece (dokeî), a mesma por sobre tudo que vês, do que segue ser uno o grande (tò méga).

Sócrates: Dizes a verdade.

Parmênides: Quê, então? O próprio grande e as outras coisas grandes, se, por sobre tudo, os vires do mesmo modo com a alma, não aparece (phaineîtai) um certo grande, pelo qual todos estes aparecem grandes?

Sócrates: É verossímil.

Parmênides: Então, outra forma de grandeza (állo eîdos megéthous) apareceria acima (anaphanésetai), à parte da gerada grandeza (tò mégethos) mesma e dos partcipantes dela (tà methéchonta autoû); e uma diferente (héteron) mais sobre todos estes, pela qual todos estes grandes seriam; e de modo nenhum una seria para ti cada uma das idéias, mas infinita a pluralidade (ápeira tò plêthos).

IV – A “solução” do problema

À primeira vista, parece haver algum passo em falso despercebido no percurso e urgir alguma retificação, do tipo assepsia quanto às homonimias e anfibolias. Se é verdade que  uma montanha é grande e a própria grandeza é grande, não deve ser, pelo menos, da mesma maneira que ambos o são. Na auto-predicação, não deve ser no sentido de cópula que o “é” é dito.

Mas antes de enveredar pelo caminho do estabelecimento de uma diferença ontológica ou de uma modalização do verbo ser, cumpre perguntar se é verdade que uma montanha e a própria grandeza são grandes.

Ora, não seria negligente com o páthos fundamental do platonismo, afirmar alguém que nada senão a grandeza é grande. Toda coisa dita, sem mais, grande há de se revelar não menos pequena sob a lupa da atenção. O colorido desbota, o móvel pára, a fala cala. Já dizia o platônico Agostinho do transcendente e de seus derivados: como criaturas do criador, as coisas existem, são boas e belas; comparadas a ele nem existem, nem são boas, nem belas. “Somente o belo é belo!”, ironizava um outro que acabara de ler Platão e inferia sem os pudores do especialista. De fato, quão longe está o mais belo dos mortais da beleza mesma... nem sequer a neve é branca, confrontada com a brancura.

Por outro lado, da mesma forma que o princípio não começa, que o motor resta imóvel, que o eterno não está no tempo, que o absoluto não se encontra em lugar algum, que o fundamento paira sobre o abismo, que a própria idéia de bem não é uma ousía, assim também lícito seria supor que qualquer coisa fosse bela ou grande, exceto o belo mesmo e o grande. A beleza faz com que algo seja belo, mas não há muito sentido em supor ela própria bela.

Em ambos os casos, desfaz-se o liame da semelhança entre a idéia e o participante que gera o terceiro homem. Todavia não se trata de evitar com malabarismos formais um incômodo qualquer. As possibilidades acima permanecem inscritas no platonismo, mas suas conseqüências não são menos desconcertantes: impossibilidade de qualquer discurso que não a tautologia ou impossibilidade de discurso positivo sobre o absoluto.

Que se pense então em admitir tanto o ser grande de uma coisa qualquer quanto o da própria grandeza. No primeiro caso estar-se-ia diante de uma predicação ordinária e a teoria da participação equivaleria a uma teoria da predicação, pela qual alguma coisa pode ser dita de outra, fundando juízos sintéticos e analíticos, fundando o discurso katalléliko. E no segundo? Tratar-se-ia de um simples enunciado do princípio de identidade? Da tautologia inerente a todo discurso kathautétiko? Mas dizer “a grandeza é grande” não é o mesmo que dizer “grande é grande”, nem sequer “o grande é grande” o é, pela introdução do artigo definido, o qual estabelece a diferença entre substantivo e adjetivo. Se Platão não confundiu ingenuamente o “é” de predicação e o “é” de identidade, teria confundido a natureza do substantivo com a do adjetivo, o que no plano da metafísica significa confundir a natureza da substância com a do acidente, o que traria de volta o mesmo problema, já que o acidente é um predicado e a substância um sujeito que deve obedecer ao princípio de identidade? Mas neste caso, cabe perguntar: por que a linguagem permite a substantivação não só dos adjetivos mas a rigor de qualquer palavra de outra classe gramatical? Seria isso apenas um maneirismo supérfluo da linguagem não auto-reflexiva e por isso pouco rigorosa como é a linguagem natural? Ou estaria ela apenas consumando no dizer uma tendência das próprias qualidades (adjetivos), das próprias ações (verbos), dos próprios modos e circunstâncias (advérbios), etc. ao substantivo (substância)? Ninguém menos que Aristóteles, para quem não deixa de ser uma apaideusía do mestre supor que o adjetivo “humano” possa sem mais ser tomado como o substantivo “homem”, que seria ao mesmo modo de Sócrates e Cálias, de quem se diz serem homens, lembra no De Interpretatione que mesmo o verbo, “adsignificante de tempo” (prosemaínon chrónou) -tempo que falta ao substantivo- vincula-se a um subjacente, como o caminhar ao caminho e, generalizando, o ser ao ente, de modo que a tendência ao substantivo, a reificação, vale dizer, não seria apenas um “defeito”de Platão, que parece não saber distinguir o plano lógico do ontológico, mas uma característica de todo orador que não quer terminar, pela experiência de um devir mais originário que qualquer subjacente, como um Crátilo. Aqui se toca, sem dúvida alguma, numa questão muito séria, mas o que ela põe em cheque não é apenas o argumento do terceiro homem ou a tese da separação e participação ou o conjunto do platonismo, senão que o próprio modo de ser do Ocidente. Desde que a entidade do ente apareceu como “forma” (eîdos) e o sentido do lógos como “conceito” (eîdos) até o projeto planetário de “in-formatização” incondicionada de todos os entes e todos os sentidos, mais e mais foram ficando para trás as possibilidades de uma linguagem oracular, que “não fala nem cala, mas assinala”, que sempre de novo experimenta a originariedade do verbo engolir o caráter de derivado do substantivo, ao modo de Heráclito e Crátilo, ou de uma linguagem calcada na primazia do adjetivo, isto é, do atributo, já que tudo pode ser acidente de tudo sem que haja um substrato como suporte, como é a linguagem de tipo sofístico (embora o desvelamento produzido pelo peithó e pela apáthe continue sendo hoje mais poderoso que a validade epistêmica, a ponto de toda produtividade e seriedade confluir em última instância para a cristalização do ideal do entretenimento, da simulação, da ilusão fantástica, da virtualidade que faz parecer mais real que a realidade). Isso para não falar na possibilidade de advento do sentido frente ao qual a gramática ocidental fracassaria por completo, e com ela os conceitos de representação e adequação, e que se  vem à tona no ideograma ou nas formas “primitivas” de alfabetos não-fonéticos.

Não está lá atrás, em Platão, este tique tacanho de tornar coisa a abstração lógica sem nenhuma pretensão ontólogica, mas lá na frente, no horizonte planetário do filho de Prometeu, que sempre quis, não por defeito, mas por constituição, livrar-se de uma vez por todas, com o auxílio de seu fogo, da indigência de sempre de novo ter de recorrer ao seu auxílio. Assim, desdenha-se do estabelecimento de certos entes “sobre as costas do céu”, mas ai da abstração que não couber num chip e que não puder converter-se em eletricidade e de eletricidade em qualquer fenômeno sensível.

Por isso, antes de tentar “resolver” o problema na base de uma distinção dos vários sentidos do verbo ser ou de coisa que o valha, como falar de auto-exemplificação (Malcolm) e auto-exposição (Owen), ao invés de auto-predicação, ou atenuar essa última com a chamada “predicação paulina” (Vlastos) ou outro critério de restrição a certos casos especiais, convém perseverar em certas cismas platônicas, como a que faz do sentido existencial não um entre outros do mesmo nível, mas o originário, pois para seja lá o que for identificar-se a si ou a outro, ser predicado ou predicar, deve antes de mais nada e independentemente do modo simplesmente ser (esta é, em última instância, a razão de ao primeiro argumento do Parmênides, que descobre ser diferente a natureza do uno da do ser, seguir o segundo, que parte da anterioridade da necessidade de ser, embora a verdade não esteja em nenhum dos dois isoladamente, mas na eqüipolência).

Por isso, antes de tomar a tese da separação como um incômodo problema lógico à espera de solução e saudar a metafísica que sem evadir-se do todo concreto aceita a separação entre substância e acidente (metafísica da separação, a despeito do deslocamento), convém deter-se um pouco precisamente no absurdo de tal tese e questionar se acaso ele não é a simples correspondência à própria situação do princípio. Platão flagrou o absurdo no princípio e a posteridade platônica tratou de abrandar esta evidência, a ponto de alguém no Ocidente poder presumir-se não-platônico.

Aristóteles apresenta uma explicação para Platão ter postulado a separação. Aceite-se-a como ponto de partida. Heraclítico que era, sabia que a sensação e a apresentação imediata em geral não submeter-se-iam ao imperativo de não-contradição. Ao mesmo tempo empenhado em encontrar um lugar ontológico em que as entidades em si inquiridas por Sócrates jazessem, colocou a bondade, a beleza e a justiça numa instância “transsensível” –e não propriamente não-sensível- anterior à aparência imediata. O pensamento de Heráclito, portanto, premido pelas exigências do questionamento socrático, apropria-se do eleatismo e do pitagorismo e sintetiza o primeiro fundamento da ciência ocidental: o princípio de não-contradição e a determinação do ser do ente como forma. Platão prefere contemplar o abismo do terceiro homem, que é para cima, no céu, a voltar-se para baixo e ver o rio arrastar todas as diferenças -e com elas suas ciências- de volta à unidade da indeterminação. Ao encontrar para a individuação uma saída, a metafísica acaba por enredar a si mesma noutra aporia; ao escapar da contradição às costas, não vê que ela já havia tomado a frente. Ou será que ela já estava aí também, engolfando num círculo a reta do progresso? Não estaria a contradição no próprio círculo que é o princípio? Quando o princípio de individuação põe mãos à obra, acaso dá à luz rebentos completamente desinfetados do terrível “tudo em tudo se mistura” (memíchtai pân en pantí) pré-socrático? Pode um ente determinado deixar de trazer inscrito em sua própria identidade a diferença entre sua unidade e sua entidade, com o que separa-se de si mesmo, tal como o grande do grande e o homem do homem, reconquistando sempre novamente a unidade ao preço de projetar-se indefinidamente? Está na hora de proceder ao anunciado: buscar a “solução” do problema no nexo entre a primeira e a segunda partes do Parmênides.

V – O nexo entre a primeira e a segunda partes do Parmênides

Que problema encerra o argumento do terceiro homem? O da oposição, mas relação, o da exclusão, mas co-implicação do uno e do múltiplo, o que é uma outra maneira de dizer, no contexto eleata-platônico, “do repouso e do movimento”. A idéia deveria ser una, mas acontece de se esfacelar na multiplicidade infinita. Basta para isso que ocorra uma disjunção, uma fenda abissal, vale dizer, no seio do uno, isto é, que algo se torne diferente de si mesmo exatamente por comportar semelhança. O belo que visto neste espetáculo efêmero, antecedido e sucedido pelo não-belo ou mesmo por outro belo, numa sucessão ininterrupta de belos espetáculos, como que aderido a alguma substantividade, uma paisagem, por exemplo, uma pessoa, uma obra de arte ( e sempre se está vendo paisagens, pessoas e obras de arte), não é o próprio belo, tomado agora como substantivo, aquele que ocorre mesmo que não estejam presentes todos os elementos que compunham o espetáculo determinado, mas sim outros que preencham momentaneamente essa malha indeterminada e plástica, sempre móvel, do aberto da aparência. As muitas coisas belas se separam do belo mesmo, o belo se separa do belo e desse duplo provém o terceiro e assim indefinidamente. Em todo caso, todas as coisas belas se parecem entre si exatamente por assemelhar-se cada qual com o belo. Pode ser o infinito, mas é o infinito do mesmo, de modo que a unidade permanece resguardada pela identidade.

Que problema, por sua vez, encerra a segunda parte do Parmênides? O mesmo: o entrelaçamento e a exclusão do uno e dos outros que não o uno, os muitos. Não se deveria aprender alguma coisa com ela? A primeira lição é clara: a dialética não é um discurso positivo, mas positivo e negativo, põe e tira, seu equilíbrio equivale ao de um capoeirista: nada o derruba porque constantemente muda de apoio, em lances que se desdobram com naturalidade uns dos outros. Deve-se, acerca de cada tema, supor sempre que ele seja e que ele não seja, bem como em cada caso verificar as conseqüências dessa suposição tanto para o próprio como para as demais coisas que não ele. Não se adere a nenhuma afirmação ou negação que apareça no percurso, mas se resta ao final suspenso no páthos ambíguo da aceitação de todo sentido que se apresenta e ao mesmo tempo de sua abdicação. O tema deve ser algo que possa ser tomado como eîdos pelo lógos e não dessas coisas vistas num curso sempre errante. Parmênides escolhe o uno por tema, aparentemente como simples exemplo da ginástica dialética, por familiaridade, mas muito provavelmente, se figura naquela altura do texto platônico, tem algum primado. Toda idéia é una, diz o dogma. Quando diz assim, pensa junto que o uno é uma idéia que participa de todas as idéias, para que essas possam ser o que são antes de participar de seus homônimos sensíveis. Trata-se do que no Sofista é chamado koinonía(comunidade), sýmmeixis (mistura) dos gêneros (tôn génon), diferentemente do que na primeira parte do Parmênides se chama méthexis ou metálepsis como participação do eîdos autó e dosmethéchonta autoû. A participação horizontal de idéia a idéia e a vertical de idéia a um homônimo sensível equivaleriam ao que Vlastos chamou, respectivamente, predicação paulina (São Paulo na primeira epístola aos coríntios: "a caridade é gentil") e predicação ordinária. Diante da hesitação de Sócrates quanto a haver idéia de lama e sujeira, ou mesmo de fogo e homem, a segunda parte do Parmênides se move no mesmo plano da comunidade de gêneros do Sofista, o das relações possíveis entre aquelas coisas que, ao contrário, parece não ter nenhuma realidade sensível, mas plena idealidade inteligível. O Parmênides ensina que, quando se fala inocentemente "a idéia é una" ou "o uno é uma idéia", não se sabe a aporia que se instala. Como predicado ou predicável, o uno deixa de ser absoluta unidade porque pela participação entra em relação. O uno vive esse impasse: se é, participa do ser, com o que torna-se múltiplo; se sua unidade resta protegida da multiplicidade, não é, tornando-se absurdo dizer "restar protegido de qualquer coisa" de um não-ser. Entre o nada e a contradição fica quem percorre o primeiro e segundo argumentos que se desdobram da hipótese ei estì tò hén ("se o uno é"). No final, "o uno não é" significa: não está em nenhum lugar, nem em si mesmo, não é em nenhum tempo, com o que seria um ente determinado e não o uno propriamente dito. Para reverter este estranho resultado, o segundo argumento começa logo por tomar o "é" no sentido de "existe", "é um ente". Do "sendo uno" (hén ón) ou "uno que é" surge imediatamente a diferença entre uno e ente, ainda captada na forma da díada, uno-ente. A diferença como tal, presente já desde princípio, só chama para si a atenção em terceiro lugar, já que nem o uno nem o ente são capazes de por si se darem a diferença recíproca. A diferença os afasta ao mesmo tempo que é o comum de ambos, conferindo simetria à relação. A tríade está posta: uno-ente-diferente. Sendo que apesar de diferentes, o ente não é outra coisa que simplesmente "sendo um" e o uno que "uno que é". A unidade permanece preservada, mas a tríade está posta. Fatal: o uno é uno e múltiplo, porque diferente de si mesmo. A idéia de homem não pode ser una mesmo sem que haja um terceiro homem embutido no princípio, já que o dois surge quando um homem qualquer que é aparece diferente da própria humanidade captada na sua plena unidade.

Apesar de o Parmênides se mover no plano exclusivo das idéias, o que de fato vem a ser aquele "sendo uno" do segundo argumento senão um todo determinado que passa no tempo e está no lugar, admitindo, conforme a relação, todos os predicados, todas as participações, mas preservando sempre a não-contradição pela ótica de cada perspectiva? Com efeito, este sendo-uno opõe-se àquele uno-infinito (ápeiron) como o particípio ao infinitivo: ente e ser, ón e eînai. Pois trata-se neste último caso de um ser uno suspenso na unidade, que não pode participar do jogo das relações que configura um ente, sob pena de tornar-se múltiplo. Não pode encarnar em pessoa, fazer número, possuir gênero, acontecer em um tempo de algum modo, como agente ou paciente. Ao que, em oposição, pode, cabe todo o aparato sincategoremático das idéias.

No final de cada um dos argumentos vê-se um pequeno detalhe digno de ser focado com a lupa e a partir do qual se pode pensar melhor a diferença em questão. O primeiro uno não tem nada"de si para si" (autoû autô), o segundo tem. O primeiro não admite gênese nem destinação (genitivo-dativo), não sai de si nem retorna a si. Quando o segundo, ao contrário, admite, revela uma situação desconcertante: que todo "si", estando ainda só e separado de qualquer outro, traz consigo a diferença de si a si. O uno absoluto, que é coisa nenhuma, este zero que já é um (na idéia de zero ou nada já está o um), se de fato for, já será dois e engendrará, como foi visto, pela idéia de diferente, o três, uma quarta idéia. Não é difícil perceber que esta arithmogonía, como numa fileira de peças de dominó tocada por um leve piparote, vai parar no infinito. Parece que o uno liga-se ao múltiplo infinito necessariamente. Quando se experimenta esta necessidade, passa-se daquele primeiro "espanto aristotélico", que admira que o ente seja e não antes não seja, para o segundo, que admirar-se-ia, isso sim, caso ele não fosse. Em todo caso, permanece-se no espanto.

VI – Apêndice: a participação como parousía

Conforme ficou assinalado no começo, uma vez que o problema do terceiro homem deve ser resolvido no horizonte da tese da separação e participação, não é sem importância saber de quais maneiras Platão tentou determiná-las. Aceitando a sugestão do Fédon, que fala de koinonía eparousía, e considerando que a primeira já foi caracterizada ao de leve, seguem brevíssimas palavras sobre a segunda.

Considerando o étimo em si, par-ousía significa ser-junto, a essência ou entidade do ente que se dá na relação própria expressa pela preposição pará. Junto, mas oa largo; no mesmo fluxo, mas separadamente. Os gregos usavam o particípio parón para designar o presente, em oposição ao passado, parelthón (o que chega para junto), e ao futuro, méllon (o estar prestes a). Como substantivação do particípio, parousía é a presença do presente. Se a idéia e seu participante se relacionam por parousía, então nesta hora estão co-presentes. A passagem do tempo traz sempre o velho para junto no deparar-se com a nova paisagem, sua novidade é sacrificada em favor da segurança do velho, mas isto não impede que o iminente lance o aparente na inaparência, no esquecimento, na desmemória. Este clarão sempre aberto que é o presente mostra sempre aspectos, recortes de luz. As determinações que estes recortes instauram, recolhidas numa apreensão imediata, cada qual na imparidade de sua unidade, suscitam os nomes, sentidos mudos que explodem pulmão afora e que podem ser guardados em papel. Os nomes, no entanto, signos da diferença, do detalhe, do próprio irredutível, são eles mesmos da natureza universal do conceito. Qualquer nome. Pelo simples fato de que brada ainda uma outra vez após bradar a primeira. A primeira vez, no entanto, só existe no mito; é a hora da demiurgia como contemplação e poiese. Sempre se fala um nome que já foi falado e que pode voltar a sê-lo. Isto significa que a presentificação de um sentido ímpar não esgota a vigência deste mesmo sentido, que submerge e emerge na memória e na desmemória, na expectativa e na indiferença, como se subsistisse além, participando vez por outra do lusco-fusco da sensibilidade, amoldando-se, conforme o limite, ao lugar-receptáculo. Simples: o instante presente (e todo presente tem a "espessura" do instante, bem como todo instante, sendo "aqui e agora", é presente) é a hora em que se pode flagrar a idéia participando da matéria. Nada simples: é conhecida a arena em que lutam as dimensões sincrônica e diacrônica, melhor, crônica e eônica do tempo.



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